quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Diplomas emoldurados


Numa sociedade em que é comum ouvirmos "ele é engenheiro civil, melhor do que você" e de doutores pra lá e pra cá que se acham superiores ao que consideram o restante dessa sociedade, os diplomas acabam se escondendo nas gavetas de quem estudou e pesquisou durante muito tempo, enfrentando dificuldades que a maioria nem toma conhecimento, para que seja evitada a imagem atrelada ao egocentrismo, à soberba e ao orgulho vazio. Em resumo, para que uns não sejam confundidos com muitos que não sabem (ou sabem e ignoram) o que é humildade.

Nunca quis colocar um diploma meu num quadro. Mas tenho pensado bastante na vida e me lembrei de uma história que minha mãe conta: quando eu fui pra escola pela primeira vez, ela, diferentemente das outras mães, ficou frustrada porque eu me despedi e não olhei pra trás, sem choro, nada. Ela foi embora se perguntando por que eu não chorei, com vontade de tentar me explicar, secando minhas lágrimas de filha que não queria ficar longe de casa, que mais tarde eu iria embora e que a escola seria um lugar legal pra mim. Não foi preciso. Eu dei tchau e entrei. Acho que aí já estava moldada a minha relação com o estudo. Eu sabia que meu caminho só poderia ser traçado por ali, pela pesquisa, pela leitura, pelo conhecimento.

Fui uma criança e uma adolescente que me cobrava muito, muito mais do que meus pais, que nem precisavam me cobrar. Depois de um tempo, a gente avalia isso e percebe o que tem de positivo e o que tem de negativo, mas, na verdade, eu tenho consciência de que faria tudo basicamente da mesma forma, se me fosse dada outra oportunidade. Ontem emoldurei meus diplomas (graduação, premiação machadiana e mestrado) para dar de presente àquela menina que sempre se empenhou e sempre valorizou a educação. 

Na adolescência, ouvi aquele trecho de música que diz "nem por você, nem por ninguém, eu me desfaço dos meus planos" e pensei muito nele. A quantidade de mulheres que se desfaz de seus planos é muita. Não é fácil. Nunca foi. Em geral, mulher abre mão de muitas coisas pra não se desfazer de seus planos. Mas é preciso ter força, é preciso ter raça e é preciso ter sonho sempre.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Dentro de um livro


Desde o mês retrasado eu tenho escutado um álbum que me marcou bastante. Quando eu era pequena, pedia com frequência à minha mãe que colocasse o Perfil da Adriana Calcanhotto pra tocar. Arrisco dizer, sem muita certeza, que "Inverno" era a minha preferida, até porque me fascinava a ideia de o dia mais feliz de uma pessoa ser lembrado pelo olhar de outra espelhando a passagem de um avião até ele sumir.

Também me agradava muito o início de "Esquadros": "Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome". Não sabia quem era Almodóvar nem Frida Kahlo na época, naturalmente, mas ignorava isso porque, havendo quem não soubesse o nome de algumas cores, não seria grave que eu não soubesse o significado daquelas palavras desconhecidas. Por outro lado, eu me dava conta de que me identificava com essa coisa de andar pelo mundo prestando atenção nas cores.

São três os episódios que até hoje guardo, ocorridos enquanto eu andava não pelo mundo, mas pela cidade: quando, por volta de um seis ou sete anos, vi uma menina de fralda com a mãe numa calçada, ambas sentadas no chão ao lado de potes transparentes com tampas coloridas – aquilo me impressionou tanto que passei o dia pensando nelas, comentando com a minha mãe a imagem que, hoje sei, me fez refletir sobre o quão penoso é andar pelo mundo "vendo doer a fome nos meninos (e nas meninas) que têm fome"; no dia em que, criança, sem saber eu impedi o roubo de um videogame num shopping, porque o moço pegou a embalagem, percebeu que eu estava acompanhando tudo e ficou imóvel me encarando, até devolver o produto com uma expressão pálida de quem me pedia silêncio; e na vez em que da janela de uma casa em Vila Isabel eu vi um policial sendo agressivo com um menino na rua deserta em que estávamos.

Todas essas cores – o colorido das tampas dos potes com comida e o negro da menina e da mãe, do rapaz que hesitou em levar o videogame e do menino agredido pelo policial que abusava da própria autoridade e do próprio preconceito – fizeram parte da minha formação. E aí compreendo com facilidade por que eu já gostava de repetir trechos como “eu gosto dos que têm fome, dos que morrem de vontade, dos que secam de desejo, dos que ardem”. Aqueles personagens reais da minha infância, afinal, representavam tudo isso: a fome da mãe e da filha na rua, a vontade enorme do rapaz de ter videogame ou dinheiro, o desejo doloroso do menino de ser respeitado e sua raiva ardente originada da humilhação seletiva do policial, com a mão pesada levantada sem dó na direção de quem é negro e pobre.

As cores de Almodóvar e Frida Kahlo contrastavam com a capa acinzentada do álbum da Adriana Calcanhotto, mas lembro que, coerentemente, me soavam tristes canções como "Devolva-me", "Mentiras", "Vambora" e "Metade", revelando uma solidão que minha cabeça infantil admirava mas não era capaz de entender tão profundamente. Ouvir a atordoante pergunta "e meus amigos, cadê?", a afirmação "não tem ninguém ao lado" e o desespero em “que é pra ver se você olha pra mim" me mostrava como a vida adulta devia ser complicada.

