terça-feira, 25 de outubro de 2016

Um bom samba, forma de oração


A semana correu tanto que, quando chegou segunda-feira, me dei conta da crônica de domingo. E me veio à cabeça o que José de Alencar escreveu lá em outubro de 1854, quando publicou em sua seção “Ao Correr da Pena”, no Correio Mercantil, uma carta ao redator para se desculpar da preguiça que o impediu de produzir o folhetim da semana: “Sei que há de ficar maçadíssimo comigo, que me acusará de remisso e negligente (…). É já prevenindo esta eventualidade que tomo o prudente alvitre de escrever-lhe, e não ir verbalmente desfiar o longo rosário de desculpas que a minha imaginação, sem que lho encomendasse eu, teve o cuidado de ir preparando apenas pressentiu os primeiros pródromos da preguiça”.

Se houve preguiça para escrever, no entanto, garanto ao leitor que não tive preguiça de sair à rua, o que me faz levar apenas meia culpa, já que o pecado foi cometido pela metade. É possível até que eu esteja livre dele, uma vez que a falta de preguiça de sair pode na verdade compensar a preguiça de escrever, zerando, portanto, minha lista referente a um dos pecados capitais. Certo é que fiz bem em ir pra rua, pegar o metrô até a Praça Onze e parar no Baródromo, no sábado, pra ouvir samba de enredo. Melhor do que o churrasquinho com pão e cebola que comi lá só mesmo a sensação de cantar junto de muita gente o samba da Mocidade pro Carnaval do próximo ano, que é o segundo melhor do grupo especial. Na minha pequena opinião, só perde pro da Beija-Flor, que é uma coisa incrível. Minha Vila, que também vem com um samba muito bom, fica em terceiro lugar no quesito. Mas é sem dúvida o azul que dá o tom à minha vida.

Eu sou Vila Isabel porque, como cantam Moacyr Luz e Martinho da Vila, ela é de chorar de emoção. No meio da quadra, tão familiar, bebi, fiz amigos e só não sambei porque não sei. Sou Vila Isabel porque é quando ela entra na avenida que meu coração se transforma em surdo e quase para quando a bateria silencia. Sou Vila Isabel porque, acima de tudo, essa Kizomba é nossa constituição. A comemoração do título de 2013, que me levou à festa no arraiá na quadra e que me fez subir no palco e cantar chorando nosso chão de poesia, transformou aquela quarta-feira em um dos melhores dias da minha vida.

Apesar de ser o povo de Noel que me emociona, pra mim escola de samba tem a ver com democracia porque constrói laços de pertencimento. Por isso eu também piso na Serrinha quando Dona Ivone fala dos cinco bailes da história do meu Rio; voo com as asas da águia quando Senhor do Bonfim alumia os caminhos da Portela; canto Juremê, Juremá quando Neguinho relembra a saga de Agotime; me encanto com o cenário que a natureza criou pra menina dos olhos de Oyá; sonho com a Mocidade no céu de Sherazade; viro malandro batuqueiro quando passa a Academia; reverencio mamãe Oxum do ouro com a Viradouro; vou com a Estácio na Paulicéia desvairada; pergunto sobre o amanhã na Ilha; peço liberdade, liberdade em verde e branco; e defendo Canudos com a Em Cima da Hora no Nordeste do meu Brasil.

Diante do axé que encontro num samba de enredo, não posso compactuar com a intolerância de quem vai à África e, em vez de valorizar essa cultura que se mistura à nossa, ataca as religiões africanas afirmando que são “diabólicas”. A campanha do bispo Marcelo Crivella tem se mostrado cada vez mais oportunista e mentirosa, sendo baseada em inverdades sobre seu adversário e em calúnias a respeito de quem está ao lado de Marcelo Freixo, como a vice Luciana Boiteux e o sociólogo Luiz Eduardo Soares. Além disso, o senador do PRB defende a submissão da mulher ao homem, afirma veementemente que é ficha limpa — escondendo que já foi preso —, cancela participação em debates e classifica os gays como um “terrível mal”.

A poucos dias do segundo turno, recorro ao samba da Viradouro deste ano: “ó, meu Brasil, cuidado com a intolerância”. Tomara que o carioca tenha esse mesmo cuidado na hora de decidir seu voto.

domingo, 16 de outubro de 2016

Eu bebo pra esquecer


Foram 366 a 111 votos que garantiram a primeira aprovação da PEC 241 na Câmara dos deputados. Sabemos que um governo que já nasceu sem legitimidade não seria capaz de garantir a dignidade democrática, mas seu descaramento vem alcançando proporções surpreendentes. Congelar o salário mínimo e os gastos em saúde e educação — porque o governo, importa ressaltar, trata esses setores fundamentais como despesa e não como investimento — é uma alternativa pensada por quem nem de longe se preocupa com a população, sobretudo a mais pobre.

A ideia, portanto, vai totalmente contra à concepção de Estado social. Roberto Leher, reitor da UFRJ, explica que a aprovação dessa proposta implica “fundamentalmente o fim da gratuidade das universidades públicas; a desvinculação de receitas tributárias para a educação e saúde, uma redução da universalidade do SUS, o que significa obviamente que o SUS deixaria de ser um sistema universal, e a desvinculação dos benefícios sociais da seguridade em relação ao salário mínimo”. O que temos, então, é “um conjunto de medidas que expressa de forma contundente uma quebra nos principais direitos sociais assegurados na Constituição Federal de 1988”.

Em tempos de segundo turno municipal, é curioso observar que o partido do candidato que afirma priorizar a saúde e a educação em seu governo votou completamente a favor da PEC 241. Os deputados do PRB, partido de Marcelo Crivella, se juntaram à Casa Grande para prejudicar justamente as pessoas das quais sua campanha eleitoral promete cuidar.

Cuidar das pessoas se torna um desafio ainda maior, porque se aproxima do impossível, quando há defesa de corte de gastos em áreas essenciais para o cuidado com o outro. O desânimo proporcionado por esse cenário político de desolação e desesperança me leva à música de Argemiro Patrocínio: “eu bebo pra esquecer, mas nem assim”.

Mesmo não adiantando muito, é o que farei neste primeiro domingo em horário de verão, dia reservado ao Pier Mauá. Acaba hoje o Mondial de La Bière, esse paraíso onde a gente bebe e come bem. E com a sede de anteontem que eu estou, é pra lá mesmo que eu vou.

domingo, 9 de outubro de 2016

O grande mal


O grande mal a que Machado de Assis se referiu em 1892, e que citei na crônica passada, parece não estar muito perto do fim. No dia 7 de agosto daquele ano, o escritor publicou que, em eleição da época, “o eleitorado ficou em casa” e “uma pequena minoria é que se deu ao trabalho de enfiar as calças, pegar do título e da cédula e caminhar para as urnas”. No domingo passado, vimos que mais de 40% dos eleitores se recusaram a votar, deixando os votos divididos em 24% abstenções, 12% nulos e 5% brancos. Independentemente de ser isto indiferença, descrença ou abstenção, todos concordam que é um grande mal, como ressaltou Machado.

Diante de uma atual crise de representatividade política, evidenciada pelo cenário das eleições, essa semana despertou também a atenção para a crise de representatividade de um partido, na carta aberta aos membros da REDE, redigida por Luiz Eduardo Soares. Nela o sociólogo argumenta, em nome de outros que também se desfiliaram, que “a sociedade brasileira não sabe o que pensa a REDE, nem consegue situá-la no espectro político-ideológico”, alegando falta de posicionamento do partido em temas centrais, como a ausência de crítica fundamentada ao governo Temer, e relembrando posições assumidas de maneira equivocada e dissociada de seus ideais de formação, como a aliança com o PMDB e a postura favorável ao impeachment da presidente Dilma.

A atitude de Luiz Eduardo Soares me levou ao tempo em que tive contato com seus materiais a respeito de segurança pública — textos, entrevistas, vídeos — e reconheci a importância do tema. Foi lendo um de seus livros, aliás, que passei a me interessar pela trajetória do Brizola. Meu casaco de general é leitura necessária numa sociedade que confunde direitos humanos com defesa de bandido. E o livro registra que, “em 1982, a vitória de Leonel Brizola significou a suspensão da famigerada política do ‘pé-na-porta’, que durante a ditadura caracterizava o comportamento policial nos bairros pobres e nas favelas”. Quando Moreira Franco foi eleito em 1986, contrário aos direitos humanos e ao humanismo de Brizola, resgatou a prática do “pé-na-porta” e entregou o governo em 1990 com o maior índice de criminalidade da história do Rio. Ele havia prometido acabar com a violência em seis meses, mas só conseguiu provar que o descompromisso com os direitos humanos apenas piora a situação da segurança pública.

Apesar de tudo, essa desrespeitosa prática da ditadura continua hoje em dia, agora com legitimidade: o STF decidiu que a polícia tem o poder de entrar em casas sem mandado. Infelizmente não aprenderam com as decisões negativas de Moreira Franco, nem com as intenções positivas de Brizola. Por mais que muitas vezes insistam em incutir na gente o contrário, outro livro do Luiz Eduardo Soares dá o recado: Segurança tem saída. Só não dá pra tentar encontrar essa saída por meio do uso abusivo do poder.

O problema é que muita gente defende práticas ditatoriais, acredita que bandido bom é bandido morto, põe a culpa do estupro na vítima, não vê problema na tortura e quer mais é disseminar a intolerância. Tanto é assim que Flávio Bolsonaro obteve 14% dos votos na cidade que jamais seria maravilhosa com uma prefeitura em suas mãos. E há quem diga que defensor de bandido é o candidato do PSOL, mesmo que ele tenha sido ameaçado de morte pelo combate às milícias e nunca tenha se filiado ao PMDB. Mas isso é papo pra outra crônica.

domingo, 2 de outubro de 2016

Vai ser desse jeito


Machado de Assis não deixava de tratar, em suas crônicas, da importância do voto. Em 1876, disse que “70% de cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha — por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado”. Em outra crônica, de 1892, insiste no tema, estimulando o povo a votar: “não me faças ir adiante, leitor amado. Adeus, vai votar. Escolhe a tua intendência e ficarás com o direito de gritar contra ela”.

Hoje, dois séculos depois, ainda há quem vote por divertimento, sem saber por que nem o quê. São analisadas as musiquinhas, as carreatas com bandeiras e sorrisos forçados, o amigo e o familiar que se candidata a vereador e um sem número de motivos responsáveis pela permanente desmotivação política. A coisa é tão estranha que criticam a utopia sem recordar Eduardo Galeano reproduzindo o que seu amigo Fernando Birri, diretor argentino de cinema, falou em uma palestra: “a utopia está no horizonte. Sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se afasta dez passos. Quanto mais eu buscá-la, menos eu a encontrarei porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Para que serve? Pois a utopia serve para isso: para caminhar”. Negligenciam a utopia, portanto, como se ela interrompesse um caminho, quando, em verdade, é ela que nos encoraja a prosseguir.

Ontem, por exemplo, andando pela Tijuca, dei de cara com um rapaz que me sorriu e disse “Freixo prefeito”. Nos identificamos pelos adesivos. A poucos metros, ele me mostrou, estava a candidata que ganhará meu voto hoje. Fui até ela pegar material, batemos um rápido papo, uma foto registrou o encontro e ela me disse “vamos juntas!”. Se não é, já não tô nem aqui. Gonzaguinha frequentemente reforça em mim que “a gente é tanta gente onde quer que a gente vá”. Pisando firme nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos, sei que elas se cruzam se estivermos de mãos dadas. E é por querer um Rio de Janeiro feito pelo afeto e pelo cuidado que não posso conceber, dentre tantos outros fatores, a continuidade do PMDB.

Um fato curioso é ver tanta gente sem conhecer os vereadores e não saber quem deseja eleger, muitas vezes por não querer eleger ninguém, enquanto pintam tantos nomes dignos de constituir a Câmara. Eu mesma, se pudesse, votaria umas cinco vezes. A opção de não querer eleger ninguém acaba permitindo que seja eleito aquele que representa o nosso avesso, munido de toda nossa discordância e repugnância. É por isso que Machado já dizia lá no século dezenove, a respeito do eleitorado que ficou em casa em dia de eleição e apenas uma pequena minoria foi às urnas: “Variam os comentários. Uns querem ver nisto indiferença pública, outros descrença, outros abstenção. No que todos estão de acordo é que é um mal, e grande mal”.

Quebremos o grande mal. Vou votar hoje à tarde porque, como o Chico, tenho muito sono de manhã. Horas depois de digitar 50 pra prefeito e 50777 pra vereadora, o único destino é a Lapa, onde mora a alegria. Vou à Lapa porque, também como o Chico, fecho com Marcelo Freixo e Marielle Franco, que estarão nos Arcos. Mudar é possível. E que venha um segundo turno construído na rua, na rede, na raça.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Batidas na porta da frente

Foto: Adhemar Veneziano

No dia dos setenta anos de Aldir Blanc acordei ouvindo “Resposta ao tempo” na voz de Nana Caymmi. Sou filha de Tempo, há folhas no meu coração. Não me lembro com exatidão do momento em que me encantei pelas letras do Aldir, mas possivelmente remete à época em que comecei a ouvir “O bêbado e a equilibrista” sem parar, minha música preferida. Foi quando comecei a pesquisar e admirar a história do PT, a me identificar com Betinho e Henfil, a me posicionar conforme os que resistem e subvertem. Foi também quando descobri que Brizola seria minha referência política. Brava gente brasileira.