Em "Cariocas", concordei com muito do que era dito na letra. De fato eu detestava o sinal fechado, sobretudo em dias de viagem para a Região dos Lagos, onde eu comeria camarão e passaria manhãs, tardes ou noites na praia, e não gostava dos dias nublados. Essa expressão, "dias nublados", também me remetia à capa do disco, e só entendi que ela poderia fazer sentido porque a cantora não era carioca, então podia ser que gostasse de dias assim.

Por fim, mesmo que provavelmente não pensasse isto na naquela época, atualmente vejo em "Vambora" um dos trechos mais bonitos, talvez o meu favorito, de todo o álbum: "Porque meu coração dispara quando tem o seu cheiro dentro de um livro". Apesar de ouvir essa música desde pequena, foi somente no ensino médio que descobri que "dentro da noite veloz" e "na cinza das horas" eram referências a livros de Ferreira Gullar e Manuel Bandeira. E sei, ainda a respeito da letra, que me intrigava o desafio proposto em "você tem meia hora pra mudar a minha vida", mas foi só depois de muito tempo que eu entendi que essa parte da música era mesmo possível de acontecer.

domingo, 18 de outubro de 2020

Fantasia de bate-bola

Foto: Thaís Velloso

Na infância, comentei com a família que queria uma fantasia de bate-bola. Minha avó paterna quase caiu pra trás, indignada, com uma expressão de estranhamento que me deixou na cabeça aquela interrogação que surge nas personagens de história em quadrinhos. Que bate-bola o quê! Isso é coisa de menino! Minha mãe desconversou, ninguém me levou a sério e a fantasia de bate-bola nunca fez parte do meu carnaval.

Me lembrei desse episódio quando li uma reportagem sobre mulheres ganhando esse espaço e se fantasiando com máscaras, bolas e sombrinhas. Começaram a participar dos grupos com fantasias denominadas femininas, mas depois, enfim, passaram a vestir o traje completo dos bate-bolas. Ao ler isso, vibrei por saber que muitas meninas hoje em dia, se quiserem brincar carnaval dessa forma, podem ter sua vontade realizada com mais facilidade.

A mesma reportagem ressaltava que, vestidas de bate-bola, as mulheres se libertavam das imposições que sofriam, de modo que a máscara, por esconder suas identidades, possibilitava-lhes dar cambalhotas, rolar no chão, pular e dançar. Ou seja: escondidas naqueles panos, podiam viver; irreconhecíveis, dentro de uma fantasia que permitia serem confundidas com homens, tinham o crivo social necessário para fazer o que desejavam, sem julgamentos.

A criança que eu fui ainda se espanta com este mundo em que mulher só pode pular, dançar, rolar no chão e dar cambalhota – em suma, se divertir – sem ser cobrada se estiver sob o anonimato de uma máscara. E nós percebemos isso desde cedo. O que eu buscava com a fantasia de bate-bola, afinal, era a alegria.


* Publicado na coletânea Prêmio Off Flip 2023: crônicas

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Primeira vez


Fui uma criança que passou a frequentar a missa de domingo para acompanhar os pais na época em que eles me informaram que eu faria catecismo. Acho que foi nesse período que comecei a reclamar das circunstâncias da vida, porque me lembro nitidamente da dificuldade que era assistir à missa das crianças, e sobretudo acordar para assistir à missa das crianças, sempre iniciada às oito e meia da manhã. As aulas de catecismo aconteciam logo em seguida, então eu passava a manhã inteira na igreja.

Ensinada que ali era a casa de Deus e portanto um ambiente agradável, eu me sentia uma criança pecadora por querer prolongar o sono aos domingos e ir à missa sem vontade alguma, mas me entusiasmava em igual ou maior proporção com o ensinamento de que o Deus misericordioso tudo perdoava. Imersa nesse conflito interno que me acompanhou durante a época, terminei as aulas e fiz minha primeira comunhão.

Nos preparativos para o dia da eucaristia, tudo ficou acertado em alguns encontros, de modo que uma menina da turma se ofereceu para ler trechos bíblicos lá na frente, ao lado do altar, sendo o centro das atenções para toda a igreja, uma ideia que me apavorava e da qual fugi quando outros alunos comentaram que eu lia bem nas aulas e poderia ficar encarregada da tarefa. Provavelmente eu agradeci bastante a Deus quando a outra menina despistou a ideia e se pronunciou, dizendo que gostaria de ler no dia, o que todos acataram de imediato.

Até que chegou o domingo da primeira comunhão. As crianças se distanciaram de seus pais e ficaram juntas em bancos à parte, uma espécie de área vip de um evento eclesiástico. O padre começou a falar e um tempo se passou. Absolutamente tímida, eu me tranquilizava sabendo que só sairia do meu lugar para tomar a hóstia. Nesse instante, senti uma pequena movimentação e reparei que a professora da catequese havia pedido para alguém me cutucar. Quando olhei pra ela, ouvi baixinho: “A menina que ia ler não pôde vir, preciso que você venha comigo agora pra fazer isso.” O “agora” não me dava tempo de negar, nem de pensar em outra alternativa, nada. Mal tive tempo de me desesperar. De repente estava eu subindo os degraus, me posicionando perto do altar, com um microfone na direção da minha boca. Eu nunca tinha usado um microfone. Era a primeira vez que eu falaria em público. Todos, em silêncio, olhavam para mim.