E já que a crônica enveredou pelo caminho político, aproveito para deixar aqui os nomes que são referência apenas para passar longe de intenção de voto. Há quem dedique uma atenção a eles, é verdade, mas finjo agora que meus poucos leitores, todos, entendam que foi golpe, porque de fato foi, o afastamento de uma presidente legítima: Acir Gurgacz (PDT-RO). Aécio Neves (PSDB-MG). Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP). Alvaro Dias (PV-PR). Ana Amélia (PP-RS). Antonio Anastasia (PSDB-MG). Antonio Carlos Valadares (PSB-SE). Ataídes Oliveira (PSDB-TO). Benedito de Lira (PP-AL). Cássio Cunha Lima (PSDB-PB). Cidinho Santos (PR-MT). Ciro Nogueira (PP-PI). Cristovam Buarque (PPS-DF). Dalirio Beber (PSDB-SC). Davi Alcolumbre (DEM-AP). Dário Berger (PMDB-SC). Edison Lobão (PMDB-MA). Eduardo Amorim (PSC-SE). Eduardo Braga (PMDB-AM). Eduardo Lopes (PRB-RJ). Eunício Oliveira (PMDB-CE). Fernando Bezerra Coelho (PSB-PE). Fernando Collor (PTC-AL). Flexa Ribeiro (PSDB-PA). Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN). Gladson Cameli (PP-AC). Hélio José (PMDB-DF). Ivo Cassol (PP-RO). Jader Barbalho (PMDB-PA). João Alberto Souza (PMDB-MA). José Agripino (DEM-RN). José Aníbal (PSDB-SP). José Maranhão (PMDB-PB). José Medeiros (PSD-MT). Lasier Martins (PDT-RS). Lúcia Vânia (PSB-GO). Magno Malta (PR-ES). Marta Suplicy (PMDB-SP). Omar Aziz (PSD-AM). Paulo Bauer (PSDB-SC). Pedro Chaves (PSC-MS). Raimundo Lira (PMDB-PB). Reguffe (sem partido-DF). Renan Calheiros (PMDB-AL). Ricardo Ferraço (PSDB-ES). Ricardo Franco (DEM-SE). Roberto Rocha (PSB-MA). Romário (PSB-RJ). Romero Jucá (PMDB-RR). Ronaldo Caiado (DEM-GO). Rose de Freitas (PMDB-ES). Sérgio Petecão (PSD-AC). Simone Tebet (PMDB-MS). Tasso Jereissati (PSDB-CE). Telmário Mota (PDT-RR). Valdir Raupp (PMDB-RO). Vicentinho Alves (PR-TO). Waldemir Moka (PMDB-MS). Wellington Fagundes (PR-MT). Wilder Morais (PP-GO). Zezé Perrella (PTB-MG).

Acredito que esse último foi o maior parágrafo de uma crônica minha até hoje, mas ao menos condiz com o tamanho da falta de caráter de muitos de nossos senadores. Diante de tantos discursos respaldados por invenções e desinvenções avessas a crime de responsabilidade, houve até quem tenha colocado Deus no meio. A voz de Almir Guineto ecoou como nunca: “Deus já deve estar de saco cheio”.

Mas o samba a que quero aludir agora é o do ronco da cuíca que ronca de raiva e de fome. A nível de alegria, estamos comemorando os setenta anos de um brasileiro máximo. Não sei pensar minha cidade sem o letrista tijucano. No Renascença, a parceria entre e ele Moacyr Luz nunca falta. Dá saudades da Guanabara, pra só doer quando eu Rio, e eu recordo que “a Zona Norte é feito cigana lendo a minha sorte”. Cai a tarde, um bêbado de luto lembra Carlitos e, lá em cima, “estrela é só um incêndio na solidão”. Ainda que haja tanta incompatibilidade de gênios por aí, “todo boêmio é feliz porque quanto mais triste, mais se ilude”.

O Rio de Janeiro se salva com Aldir Blanc colocando no mesmo barco realidade e poesia. Meu peito, lona armada, sabe o valor da boemia e das vitórias da ilusão. E sabe, sobretudo, que “nada se acaba quando é feito por paixão”. Me dá a penúltima, em homenagem a Aldir.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Uma campanha na voz de Jovelina


“O suburbano quando chega atrasado/ O patrão mal-humorado/ Diz que mora logo ali/ Mas é porque não anda nesse trem lotado/ Com o peito amargurado/ Baldeando por aí/ Imagine quem vem lá de Japeri/ Imagine quem vem lá de Japeri”. Ouvindo Jovelina Pérola Negra cantando esse samba de 1984 da Em Cima da Hora, lembrei que o historiador Luiz Antonio Simas o citou em seu discurso no lançamento da pré-candidatura de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio, no início de julho.

O recado, ao final de sua fala, foi o seguinte: “Que a gente se lembre de todos esses personagens (retratados no samba de 1984) na hora de ir pra rua fazer campanha”. É pra gente não esquecer, portanto, de quem acorda de manhã cedo pra chegar no trabalho a tempo de bater cartão; da menina de laço de fita que batuca na marmita pra não ver o tempo passar; do trombadinha que, embora quase sempre se dê bem no trem lotado, se deu e se dá muito mal na vida o tempo todo. E eu não faço campanha pra candidato que se preocupa mais com as regalias do patrão mal-humorado.

Quatro anos atrás meu voto pra prefeito foi o mesmo. Na época ressaltei o envolvimento do candidato com a cultura popular e a importância disso para que pensemos uma gestão que não se aproprie indevidamente dessa cultura, mas que a valorize e valorize sobretudo quem a produz. A cidade que ainda pode se salvar é a das praças e das ruas, da roda de samba e do jongo, da fé que não mata a do outro e do convívio entre o sagrado e o profano. É a cidade que denuncia milícia e respeita os direitos humanos; que sabe, fundamentalmente, que tal respeito nada tem a ver com a defesa de bandidos, como geralmente apontam os que não se cansam de dizer a lamentável frase “bandido bom é bandido morto”.

Em entrevista ao jornal O Dia, ontem, Freixo declarou: “Não defendo bandido. Nunca fui filiado ao PMDB. Defendo o cumprimento da lei”. E explicou: “Sempre convivi com a violência. As pessoas costumam falar ‘no dia que alguém da sua família for vítima de violência, você muda de opinião’. Meu irmão foi brutalmente assassinado na porta de casa, com 34 anos, e nunca mudei uma vírgula do que penso. Não posso transformar vingança em justiça. Parece até que eu defendo que se estupre, assalte ou mate. Claro que não. Mas o fato de existir criminoso não dá ao Poder Público o direito de agir fora da lei. Se eu tiver que parar de falar em direitos humanos pra ser eleito, não serei eleito. Não pararei de falar. Não quero matar essa juventude. Quero escola de qualidade pra ela. Também não quero uma polícia que mata e morre”.

Como vivemos em um meio em que os direitos humanos são desrespeitados diariamente, o tema nos é caro e por isso mesmo essencial pra um espaço democrático que tenha o altruísmo como regra. O Rio de Janeiro que eu tanto admiro é feito letra do Paulo César Pinheiro, onde a gente prefere ouvir verso de samba a escutar som de tiro. A minha campanha é mesmo aquela que considera os personagens do samba de enredo da Em Cima da Hora e que acredita numa cidade feita por eles e para eles.

domingo, 21 de agosto de 2016

O que fica depois da Olimpíada

Foram três dias n’Os Imortais durante a Olimpíada. Dois almoços olímpicos — o risoto de rabada e a feijoada, coisas que não consigo ignorar num cardápio — e bolinhos de arroz, camarão e mais rabada. E chope, tanto chope que vieram até alguns de graça, pra comemorar gol do Brasil. Por mim essa Olimpíada não acabaria tão cedo, pra gente continuar com esses almoços e com os gritos de “chope, chope, chope!” ali na Ronald de Carvalho.

Saí da Arena de vôlei de praia e andei por Copacabana, depois de pegar muita chuva de manhã, com a camisa do Flamengo. Só tem flamenguista por aqui, diziam alguns desacostumados com o Rio, ingresso pro jogo da tarde na mão de um, boneco de pelúcia na mão de outro. Agora, que eu tô nostálgica com o fim do evento esportivo, quero um Vinícius de pelúcia no meu quarto. Mas que venham as Paralimpíadas com o Tom, que ainda tem muita coisa por aí.