Ajeitei os folhetos e comecei a ler, sem acreditar que aquilo acontecia. A minha expressão era de serenidade, mas a sensação era de uma enorme agonia. A professora, alguns colegas, familiares e pessoas próximas vieram falar comigo depois, sorridentes, elogiando o que eu havia feito e o modo como eu tinha lido. Muitos não faziam ideia do monstro que eu acabava de enfrentar. Diante de palavras positivas, para mim aquilo era um milagre ocorrido no dia em que experimentei a hóstia.

Ainda que o pavor de falar em público tenha me acompanhado por muito tempo, sendo inclusive uma preocupação quando decidi seguir o magistério, hoje penso na minha primeira comunhão como um impulso certeiro contra a timidez. Depois de me tornar professora e lidar com públicos variados por conta do trabalho, finalmente aprendi a driblar o desconforto de ter todos os olhares, ou boa parte deles, voltados para mim. Mudei tanto – ou me tornei tão mais eu – que não vou mais às missas de domingo.

domingo, 30 de agosto de 2020

Do que eu me lembrei lendo João do Rio


A rua da minha infância era uma ladeira que a gente tinha preguiça de subir. Para o lado oposto, havia outra ladeira, por onde eu andava, e muitas vezes corria, vindo da escola. A rua da minha infância era calma e o padeiro costumava passar lá. Às vezes eu comia o sonho que ele vendia. Era uma rua também silenciosa, principalmente à noite. Nela já acharam corpo de gente morta. Era misteriosa, a rua que eu subia, descia e mirava do portão, quando brincava por ali.

No final dela tinha outra rua, maior e bem mais agitada, onde passavam motos e carros constantemente, mas não ônibus. Ela dava acesso a muitas outras ruas menores, mais calmas e mais silenciosas. Durante uma época, eu descia a minha rua para ir à festa junina que os moradores organizavam nessa rua maior. Porque a rua era grande, a festa também era. Mas o cheiro era um só: vatapá. Toda ela ficava enfeitada de bandeirinhas coloridas, gente andando pra lá e pra cá, crianças de mãos dadas com os pais, barraquinhas de comidas diversas, brincadeiras e música alta. Porque a rua era grande e comportava muita gente, houve também o tempo de caber nela a violência, e aí a festa nunca mais aconteceu.

No tempo em que não havia mais festa, eu me mudei para essa rua maior, mais agitada e longe da calmaria. E o interessante é que eu, uma criança reservada – a timidez muitas vezes confundida com antipatia –, hoje me vejo de outra forma, como se o processo de mudança de ruas tivesse acompanhado a formação da minha personalidade, dos meus gostos, do meu comportamento diante da vida. A paixão pelo festejo e pela vida que há fora da casa e dentro desse espaço surpreendente que é a rua veio depois, bem depois que me mudei.

É possível que a alma das ruas se alinhe realmente à nossa, como explicou João do Rio no A alma encantadora das ruas: “Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas.” Essa aproximação entre as ruas e os tipos, no entanto, podem ser apenas aproximações, e não necessariamente uma regra. Eu estou longe, por exemplo, de compartilhar as opiniões políticas da rua onde moro. Mas isso é outra história. O que me aproxima dela é seu passado de festa, milho verde, salsichão e cocada, olhando pro céu e pro balão multicor. É a pulsão de vida que me aproxima da minha rua.

Lendo João do Rio, pensei em muitas ruas que fazem parte de mim. Em outro trecho do livro, ele diz: “Só a rua pode nos dar a expressão do sofrimento absoluto como da alegria completa.” E imediatamente me lembrei de uma rua específica da cidade, que me viu, em momentos distintos, tão feliz e tão triste, com a tarde caindo e o copo da cerveja ficando vazio. Algumas ruas me viram crescer, outras acompanharam minha independência, e há também as que testemunharam uma ou outra paixão – passageira; interminável. As ruas sempre foram cúmplices de tudo. Quando piso nelas, sabem como me sinto. Deve ser por isso que gosto de estar nas ruas: sou compreendida.

Ao andar pelas ruas e diferenciá-las, sabendo que elas se caracterizam pelas nossas próprias experiências também, afirmo que “essa cidade me atravessa” e percebo como quero, sempre, “o Rio aceso em lampiões e violões que quem não viu não pode entender o que é paz e amor”. Flanar, esse “verbo universal sem entrada nos dicionários, (…) é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem (…); é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça”. E quem faz isso, comenta João do Rio, é “possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa”.

Publicado originalmente no Além de Machado.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Um dia inteiro com Haruki Murakami


Por conta dos sentimentos que despertam, há livros que te obrigam a interromper a leitura brevemente para recuperar o fôlego e continuar. Assim foi para mim com Sul da fronteira, oeste do sol, de Haruki Murakami. Inédito no Brasil, o romance chegou pela TAG Curadoria, cuja assinatura eu fiz exclusivamente em julho, para recebê-lo. Quando comecei a ler, deixei de lado outras tarefas para me dedicar às 217 páginas no mesmo dia e só fechei o livro quando concluí a leitura, pouco antes das 2h da madrugada.

Nessa obra, o lugar-comum que poderia ser a história de um amor iniciado na juventude, interrompido pelas circunstâncias da vida e reencontrado anos e anos depois não resvala no clichê romântico. A narrativa analisa uma dessas histórias em particular para, assim, lidar com a universalidade do tema. E faz isso a partir do modo mais bonito: resgatando o ineditismo do toque, ainda na fase da pré-adolescência, e explorando a descoberta do que é se sentir bem ao lado de alguém que estabelece com a gente uma conexão única.

É assim que basicamente começa Sul da fronteira, oeste do sol, com Hajime narrando sua convivência com Shimamoto, uma amiga de escola. A delicadeza dessa narração, que me prendeu já no primeiro capítulo, é naturalmente instigante, como no momento em que as mãos dos dois se tocam: “Era só a mão pequena e morna de uma menina de doze anos. Mas aqueles cinco dedos e aquela palma continham, como uma amostra, tudo o que eu queria saber e tudo o que precisava saber aos doze anos. Ao me dar a mão, ela me ensinou: um lugar assim existe de verdade, no mundo real. Durante aqueles dez segundos eu me senti um pequeno pássaro, perfeito. Voando pelos ares, em meio ao vento. Enxerguei, do alto, uma paisagem distante. Era longe demais para ver exatamente o que havia lá, mas vi que ela existia. E que um dia eu chegaria lá. Essa descoberta me deixou sem fôlego e me agitou o peito.”

Ao longo das páginas, o narrador vai revelando o que lhe aconteceu com a passagem do tempo – a primeira relação sexual, a traição a uma namorada, as fases que experimentou e que agora relata conscientemente: “Dormi com algumas delas, mas isso não me causava nenhuma emoção. Essa foi a terceira etapa da minha vida. Esses doze anos, desde quando entrei na faculdade até chegar aos trinta anos, os quais passei em meio a decepção, solidão e silêncio. Durante todo esse tempo, não me aproximei realmente de ninguém. Para mim, foram como anos congelados.” Enquanto Hajime fala de suas experiências e de seus sentimentos, como se estivesse em um monólogo interior, nós, leitores, inevitavelmente estabelecemos uma comparação, analisando em que medida nossa vida se aproxima ou se afasta da do protagonista. Ao permitir que o leitor encare a si mesmo, seja lembrando, refletindo ou notando determinado sentido em um antigo episódio que vivenciou, a literatura – essa arte que humaniza, esse conhecimento que afaga –, sem ter qualquer dimensão da exata profundidade disso, cumpre um papel fundamental.

Em verdade, o que mais me comoveu na leitura de Murakami foi, além de passagens lindas como a do motivo que leva Shimamoto a um rio, a capacidade de uma escrita nos levar a uma grande identificação com os sentimentos dos personagens. Isso é o que também nos faz refletir sobre um ponto crucial, que no livro pode até mesmo passar despercebido: a esposa de Hajime, que é comumente silenciada – fator que desperta atenção para o machismo e para o tratamento geralmente dado à mulher na sociedade. Sobre isso, vale repetir o que ressalta Rita Kohl no posfácio da obra: “O desejo do narrador de abandonar a família em busca de um amor irresistível deixa de ser uma questão pessoal deste personagem para refletir um padrão incansavelmente repetido, em uma sociedade em que pais têm muito mais liberdade, tempo e espaço para encontrar amores irresistíveis e considerar largar tudo.”

Nesse sentido, Sul da fronteira, oeste do sol é uma obra que nos faz criar expectativas, que encanta pelo que tem de delicado, que angustia pelo envolvimento empático com o narrador e com as mulheres que aparecem na narrativa e que, sobretudo, nos faz pensar. E nos faz pensar não só na vida daqueles personagens, mas em nossas próprias experiências, de modo que a gente entra em contato repentinamente com o que já sentimos em algum momento. Ainda que minha interpretação possa ser bem particular, acredito que a leitura desse romance de Murakami dificilmente seja indiferente para alguém. De uma ou outra maneira, quem se dispõe a ler a obra será emocionalmente impactado.

Publicado originalmente no Além de Machado.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Narrativas que não contam a mesma história


Eu conheci Ailton Krenak, líder indígena e importante pensador brasileiro, quando vi o documentário Guerras do Brasil.doc na Netflix. Há pouco tempo, li Ideias para adiar o fim do mundo, um livro fundamental que reúne, de modo adaptado, duas palestras suas e uma entrevista realizadas entre os anos de 2017 e 2019 em Portugal. Ao longo das páginas, são vários os trechos que nos convidam a pensar. Sublinhei muitas partes que, ao serem relidas, reforçam a necessária inversão de uma lógica social excludente, feita para anular narrativas: "Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade". Sobre isso, o autor questiona: "Por que essa narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?"

Com esses questionamentos ecoando, fui atrás de narrativas que não me contassem a mesma história, e então cheguei a Nós: uma antologia de literatura brasileira, organizada e ilustrada por Mauricio Negro. Nela há dez contos escritos por indígenas, cada um relacionado a um determinado povo. Assim, conhecemos histórias dos mebengôkré kayapó, dos saterê-mawé, dos maraguá, dos pirá-tapuya waíkhana, dos balatiponé umutina, dos taurepang, dos umuko masá desana, dos guarani mbyá, dos krenak e, por fim, dos kurâ-bakairi. As ilustrações com cores predominantemente avermelhadas, dispostas sempre antes de cada história, são lindas e parecem dar ainda mais vida ao texto, uma vez que as imagens proporcionam maior imersão do leitor no espaço das narrativas.

Por ser publicado pela Companhia das Letrinhas, temos a princípio a ideia de que se trata de um livro voltado para o público infanto-juvenil, mas, na verdade, a obra tem grande relevância para os adultos também, sendo interessantíssima, inclusive, para aqueles que desejam iniciar ou aprofundar o contato com a literatura indígena. Além disso, o fato de ser uma edição da Companhia das Letrinhas talvez seja o que garanta um caráter didático ao livro, notado pelas palavras que estão destacadas no texto e reunidas em um vocabulário, ao final de cada história, com a tradução para o português.