No Parque Olímpico de dez a oito da noite, com alguns copos cheios de skol, a cerveja que não desce redondo, teve “bye, bye, tristeza” na voz de Sandra de Sá, bem no dia em que Robson Conceição ganhou o ouro pra depois criticar a redução da maioridade penal e defender as políticas públicas, mostrando que é mesmo um cidadão de ouro, independentemente da medalha: “Não acho justo punir crianças. Deveríamos é investir mais em projetos sociais e fazer crianças e adolescentes praticarem esportes”.

Foi o que também aconteceu com Rafaela Silva, da Cidade de Deus, que conquistou a primeira medalha de ouro do Brasil e me fez chorar em frente à televisão. Não tem nada mais bonito do que ficar comovido com a comoção do outro. E é exatamente isso que me faz torcer pelos atletas. A vida é esse paradoxo de ser contra a forma como tudo foi construído — e destruído — no Rio pra possibilitar o evento e ser a favor de quem se entrega e supera sobretudo a si mesmo no pódio, na água, no campo, na quadra.

O que fica, afinal, são os impulsos de humanidade. É o choro do Serginho ao se despedir da atuação no vôlei com uma medalha de ouro no peito; é a conquista de Thiago Braz; é o grito de alívio e de alegria dado quando Weverton defende o pênalti; é Isaquias Queiroz, incomparável, merecidamente cogitado a ser o novo nome da Lagoa Rodrigo de Freitas; é um passe entre Marta e Formiga; é o mergulho na Baía de Guanabara; é a Cidade de Deus em festa. Somos o choro que explode quando o riso não comporta a alegria.

domingo, 14 de agosto de 2016

Meu pai

Meu pai me lembra muito o meu avô. Os dois são mais de gestos do que de palavras. Era, o meu avô. Dizem a coisa mais bonita no silêncio. Dizia, o vô. Meu pai é a vida que corre em mim devagar; o acender da luz que alivia o medo do vazio que o escuro traz. Meu pai é choro de menino que termina em sorriso; é água calma de rio na madrugada. Eu sou o espelho do espelho que ele é. Coisa que não quebra, não muda e não deixa de pulsar no peito. Meu pai é coração batendo forte feito amor que não acaba. Meu pai é o menino que me dá a mão.

E de mãos dadas sigo com ele, porque só encaro esse mundo com a leveza de carregar comigo o muito do tanto amor que sinto. Ando por aí com o sol me obrigando a franzir a testa e procurando no fio de luz desenhado no azul as cores que vêm e vão e vêm e vão de um lado pro outro, criança de bermuda soltando pipa que vem e vai lá em cima. Muita vez e outra sou de novo a menina que passeava de moto com meu pai, que jogava bola com gol no portão, que andava de bicicleta dando voltas na garagem do prédio, que esperava ele chegar do trabalho pra espalhar brinquedo e mais brinquedo pela cama.

Sou aquela que chora ouvindo o espelho de João Nogueira, que abraça de repente, que morre de medo, que agradece e que sabe que amor assim brota quando a gente nem é gente ainda e não acaba mais, feito reflexo de sol em olho entreaberto: cega, é mais forte que o conseguir enxergar; cega, de tanto amar. Meu pai é impulso de vida pra minha vida, é inspiração que faz seguir em frente, é presente cheio de passado e de futuro. Nosso tempo conta os meus sorrisos abraçados aos dele.

Somos feitos de escassez, de amor que é raro hoje em dia. Precisamos só do pouco espaço que comporta abraço apertado e do muito tempo que abrange a eternidade do mesmo abraço. Somos feitos do mínimo, do que não gosta de extravagância. Pra gente o excesso só existe no sentimento do mundo, na rosa do povo. Seguimos de mãos dadas. Somos espelho um do outro, coisa que não quebra, não muda e não deixa de pulsar no peito. Meu pai é coração batendo forte feito amor que não acaba.

domingo, 7 de agosto de 2016

Brasil, pra mim

Fiquei com preguiça de fazer a minha, mas andei lendo algumas análises sobre a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos: opiniões que ora elogiavam, ora reclamavam. De um lado os que se preocupavam demais com a imprensa internacional, de outro os que sabem que festa nossa tem de ser boa é pra gente mesmo. Assim como a cidade, por exemplo, deve ser avaliada por quem vive nela diariamente, e não por quem visita, faz umas selfies e vai embora. Mas isso é outra história, que daria portanto nova crônica.

Um espetáculo, como foi o que vimos ali no Maracanã, impressiona pela beleza. Os ensaios e as coreografias, a estrutura e o projeto, tudo tem a capacidade de prender a atenção. Mas o que encanta, o que mexe com a gente cá dentro não tem a ver com a grandiosidade da pirotecnia, e sim com a miudeza da tradição que o pai me disse que é lanterna. Bem mais que o modernoso, como canta Moacyr Luz às segundas.

O que me encantou, o que mexeu comigo cá dentro foi Paulinho da Viola, com banquinho e violão, cantando o hino nacional, tão diferente dos que o entoam em manifestações juninas. Porque quando Paulinho cantou eu ouvi o Brasil que valoriza sua cultura popular; que se reinventa por meio do riso; que encontra espaço pro sagrado e pro profano; e que troca esta terra de doutor por uma terra que valoriza o sambista.

E nela eu vi Wilson das Neves lembrando a batucada na caixinha de fósforo, vi chama que não se apagou nem se apagará, vi águia sobrevoar Madureira, vi menino pegar manga na mangueira. Coisa fina, sinhá, que ficou ainda mais bonita com os passos do pequeno Thawan Lucas, que mostrou a elegância do samba aos oito anos de idade. Depois de assistir a isso, a gente concorda mais uma vez e sempre com a voz de Candeia afirmando que "vive melhor quem samba".

Vive melhor também quem cria alternativas pra adequar a cidade que temos à cidade que queremos, numa resistência que se assemelha às palmas dos batuqueiros da Festa da Penha quando foram proibidos de usar seus instrumentos musicais. A comoção de ver Wilson das Neves e Paulinho da Viola na cerimônia de abertura, sobretudo pelo que ambos representam, se parece com a que muita gente teve ao acompanhar o tour etílico da tocha.

Passando pelos bares de Copacabana e terminando no Sat’s pra reverenciar Agnaldo, garçom e churrasqueiro do bar, o povo cachaceiro reafirmou que meu Brasil é feito de gente assim. E é por esse Brasil que eu torço e choro e vivo.

domingo, 31 de julho de 2016

O justo e necessário ensino superior gratuito

Depois da abertura do impeachment no Congresso, com direito a pato amarelo, boneco inflável e bateção de panela, o que mais a gente vê é notícia de propostas inacreditáveis atualizando a timeline. Às ideias de aumentar o tempo de trabalho e de pôr fim à universalização do Sistema Único de Saúde (SUS) se soma agora a de acabar com o ensino superior público e gratuito. Isso porque o programa Ciência Sem Fronteiras, que possibilita o aprimoramento de estudantes e contribui para uma formação não só profissional mas também pessoal, já chegou ao fim na graduação.