Todas as dez narrativas condensam as visões de mundo não dos exploradores, mas dos explorados; não dos dominadores, mas dos dominados. Por isso não se tratam de narrativas globalizantes e por isso estão também longe de contar para a gente a mesma história, oferecendo novidades, conhecimentos, encantamentos e, sem dúvida, a beleza expressa na maneira de contar e no conteúdo do que se conta. Começando pela narrativa a respeito de um amor aparentemente impossível, a antologia passa pela origem do açaí; pela perspectiva contrária à sociedade patriarcal, apresentando um modelo social em que impera a autonomia da mulher ("a moça iria escolher um deles, ninguém sabia qual – pois antigamente era assim que os Maraguá se casavam –, para ser seu marido"; "para fazer a vontade da esposa, o marido a deixou ir sozinha"); pela relação entre os animais; pela descoberta do fogo; e, entre tantas outras temáticas, passa, sobretudo, pela valorização dos elementos naturais, a partir da compreensão do respeito à natureza: "Na natureza tudo é indissociável. Uma árvore é um ser humano."

Como não poderia ser diferente, a leitura nos mostra, na figura de um velho sábio que reúne as crianças para lhes contar algo, a importância da memória e da ancestralidade: "Gravem na memória esta história sagrada. Porque um dia serão vocês a contar para os seus filhos. E depois, seus filhos contarão para os seus netos. E a história vai vingar de geração em geração, porque é parte do nosso corpo material e espiritual." Essa ligação de gerações é o que move a cultura indígena, sendo a força que sempre permitiu que esses povos resistissem e continuem resistindo num país que historicamente impulsiona seu aniquilamento.

Curiosamente, como Ailton Krenak afirma e como as narrativas de Nós: uma antologia de literatura indígena ratificam, a possibilidade de adiar o fim do mundo, de lidar com ele de forma verdadeiramente humana e respeitosa, depende muito da nossa disposição de enxergá-lo como os indígenas enxergam. Para isso, é preciso ler e ouvir essas narrativas que nos contam outras histórias, que nos trazem novas perspectivas e que nos auxiliam a interpretar o mundo de maneira diferente. Afinal, como disse Krenak, "tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa".

Publicado originalmente no Além de Machado.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

A trajetória e os efeitos da crítica literária brasileira


Zezé cometeu suicídio ao final da penúltima apresentação de sua peça "Os desesperados", supostamente por causa da crítica negativa publicada no jornal O Diário. João Fortes, autor da crítica, também se matou em virtude dos desdobramentos do texto, já que acabou se tornando indesejado no seu ofício, julgado pela opinião pública como responsável pela morte do diretor e ator. É esse o assunto do conto "O homem-mulher II", de Sérgio Sant’Anna, uma narrativa que aborda os possíveis efeitos da crítica.

A leitura de "O homem-mulher II" me fez recordar uma história contada por José Castello, que vasta experiência tem com o jornalismo literário, em uma crônica intitulada "Um abraço em Moacyr Scliar", disponível no Jornal Rascunho. Nela, relata o que aconteceu depois de ter publicado uma crítica negativa sobre o livro Sonhos Tropicais. Após viver a tensão de não saber o que esperar do autor ao tornar públicas suas impressões, José Castello comenta que Scliar revelou ter ficado furioso e decepcionado, a ponto de pensar em reagir com uma ligação por telefone.

No entanto, eis o comovente desfecho da história: "Aos poucos, contudo, a dor abrandou e, me disse Scliar já com um esboço de sorriso, ele conseguiu enfim pensar. Não adoçou as palavras: 'Quero lhe dizer que você tem toda razão no que escreveu’. Abriu, então, um sorriso vasto e longo, de alívio, mas também de gratidão. Enfim, continuou: 'Depois que a raiva passou e que controlei a vaidade, consegui enfim aceitar o que você me dizia'. Nos dias seguintes, refletiu sobre seu caminho literário, lutou para se observar desde fora. Quanto a mim, estava imobilizado. Cedesse à vaidade, e passaria a acreditar, enfim, que era um 'grande crítico'. Quanta tolice! Minha resenha era não só pequena, mas despretensiosa. Limitei-me a esboçar uma impressão muito breve. Forte era Scliar que, machucado por minhas palavras, soube, ainda assim, lhes emprestar uma grandeza que não tinham."

Diante desses dois episódios – um proveniente da ficção e outro da realidade –, lembrei também que em 1865, no texto "O ideal do crítico", Machado de Assis indicou como deveria ser a atuação de um crítico verdadeiramente comprometido com os caminhos para a formação de uma grande literatura brasileira. Entretanto, pensando mais especificamente na trajetória da crítica literária, recorri a um livro fundamental na estante: Papéis colados, da Flora Süssekind. No artigo "Rodapés, tratados e ensaios", que abre o livro abordando a formação da crítica brasileira moderna, a autora comenta a tensão percebida na década de 1940 entre dois modelos de crítico: o "homem de letras", que publica em jornal, e o "crítico universitário", de formação acadêmica e com publicações em livro. Exemplo disso, como lembra Flora Süssekind, é o embate entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins, este representando o primeiro modelo de crítico e aquele, o segundo.

Ainda de acordo com o artigo, esse conflito entre o crítico de rodapé, leitor não especializado em literatura, e o crítico formado pelas faculdades de Filosofia do Rio de Janeiro (a Letras da UFRJ era um departamento, e só em 1968 se tornou independente, tendo Afrânio Coutinho como diretor), por sua vez interessado na especialização proporcionada pela pesquisa acadêmica, fez com que o crítico universitário ganhasse espaço. Desse modo, o crítico-cronista perdeu um pouco do prestígio que tinha – passado confirmado pelo fato de a obra Sagarana ser muito procurada nas livrarias após a publicação de rodapé feita por Álvaro Lins –, na medida em que surgia a figura do crítico-professor, moldado pela universidade.

Por outro lado, fatores como o interesse do mercado editorial, a demanda da indústria cultural e o tipo de linguagem do texto veiculado em jornal ocasionavam o distanciamento desse crítico. A crítica universitária, caracterizada por uma linguagem profundamente acadêmica e pela produção de um texto mais argumentativo, se torna incompreensível e/ou chata para a lógica jornalística e desinteressante para um mercado editorial que se baseia no consumo do livro, e não propriamente na análise literária, aspectos que posteriormente causam a redução da atuação desse modelo de crítico no jornal. Com o acesso à imprensa reduzido, a circulação da pesquisa universitária praticamente se limita ao próprio meio, e é assim que aparece na década de 1970 o terceiro modelo de crítico, que é o teórico – a exemplo de Luiz Costa Lima e Haroldo de Campos.

Todo esse conflito esmiuçado por Flora Süssekind acerca do crítico especializado e do não-especializado, resgatando o debate sobre quem teria (mais) autoridade para falar da literatura, me fez voltar ao dia em que José Castello foi à Faculdade de Letras da UFRJ, em evento do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, há cinco anos. Para mim, que estava no primeiro ano do mestrado, esse encontro – entre a imprensa e a universidade – foi incrível. O Prosa & Verso, do qual Castello era colunista, tinha acabado de ser extinto do jornal O Globo, e todos sentíamos por isso. Naquele momento, sabíamos que o crítico de rodapé, o crítico universitário e o crítico-teórico, cada um com suas especificidades de trabalho com o texto literário, partilhavam a mesma frustração: estarmos imersos em uma sociedade que não valoriza a literatura e, por extensão, o diálogo, a reflexão, o conhecimento.

Hoje em dia, os suplementos literários, com destaque para o crescimento no meio digital, constituem uma essencial ferramenta de resistência. Assim como Antonio Candido defendeu, o direto à literatura é um direito humano: "Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidade e em todos os níveis é um direito inalienável". Essa constante busca – entendida como luta e movida por paixão à leitura – por fazer da literatura um direito inalienável sem dúvida une o crítico de rodapé, o crítico-professor, o crítico-teórico e o leitor comum, que é fundamental para a existência de qualquer texto.

Publicado originalmente no Além de Machado.

domingo, 21 de junho de 2020

Um presente no aniversário de Machado de Assis


Pouco antes do dia dos seus 181 anos, Machado de Assis ganhou um presente: a tradução para o inglês de Memórias póstumas de Brás Cubas, feita por Flora Thomson-DeVeaux em um trabalho de quase cinco anos de duração, que esgotou no mesmo dia em que foi lançada, no início de junho. Na verdade, parece que seus leitores é que ganharam um presente. Quando começou a publicar em jornais, no ano de 1859, Machado apontou em “O ideal do crítico” o caminho para que o Brasil tivesse uma grande literatura. Agora, o sucesso da tradução de sua obra é mais uma das evidências de que o autor faz parte desse caminho e tem singular relevância não apenas na literatura brasileira, mas também na literatura universal. Sendo parte emblemática da primeira, tornou-se notável na segunda.

Quando iniciei meus estudos em Machado de Assis, na Letras da UFRJ, muito me incomodava ver que lhe foram direcionados comentários que o julgavam apolítico, revelados pela crítica de que sua atuação nos jornais e nos livros deveria fazer com que ele se comprometesse com os acontecimentos de sua época, em vez de fugir de posicionamentos. Esse foi um dos motivos que me levaram a esmiuçar o Machado cronista, já que na crônica, mais do que na ficção, é possível ter maior contato com o autor e consequentemente com suas opiniões e reflexões. Em 1910, por exemplo, o crítico Pedro Couto, a respeito de Machado, escreve que “os fatos sociais são postos à margem, nem indiretamente, mesmo, eles se fazem sentir”, e em 1926, baseado na mesma perspectiva, o poeta Emílio Moura afirma que “ninguém praticou entre nós, em grau tão elevado, a Arte pela Arte”, acrescentando que “nos seus livros ele nunca nos revelou o homem nas suas relações com o meio físico e social”.

São muitos os exemplos que invalidam a visão de quem acusou o escritor de ser um homem alheio a seu tempo e de não se posicionar, como homem negro, em defesa dos negros. As muitas crônicas que abordam temas como a falta de representação política em razão do alto percentual de analfabetos, o apelo para o leitor votar conscientemente, o questionamento da Abolição (em um momento de efusão, ele refletia sobre até que ponto essa liberdade seria efetiva) e a denúncia da farsa da mudança de regime; os contos que tratam da Escravidão, como “Pai contra mãe” e “O caso da vara”; e um romance como Esaú e Jacó, que aponta o comportamento semelhante de um monarquista e um republicano na busca pelo poder, são alguns dos exemplos que demonstram o compromisso social, político e literário de Machado de Assis, atuando sempre de modo crítico e proporcionando reflexões absolutamente importantes não só para a sociedade da época, mas também para a atual. No livro Machado de Assis afrodescendente, que aliás está com desconto no site da editora Malê, Eduardo de Assis Duarte atesta a valorização do negro na obra machadiana. Em epígrafe usada no livro, há uma declaração que mais uma vez desconcerta a crítica que endossa o discurso do alheamento: “Eu tenho a inqualificável monomania/ De não tomar a arte pela arte,/ mas a arte como a toma Hugo,/ missão social, missão nacional, missão humana”.