No domingo passado, o jornal O Globo defendeu que a medida de acabar com o ensino superior público e gratuito seria essencial para a economia. Alegando ser essa a melhor forma para equilibrar as contas públicas, houve ainda a tentativa de argumentar no texto que o ensino superior gratuito é um "mecanismo de injustiça social, pois favorece apenas os ricos, que tiveram melhores condições educacionais para passarem no vestibular". Que os cursos privados de pré-vestibular oferecem grandes oportunidades de ingresso nas universidades é verdade, mas é também verdade que a aprovação no vestibular não é exclusividade de quem pode pagar os tais cursos.

Se analisarmos apenas a escrita do texto, encontramos o problema da restrição supostamente taxativa no termo "apenas". Não, não são apenas os ricos que garantem uma vaga na faculdade pública. E com isso identificamos outra problemática: a intenção do governo de retirar a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). É sobretudo nas aulas de redação que discutimos a produção do texto escrito, a capacidade de argumentar e de não generalizar nem ser equivocadamente taxativo ao desenvolver um assunto. A utilização do "apenas" da mesma maneira que foi usado no texto d’O Globo, por exemplo, não caberia em uma redação preocupada com a veracidade das informações.

Já no que diz respeito ao conteúdo da matéria, o jornal deixa clara a preferência pela exclusão de quem mais precisa desse ensino superior — que, sabemos, não são os ricos. O interesse em retirar oportunidades dos que já pouco têm é o principal objetivo por trás do discurso de buscar o equilíbrio econômico. Além disso, um governo associado ao corte de bolsas, como fez com noventa mil bolsas do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), não tem credibilidade alguma para garantir que, tornando as universidades privadas, poderá oferecer bolsas de estudo a todos aqueles que não puderem se comprometer com o pagamento de uma faculdade.

No mais, é evidente que a universidade pública vira pauta de um jornal comprometido com o interesse dos donos do poder — com exceção dos profissionais dignos que nele trabalham — quando passa a ser frequentada por pobre e por uma gente que, aos olhos da Casa Grande, continua sendo inferiorizada. O Brasil, no entanto, é feito de resistência e subversão. E a gente subverte o falacioso discurso econômico porque sabe que no fundo o que ele vergonhosamente reitera é o preconceito.

domingo, 10 de julho de 2016

Escola sem partido

Assisti anteontem ao Roda Viva que foi ao ar na segunda com Leandro Karnal. Confesso que fazia tempo que eu não via o programa, mas valeu a pena dedicar uma hora e meia do dia a ouvir o historiador. Sobretudo porque me fez lembrar meus últimos anos no Pedro II.

Foi no final do ensino médio que me dei conta da formação humana e política que havia adquirido no colégio. Campanhas, plenárias, greves, passeatas e aulas com reflexão, com diálogo, com apresentação de ideias. Nossa visão de mundo depende não só de nosso próprio ponto de vista, até porque, segundo Leonardo Boff em seu livro A águia e a galinha, “todo ponto de vista é a vista de um ponto”.

Eu recordei tudo isso quando Karnal afirmou que “o Escola Sem Partido é uma asneira sem tamanho, é uma bobagem conservadora, é coisa de gente que não é formada na área”. Os diálogos que presenciei no Pedro II e o posicionamento crítico de professores e alunos são fatores que, sem dúvida, precisam fazer parte da educação e da formação escolar dos discentes.

A subversão acontece a partir de reflexão, de conscientização. E nada tem a ver com imposição de ideologia, uma vez que ocorre justamente pra resistir à ordem silenciosa que foge de diálogo.

“Precisamos construir a luta contra o preconceito, contra a misoginia, contra a violência contra as mulheres, contra a violência do racismo”, comentou o historiador. Uma escola que não toma partido é omissa e não se compromete com essa luta.

Recentemente, estudantes do Colégio Pedro II de São Cristóvão fizeram uma intervenção em favor da diversidade. No momento em que lidamos com a tristeza de saber que o aluno Diego Vieira Machado da UFRJ vinha recebendo ameaças por ser gay e foi encontrado morto na universidade, iniciativas como a desses estudantes é um alento para permanecer resistindo e construindo a luta de que falou Leandro Karnal.

Em um mundo com tanto discurso de ódio, não se pode negligenciar uma educação que preze pela empatia.

domingo, 3 de julho de 2016

Do mal será queimada a semente

Ouvi Nelson Cavaquinho na voz de Clara Nunes cantando “a luz há de chegar aos corações, do mal será queimada a semente” quando, em menos de uma semana, Bolsonaro se tornou réu no Supremo Tribunal Federal por fazer apologia ao estupro e recebeu processo do Conselho de Ética por exaltar a tortura.

Num episódio em que afirmou que só não estupraria a ex-ministra de Direitos Humanos Maria do Rosário porque ela não merecia, o deputado mostrou — como já fez em tantos outros casos — sua ausência de valores e consequentemente sua incapacidade de usar a política como instrumento de luta por direitos. Bolsonaro também acabou sendo acusado por injúria, com queixa acolhida pelo STF.

Até que é bem coerente para os arautos da meritocracia que o congressista — aclamado por muitos como o presidente de 2018 — seja merecidamente acusado e julgado pelos crimes que comete e pelos absurdos que proclama.

Mas a voz de Clara Nunes se calou no instante em que li que uma faxineira foi demitida por ser mãe solteira. Afinal, como já vi compartilharem por aí nas redes sociais, “feio não é ser mãe solteira, feio é ser pai quando convém”. E é inacreditável que mesmo as mulheres, que precisam de disposição pra encarar todo dia o machismo, usem um discurso tão cheio de preconceito como justificativa pra demissão; como justificativa pra qualquer coisa, na verdade. Ao que tudo indica, a maldade ainda está longe de desaparecer.

Mais um exemplo disso é o espacamento de Luíza Brunet pelo ex-namorado, que a agrediu a ponto de quebrar quatro costelas da atriz. A coragem de denunciá-lo, por sua vez, faz a gente continuar querendo ter olhos pra ver a dignidade aparecer. Porque é muito fácil assumir a postura covarde e vergonhosa de agredir uma mulher e depois tratar a denúncia do crime como “versão distorcida”.

E isso fica ainda mais fácil quando se tem uma imprensa que atenua o caso; quando se tem uma delegacia que prefere não se meter muito em “briga de casal”; ou quando se tem um cidadão que pergunta o que a mulher fez para ter sido agredida.

Legitimar o estupro, o preconceito com a mãe solteira e a agressão à mulher é optar pelo lado mais perverso na história do bem e do mal. Para que a esperança da música Juízo Final não nos deixe, é preciso permanecer com a tentativa de queimar a semente do machismo que mata diariamente.

domingo, 26 de junho de 2016

Pois era noite de São João

Só fiquei triste quando o dia amanheceu pois era noite de São João. No Beco das Sardinhas, bandeirinhas coloridas enfeitavam o nosso olhar em direção ao céu. Luiz Gonzaga e Dominguinhos cantavam pra gente enquanto sorteavam o bingo. E as crianças, que nos mostram a todo momento a importância de sermos pequenos, corriam e pulavam e tentavam acertar a boca do palhaço.

 

Teve maçã do amor, hambúrguer de costela, quentão, cerveja artesanal e latão; teve coxinha de pernil, canjica, milho e quindim; teve também brigadeiro, porquinho de quimono, pastel e brownie. Teve comida popular e gourmet. Porque o Brasil que conheço e do qual faço parte é feito mesmo dessa mistura que o torna singular.

 

E meu Rio de Janeiro é feito de recordações das ruas onde passei. Com roda de coco e casamento com oração rastafari, diante da diversidade a gente sorri e sente vontade de também entrar na roda pra girar a saia. No meio da rua, a quadrilha mostra essa nossa ébria capacidade de fazer a festa ficar bonita.

 

Depois da dança das cadeiras, não podia faltar a corrida do saco, um, dois, três, valendo, e a gente quase cai, e continua levando a vida a sorrir, que é o que importa. Barraca do beijo, chapéu de palha e pescaria. Ouvi dizer que comeram o melhor hambúrguer da vida ali, no Arraiá da Rua da Valinha.

 

Olha pra rua, meu amor, vê como ela está linda. Entre uma e outra dança, entre uma e outra brincadeira, a alegria deixava o mês de junho multicor como o balão que some no céu. E depois de ver e viver tudo isso, voltei pra casa sabendo que as noites de São João no Beco das Sardinhas marcaram a alma encantadora do Rio.


domingo, 12 de junho de 2016

Nada em troca


Depois de ter visto O segredo dos seus olhos, um dos meus filmes favoritos, Ricardo Darín também se tornou um de meus atores preferidos.

Há poucos dias assisti a um filme em que sua brilhante atuação é percebida em gestos mínimos, em hesitações, em sorrisos forçados. Ele interpreta Julián, um homem diagnosticado com câncer terminal.

Quando a porta de sua casa abre pra receber o amigo que veio do Canadá, a expressão de Julián já demonstra a profundidade do filme. Truman revela inquietudes por meio do silêncio.

Apesar desse silêncio, Julián não é um homem que evita falar o que sente, diferentemente de Tomás. Sem hesitar em afirmar que o que importa mesmo são as relações que temos ao longo da vida, como a amizade entre os dois, ele ainda faz questão de dizer ao amigo o que este lhe ensinou. Tomás tenta mudar o assunto, por ser contido e meio sisudo, mas Julián insiste em dizer que aprendeu com ele que não devemos pedir nada em troca àqueles de quem verdadeiramente gostamos.

Julián, desejando alguma manifestação do amigo, pergunta o que Tomás havia aprendido com ele depois de tantos anos de convivência. E a resposta diz respeito à coragem: "Você sempre encarou tudo". De fato, surpreende a maneira racional como ele encara a morte, a ponto de ir a uma funenária consultar os planos oferecidos. É nesse momento, aliás, que se dá conta de sua insignificância: em caso de cremação, as cinzas cabem em uma caixa bem pequena.

Por ser um filme realista, as reações das pessoas podem não ser como esperamos. Quem tem dificuldade de expressar sentimentos não muda de uma hora pra outra, nem em uma situação extrema referente à morte de um amigo. Tomás, por exemplo, retorna de viagem sem conseguir dizer a Julián o quanto o acha incrível. A frieza incomoda, mas é real.

Com a agonia de saber que alguém está em seus últimos dias de vida, em Truman percebemos o tempo passar nos mínimos detalhes do dia a dia, como no taxímetro rodando ou na colher mexendo o café. Cada minuto ganha uma importância inimaginável.

Preocupado sobretudo em achar alguém minimamente confiável para adotar o cachorro nesses seus últimos dias ao lado dele, Julián faz o que pode  —  até mesmo o que a rigor não poderia  — para que não fique sozinho após sua partida. E emociona ao deixá-lo passar um dia na casa de uma possível família adotiva.

Embora Truman não apareça tanto nas cenas, longe de abordarem uma história como a de Marley & eu, faz todo sentido seu nome ser o título do filme. Além do mais, tempos depois das gravações, o cachorro que interpretou Truman faleceu e Darín chorou por uma semana. O que importa, afinal, são as relações que estabelecemos ao longo da vida.

Após quase duas horas de convívio com Tomás, dá pra gente também aprender que não vale a pena silenciar tanto o amor.

Assim que o filme terminou, desliguei a televisão e me lembrei de quando decidi tirar a máscara que usamos diariamente e dizer “eu te amo” àqueles que são importantes pra mim. A vida passa a ter leveza. E pra isso nem precisamos de uma data especial.

domingo, 5 de junho de 2016

Quase da família

As telas do cinema mostraram que a empregada doméstica e babá do filho dos patrões, apesar de ser quase da família, não pode deixar de saber qual é seu devido lugar na casa onde trabalha e, por extensão, sua representação simbólica na sociedade. "Que horas ela volta?" nos colocou frente à realidade classista que menospreza o estudo da filha da empregada em um colégio público e provoca indignação com o fato de ela passar no vestibular enquanto o filho dos patrões, instruído nos colégios mais caros, é eliminado do processo.

Além disso, o filme apresenta uma situação em que a empregada, embora compre um conjunto de xícaras com todo carinho para a patroa e embora seja bem tratada ao presenteá-la, é ordenada a não tirar as xícaras do armário porque não servem para receber os convidados da aniversariante. Em uma das cenas mais comoventes, a empregada volta com as xícaras para a cozinha e a gente percebe que não importa mesmo, nessas horas, que ela seja quase da família.

Vimos também em outro filme que patroas brancas desejavam que fossem construídos banheiros separados para uso de suas empregadas negras, alegando "questão de higiene". Segundo uma das patroas retratadas em "Histórias Cruzadas", a justificativa absurda é que "elas carregam doenças diferentes das nossas".

Sabemos, no entanto, que não é preciso recorrer a uma obra ficcional para ter dimensão da ideia veiculada por um uniforme branco. Há poucos dias, no Brasil, a proibição de uso do mesmo banheiro feminino foi defendida por uma "questão de educação". Foi o que disse uma das sócias do Country Clube do Rio sobre a placa que proíbe a entrada de babás no banheiro das sócias: "A proibição de entrar no banheiro não é para humilhar, é pela ordem para que não vire uma bagunça. Algumas babás não têm educação". Ou, ainda, por "questão de ordem e disciplina", como tenta argumentar outra sócia: "Não tenho preconceito, mas as babás não necessariamente são pessoas extremamente educadas. Infelizmente, nem todas as classes têm acesso à mesma educação. Elas não necessariamente vão puxar a descarga ou deixar o banheiro limpo. Não é nada contra as babás. É questão de ordem e disciplina".

Curioso é que as pessoas que vergonhosamente reclamam da falta de educação das babás são as mesmas que sequer dirigem um "bom dia" a elas. A questão da educação, nesse caso, é mais uma desculpa para tentar legitimar o preconceito. O que incomoda, afinal, não é a falta de educação — que independe de classe social —, é dividir o mesmo espaço com quem se deu conta de que seu lugar na sociedade não deve ser ordenado por ninguém que se julgue superior aos demais.

domingo, 29 de maio de 2016

A culpa não é nossa

Vi uma menina andando de bicicleta em frente ao Engenhão, o estádio Nilton Santos, e, durante os minutos que a mãe contava para registrar a corrida que a filha fazia em sua bicicleta de rodinhas, desejei que ela crescesse, como todas as outras pequenas meninas que brincavam ali, envolvida numa força que pudesse livrar todas nós, mulheres que andamos nas ruas, do mal que se revela em cada esquina, em cada calçada, em cada ponto de ônibus.