Nascido no Morro do Livramento em 21 de junho de 1839, Machado de Assis começou aí sua missão social, nacional e humana. Preto, pobre e sem educação formal, foi autodidata e se tornou o maior escritor brasileiro. Hoje, 181 anos depois de seu nascimento e mais de um século após sua morte, continua sendo lido no mundo e seu livro esgota rapidamente. Quando às vezes me pergunto se segui o caminho certo ao me dedicar anos e anos às suas produções, lendo e relendo incessantemente sua obra, acabo chegando facilmente à resposta: continuarei as leituras e releituras de tudo o que diz respeito a Machado de Assis. Ele sempre nos faz pensar. E a gente sempre precisa refletir.  

Publicado originalmente no Além de Machado.

domingo, 17 de maio de 2020

Soneto da angústia


Recebo mensagens dos meus amigos
Estão cheios de angústia os nossos tempos
Inquieta nesse quarto então invento
Memórias que mascarem o perigo

Tiro do armário aquele meu pandeiro
Com saudade das rodas que frequento
Entre cervejas escrevo o lamento
Foi-se o Aldir, um ídolo brasileiro

Nesses dias cercados de agonia
Choro pelo meu país que se esvai
Jamais indiferente a alheios ais

Cada perda me lembra a tirania
Que ignora quem este vírus contrai
E ri de um Brasil que ficou pra trás

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Tantinho da Mangueira


Era um dia em que a rua estava vazia. Enquanto os meninos brincavam cá dentro, aproveitei para espiar o que se passava do lado de fora. Lá embaixo alguns carros cruzavam o viaduto. Uma birosca aberta com o baralho sobre a mesa, duas crianças caminhando juntas, sacos de lixo amontoados no poste. Quando me inclinei para deixar a janela, fitei, na do vizinho, a bandeira presa na grade. As cores eram nossas. E imediatamente me veio o sonho que eu havia sonhado: era o partido alto, o desafio do improviso, o samba de terreiro, o quintal unindo o canto e o falatório, as palmas que firmavam, a ala de compositores presente; era a memória em verde e rosa.

E foi então que, com mais nitidez, puxei dessa memória: girava a baiana na quadra, nasceu o menino. Ainda pequeno, conheceu a bateria antes do colégio — a primeira escola, como já diz o nome, foi a Estação Primeira. E no sonho tinha uma rua, acho que uma avenida, bem extensa, toda enfeitada, com um tapete no meio, um tapete verde e rosa, para alguém passar em direção ao ponto onde minha vista não chegava. E eu vi o menino ao lado das lavadeiras, ao lado de sua mãe, no tanque perto do Buraco Quente. Em horas de trabalho, elas cantavam. E o menino, ele prestava atenção, aprendia com as mulheres.

Era a baiana, o menino, a bateria, a ala dos compositores. Era uma nação que ele guardava. Da outra ponta do tapete verde e rosa, onde eu não conseguia ver bem, o som da surdo um preparava o corredor iluminado. Até que soprou o vento, revelando os baluartes à espera. Naquela passarela, o verde e o rosa do tapete cintilando, abriu-se caminho para ele passar. E vi o ponto mais alto do morro, o senhor então menino, o menino agora mais velho. Vinha rompendo o dia. Xangô veio ver. Era a memória em verde e rosa. Com o surdo um quase em silêncio, no diminutivo feito o seu nome, ele surgiu. Deixa o Tantinho passar!

sábado, 4 de abril de 2020

Quatro de abril


Ela acordou pouco antes das seis. A consulta estava marcada para antes das nove. Fez café, esquentou o pão, viu que a geleia de morango tinha acabado, regou as plantas e pensou em ir pro banho. Ouviu, mesmo de longe, uma melodia que não lhe era indiferente. Caminhou devagar em direção à janela. A cortina branca do vizinho esvoaçava, balançando serenamente. Aos poucos reconhecia a letra, o que fez com que começasse a batucar no parapeito, e recordava, de modo detalhado, o ano para o qual se deixava levar. 

O vizinho, que também acordara cedo, ouvia o samba de 1993. Naquela época ela já contava bons anos de desfile como baiana da escola. Lembrou que o compositor até foi intérprete, mas só nesse ano em que as vozes vindas do Morro dos Macacos sopravam o antídoto para pôr fim a qualquer mal: pra salvar a geração só esperança e muito amor. 

Não podia se atrasar para a consulta, mas as recordações não cessavam. Sua neta havia acabado de nascer, portanto era a primeira vez que entrava na Avenida tendo o título de avó, as lágrimas descendo toda vez que cantava a criança é a esperança de Oxalá. E até hoje se emocionava com essa possibilidade de tudo, em meio a ruínas, ser resgatado: 

Então foram abertos os caminhos
E a inocência entrou no templo da criação
Lá os guias protetores do planeta
Colocaram o futuro em suas mãos 

Cantou o samba todo, o café esfriando na xícara, o barulho dos passarinhos cada vez menor. No dia do nascimento da neta, teve a sensação exata, ao olhar nos olhinhos miúdos da pequena, de estar diante da esperança de Oxalá. Era cantando Gbala que embalava a menina no colo, admirando o quartinho todo branco e azul. Sabia que, quando ela crescesse mais um pouco, entenderia o amor ao pisar descalça no chão da quadra. 