Caminhando em torno do estádio, vi homens conversando e senti nojo de seus olhares, mesmo que não fossem para mim. Constantemente sinto nojo dos olhares dos homens nas ruas. A agressão diária incomoda e causa asco. Parei pra comprar água e uma senhora me atendeu, simpática, com um pouco de conversa. Pensei em tudo que ela pode ter sofrido ao longo da vida, em todos os olhares que lhe deram nojo, em todas as mãos que lhe causaram repulsa, em todos os homens que lhe despertaram ódio. A menina na bicicleta havia ido para casa sem saber dos enfrentamentos que infelizmente terá de suportar.

Eu segui, no ônibus, com o aperto no peito que dá toda vez que me lembro da notícia de que trinta e três homens se aproveitaram de uma menina, de uma menor, de uma mulher. Um aperto no peito que incomoda, causa nojo, repulsa e ódio. Não quis ver o vídeo criminosamente divulgado, muito menos ler os comentários muito mal intencionados. Porque, pra ser estuprada, não importa a roupa, não importa o comportamento, não importa nada, somente o fato de ser mulher. Não é a roupa ou o comportamento que provoca, é o homem que pratica a desumanidade ali, junto de muitos outros que veem na mulher a fragilidade, a submissão, o objeto a ser usado quando decidirem usar.

Mas não. Não há fragilidade na gente, nem submissão, tampouco a disponibilidade de servir a qualquer momento a um bando de machistas porque cruéis, ou de cruéis porque machistas. A ordem, aqui, não altera o significado. Eu desci do ônibus e me reconheci em cada mulher que passava por mim, em cada mulher que fica indignada todo dia com a completa ausência de respeito pelo seu corpo, pelo seu pensamento, pelas suas ideias, pela sua existência. Porque basta existir como mulher pra ser julgada.

Que o mundo daquela menininha de uns oito anos que andava de bicicleta lhe explique que ela pode, sim, usar o tipo de roupa que quiser; que ela pode, sim, frequentar o lugar que ela gostar; que ela pode, sim, ter o comportamento que bem entender; e que ela pode, com toda certeza, dizer “não” a quem ela decidir dizer “não” quando simplesmente não estiver a fim. E que ela saiba, nesta sociedade que insiste em tentar tirar de nós tal sabedoria, que nos inúmeros casos de estupro a mulher não tem culpa.

Eu entrei em casa com nojo das sessenta e seis mãos que esfregaram, sem direito algum, o corpo de uma mulher em Santa Cruz. E fechei a porta com medo, mesmo sabendo que jamais ficarei em silêncio.

domingo, 22 de maio de 2016

Mesóclise

Lembro nitidamente que, no terceiro ano do ensino médio, achei incríveis as regras de uso dos pronomes oblíquos átonos. Eu me dediquei a entender como a coisa funcionava e passei a gostar de identificar alguns equívocos que geralmente ocorrem nos textos jornalísticos. Quando me foram apresentadas as possíveis colocações pronominais, no entanto, percebi que muitas delas eram estranhas, um troço que na verdade não era usual.

No primeiro teste aplicado pelo professor, havia uma questão que pedia a transformação de expressões por pronome. Confesso que pensei na resposta que dias depois descobri ser a adequada, mas na hora achei tão esquisita que resolvi arriscar outra possibilidade. Naturalmente, errei a questão. Mas compreendi que a gramática tem disso, mesmo entendendo a gente tenta buscar outra alternativa. O que muita gente não aceita é que todas as alternativas têm seu porquê. E são legítimas porque se encaixam em seus contextos próprios.

Memorizei muitos dos condicionamentos que levavam à próclise, à ênclise e até à mesóclise. Depois isso fica meio automático e, ao estabelecer certo domínio em relação ao tema, aquele deslumbramento inicial passa e a gente vê que ninguém fala mesmo daquele jeito. A coisa serve basicamente pra acertar uma múltipla escolha em prova de português. Ou então pra ser pedante, já que o brasileiro, em relação ao uso da tal mesóclise — e também da ênclise — na fala, prefere acender um cigarro e resmungar um “deixa disso, camarada”.

Com exceção da palavra “camarada”, foi exatamente o que pensei que poderiam dizer ao presidente ilegítimo quando fiquei sabendo do seu discurso com mesóclise. “Deixa disso, golpista”, substituindo o vocativo pra adaptá-lo ao sujeito em questão.

As línguas sabidas e sabichonas se enchem de pompa por verem um presidente falando “sê-lo-ia” e utilizando ênclises inusuais, mesmo em casos em que o pronome esteja empregado em desacordo com a gramática. O que tanto criticam em seus inimigos políticos passa despercebido aos olhos de quem tem sua norma culta particular. Falam em nome do povo mas se distanciando dele linguisticamente. É preciso mostrar barreiras e excluir, de modo sutil mas não menos perverso, aqueles que iniciam frase com um pronome oblíquo átono e não estão nem aí pra pronome no meio de verbo. Me poupe.

Eu, que lido com texto a todo tempo por ser da área de Letras, quero mais é distância da mesóclise do Temer. Temei a mesóclise, caro leitor. Não pela dificuldade de usá-la, porque isso é bobagem, mas simplesmente por uma questão política. Não é dos homens de bem — ou de bens — que o país mais precisa, e sim do bom negro e do bom branco da nação brasileira que dizem todos os dias “me devolva a democracia”.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O Regresso


Depois do sucesso obtido em Birdman – o longa foi premiado no Oscar como melhor filme, fotografia, roteiro original e direção –, o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu leva às telas uma adaptação do romance de Michael Punke, The revenant: a novel of revenge. O Regresso mostra as inóspitas e surpreendentes condições de sobrevivência de Hugh Glass (Leonardo DiCaprio), um guia de uma expedição de caça que, após ser gravemente atacado por um urso, é abandonado por iniciativa de Fitzgerald (Tom Hardy), principal encarregado de acompanhá-lo até o momento de sua morte. Além disso, o filme também gira em torno da vingança de Glass em relação a Fitzgerald por este ter matado seu filho. No roteiro de Iñarritu e Mark Smith, o assassinato funciona, dessa forma, como impulso que motiva toda a jornada do protagonista.

Impressiona no filme o realismo das cenas, sobretudo no momento do ataque do urso, em que a agonia, o nojo e a compaixão com o personagem são automaticamente acionados no espectador que se encontra ansioso para que o embate logo termine. Ao mesmo tempo que essa proximidade com o real seja valiosa para o filme, existem pontos, porém, que se distanciam de uma realidade plausível, como a relativamente rápida recuperação do protagonista ou até mesmo o fato de ele não ter perdido sua garrafa enquanto era arrastado nas águas por uma brutal correnteza. Os detalhes duvidosos, contudo, ainda comprometem menos a narrativa do que os flashbacks relacionados à vida pessoal de Glass, que surgem inoportunamente e que poderiam ser descartados sem que a compreensão ou a dramaticidade fossem prejudicadas por isso.

No entanto, o trabalho técnico de O Regresso se revela incrível pelas perspectivas proporcionadas pela câmera, seja na batalha inicial contra os índios – o público acompanha todo o conflito diante de uma lente que capta os homens, um a um, à medida que são atingidos, fator que o aproxima ainda mais desse momento caótico –, seja no foco em relação aos personagens, de modo que a aproximação permitida pelos closes manifesta também uma aproximação a suas experiências emocionais, como acontece, por exemplo, quando percebemos toda a dor de Glass no instante em que a câmera registra de muito perto apenas o seu rosto após o ataque do urso. Outro aspecto que desperta a atenção é a opção do diretor de destacar e, mais do que isso, lembrar que há alguém por trás da câmera: é o que ocorre quando a lente embaça com a respiração do personagem ou, ainda, quando é manchada por respingos de sangue provenientes da luta final entre Hugh Glass e Fitzgerald.

Diante dessa câmera que o flagra tão de perto, Leonardo DiCaprio tem uma atuação brilhante no filme, sobretudo porque grande parte de sua comunicação não ocorre por uma linguagem verbal, o que consiste na alta capacidade do ator de expressar-se fisicamente, por meio de respirações pesadas e sussurros e em sua total entrega para isso. Tom Hardy, que interpreta o antagonista Fitzgerald, também se destaca ao ser capaz de apresentar um vilão cujas expressões faciais já bastariam para revelar sua insanidade e sua falta de altruísmo. O simples modo de falar, com uma dicção não tão nítida, por exemplo, é outra característica que particulariza esse personagem que demonstra a todo tempo impaciência e fúria.

Ainda que DiCaprio tenha feito um trabalho admirável – considerando também os sacrifícios como ter de comer fígado cru, enfrentar temperaturas muito baixas e carregar uma pele de urso de quase cinquenta quilos –, a construção de seu personagem não parece tão profunda quanto poderia ser. Foi brilhante, mas não impecável. Fica para o espectador a sensação de ter se comovido mais com o ator Leonardo DiCaprio, devido às condições a que se submeteu para que o trabalho desse certo, do que com o personagem Hugh Glass, que sobreviveu ao ataque de um urso, viu o filho morrer e percorreu uma jornada dificílima para se vingar.

Com suas doze indicações ao Oscar, o inegável acerto de O Regresso, a meu ver, é a fotografia. O trabalho de Emmanuel Lubezki é o que dá mais vida ao filme, o que mais comove a plateia e o que mais a insere de algum modo na trama. As paisagens que aparecem na tela e, principalmente, a maneira como elas são registradas expressam incrivelmente o plano emocional da história, como se cada imagem proporcionasse uma reflexão acerca do sofrimento de Glass. Nesse sentido, o conjunto da obra é favorecido e O Regresso se afirma como um bom filme.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Vivendo Vinyl


Não vivi os anos 70, mas estou vivendo Vinyl. Parei pra ver o episódio de duas horas que estreou no domingo apenas na quinta-feira. Mesmo desconfiando de que viria coisa boa por se tratar de um trabalho de Scorsese e Mick Jagger juntos, assisti sem muita expectativa e sem esperar nada mais do que a temática abordaria: sexo, drogas, rock’n’roll. Só que foram duas horas de cenas que me prenderam até o fim em um piloto nem um pouco cansativo.

Embora eu não tenha vivido os anos 70, passei a conviver com um Richie Finestra sendo muito bem interpretado por Bobby Cannavale. Richie é um executivo de música que adora o que faz e, inquieto e inconsequente, enche os olhos de lágrimas ao entrar em uma casa de show pequena e ver e sentir o que uma banda fazia em cima de um palco também pequeno. Mas ali tudo se revelava grandioso aos olhos do personagem. Richie comove quando se vê diante do fracasso, como acontece no momento em que, alucinado, toca guitarra em pé no sofá da sala, faz o filho sorrir sem entender e decepciona a esposa.

Fundador e presidente da American Century Records, gravadora que no início da década de 70 corre o risco de ser vendida à PolyGram, ele tenta encontrar um meio de recuperar o sucesso de sua empresa e, ao mesmo tempo, precisa lidar com problemas pessoais que o levam a uma crise existencial. Um de seus conflitos internos, por exemplo, se refere ao caso de Lester Grimes (Ato Essandoh), um cantor de grande talento que colocou sua carreira nas mãos de Richie mas não obteve resultados satisfatórios com o empresário que se viu obrigado a abandoná-lo.

Por meio de tudo que ocorre na vida do protagonista, Vinyl explora a indústria musical por uma ótica interna proporcionada por quem acompanhou isso de perto e, portanto, contextualiza muito bem o período. Somando a experiência de Mick Jagger a características próprias de Scorsese, como as cenas violentas das quais não abre mão, a série mostra que uma flor pode nascer na rua e furar o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio, porque revela a beleza por trás de um ambiente torpe. De alguma forma, a gente acaba vivendo os anos 70. E diante da vida que desperta em quem está assistindo, Vinyl tem tudo pra dar certo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Saia rodada

Rodavam as saias das meninas e dos meninos. Purpurinas enfeitavam o rosto, estrelas coloridas formavam constelações até então desconhecidas. Serpentinas espalhadas pelo chão e penduradas nos fios presos aos postes eram a fantasia das ruas. Continuavam a rodar as saias, um movimento que levava ao sorriso de quem acompanhava. Alguns batiam palmas, outros nem se mexiam, extasiados. As saias de meninos e meninas rodavam a roda viva de Chico, roda mundo, roda pião. Queriam voz ativa em cada saia rodada.

Dançavam tentando esquecer que pra alguns menino de saia não pode, e saia curta em menina também não. Dançavam para espantar as negativas sem sentido que tantos sopram ou gritam como se só a ordem importasse. Desordenavam a dança numa organização dionisíaca. Olhavam-se uns aos outros com muito riso, muita alegria. Crianças pediam aos pais para tocar o tambor que fazia as saias se movimentarem e rodarem a roda viva do mundo que cresce. Palhaços de rosto branco usavam a menor máscara, o nariz vermelho que não esconde nada, e surpreendiam foliões também em ritmo de tambores e vozes roucas de todo o carnaval. Todos tinham, ali, o nariz vermelho.

Em algum canto havia gente apanhando de cassetete da polícia, rodavam as saias meninos e meninas, cerveja sem patrocínio não podia, que não dava lucro pra quem já tem bastante. Uma polícia que mata tomava conta do carnaval, trazia lema e divisa e não queria deixar a gente botar o bloco na rua. A alegria incomoda. Foi assim também na festa da Penha, há tempos, quando proibiram a diversão traduzida em manifestação cultural. Mas suportaram a ausência de instrumentos na palma da mão, na caixinha de fósforo, no batuque na panela. Madame não gosta que ninguém sambe e é preciso sim discutir com madame. O lalaiá sempre resiste.

Cantando um samba, desceu a ladeira de Santa Teresa e, aos pés da Lapa, o Pierrô encontrou a Colombina. Beijos de carnaval às vezes poucos, às vezes muitos. É o céu na terra que supera a violência alheia e desfila novamente. As saias rodam, dançam coco, meninos e meninas suam e sorriem, rodam a beirada da saia, saltam, sobem, cisco no olho de quem chora. Há muita beleza na lágrima dos que choram, imersos naquela alegria. Espumas caem do alto, a cidade apaga a neblina e pinta em si um novo quadro de cores pra todo lado, formas difusas e confusas, desenhos difíceis de serem lidos. A existência humana, assim como esses desenhos, também não é fácil de ser entendida. Rodavam as saias das meninas e dos meninos. Todos tinham, ali, um nariz vermelho.