Tomou um banho rápido e vestiu a roupa que já estava separada. O vizinho repetiu o samba. Faltava meia hora para o jogo de búzios e ela não desmarcaria porque a última consulta tinha sido em dezembro. Gostava de acalmar o coração, de saber o que estava por vir. Fechou a porta cantarolando Gbala, lembrando a neta pequenininha, feliz por hoje a menina ser também torcedora da escola, apaixonada a ponto de chorar ao serem campeãs e de ter a resposta certa pra qualquer um que chegasse falando de outra agremiação: sou da Vila, não tem jeito. 

Quando guardou a chave na bolsa e prestou atenção no símbolo do chaveiro, só aí se deu conta. Era quatro de abril. Anos e anos atrás, em 1946, estava fundada a Vila Isabel. Então, foram abertos os caminhos.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

A varanda da minha casa


Recentemente vi uns meninos soltando pipa enquanto o ônibus que me levava pra casa estava parado no sinal. Isso foi bem antes da quarentena. Sorri ao me lembrar da liberdade que a rua me trazia na infância. 

Guardo até hoje, aparentemente sem motivo, a recordação de uma noite em que fomos, eu e mais algumas pessoas da família, acompanhar os amigos da minha tia até o ponto de ônibus. Eles iam pra Bento Ribeiro. A gente formava um grupo de oito ou mais pessoas descendo a ladeira que era a rua onde eu morava para dobrar à esquerda duas vezes e caminhar mais um pouco até o ponto mais próximo. A conversa distraída e a bola no pé — um de nós dominava a bola durante todo o trajeto — nos acompanhavam. Naquele dia parecia que ninguém ali sentia medo da violência da cidade. Faz tempo, desde que cresci, que não tenho essa sensação de liberdade na rua.

Da janela, agora de dentro de casa, observo uma pipa no céu. Não sorrio como sorri no dia em que estava no ônibus. O que acontece agora é a aproximação de uma angústia, muda como o cerol que corta a pipa no alto. Liberdade, hoje, tem a ver com poder estar aprisionada dentro da própria casa. Nós, que sempre tivemos dificuldade de assumir as contradições humanas, ou mesmo de enxergá-las, lidamos atualmente com esse paradoxo. É tempo de deixar as pipas penduradas na garagem, de recolher as cadeiras da calçada, de perceber que o pôr-do-sol pode ser mais bonito visto da varanda que não tenho em casa.

Há poucas semanas almoço à mesa diariamente com o meu pai, que todos os dias estava trabalhando. Não sei dizer quando foi a última vez que isso aconteceu antes da quarentena. Faz tempo, desde que cresci, que o correr da vida passou rosianamente a embrulhar tudo. Fragilizados, preocupados e aflitos, estamos, cada um à sua maneira, desembrulhando talvez não tudo, mas certamente tudo o que é possível.

domingo, 22 de março de 2020

Quarentena


Da minha janela vejo os morros distantes, mas não tão distantes que possam silenciar o som dos tiros que por vezes existem. De Quintino localizo a Serrinha. E o que vem à mente é a quadra do Império Serrano com baldes de cerveja, pessoas circulando, cantando e conversando, o calor humano provocado pela quantidade de gente. Faz tempo que não vou ao Império. Vai demorar pra eu pisar numa quadra. 

Da janela vejo a rua mais vazia, mas também o bar aberto com algumas pessoas conversando, como se o mundo não estivesse ruindo. O sol não deixa de surgir, mas é difícil aproveitá-lo. Não se pode vestir o short jeans, a blusa, nem colocar o brinco e o batom, calçar o chinelo e virar a chave para pegar o elevador até a portaria. A rua não me espera, sossegada. Algumas motos passam pela Suburbana (a gente não fala Dom Hélder Câmara), uma sirene inquieta para por perto, as janelas do prédio da frente parecem mais cheias. O ventilador ligado, o filme preferido do meu pai na televisão, o bordado da minha vó, o descanso aflito da minha mãe, tudo isso passa pelos meus olhos e eu agradeço por estarmos juntos, ainda que com medo, ainda que acordando assustada, ainda que sentindo os efeitos físicos e mentais de todo esse longo processo. Pessoas próximas a mim ainda precisam trabalhar, outras ainda não tiveram uma noção mais real da gravidade, e talvez a nossa agonia maior seja não ter controle sobre quem amamos, como sempre na vida. Mas sobretudo agora. 

Tenho minha fé e minhas crenças, todas baseadas nas minhas próprias experiências, em tudo que já senti e sinto. Em outras janelas existe gente angustiada também. Lá no morro, onde a vista não alcança o detalhe, o amor dói no peito, a vida aflige, o medo faz a reza. Um atabaque, agora em silêncio, pode ser ouvido quando fechamos os olhos. Da janela sinto medo, vejo de perto o que não posso abraçar. Há mesas e cadeiras sozinhas nas calçadas, um vazio nos ônibus. Quando ouço a música que há dias está na minha cabeça, penso nas palhas que cobrem o rosto. Um conforto na sabedoria. Olho pra cima, as nuvens continuam andando sem pressa, despreocupadas. Fecho a janela e volto pra viagem à roda do meu quarto. Mais tarde vou tentar ler um livro.