Recentemente vi uns meninos soltando pipa enquanto o ônibus que me levava pra casa estava parado no sinal. Isso foi bem antes da quarentena. Sorri ao me lembrar da liberdade que a rua me trazia na infância.
Guardo até hoje, aparentemente sem motivo, a recordação de uma noite em que fomos, eu e mais algumas pessoas da família, acompanhar os amigos da minha tia até o ponto de ônibus. Eles iam pra Bento Ribeiro. A gente formava um grupo de oito ou mais pessoas descendo a ladeira que era a rua onde eu morava para dobrar à esquerda duas vezes e caminhar mais um pouco até o ponto mais próximo. A conversa distraída e a bola no pé — um de nós dominava a bola durante todo o trajeto — nos acompanhavam. Naquele dia parecia que ninguém ali sentia medo da violência da cidade. Faz tempo, desde que cresci, que não tenho essa sensação de liberdade na rua.
Da janela, agora de dentro de casa, observo uma pipa no céu. Não sorrio como sorri no dia em que estava no ônibus. O que acontece agora é a aproximação de uma angústia, muda como o cerol que corta a pipa no alto. Liberdade, hoje, tem a ver com poder estar aprisionada dentro da própria casa. Nós, que sempre tivemos dificuldade de assumir as contradições humanas, ou mesmo de enxergá-las, lidamos atualmente com esse paradoxo. É tempo de deixar as pipas penduradas na garagem, de recolher as cadeiras da calçada, de perceber que o pôr-do-sol pode ser mais bonito visto da varanda que não tenho em casa.
Há poucas semanas almoço à mesa diariamente com o meu pai, que todos os dias estava trabalhando. Não sei dizer quando foi a última vez que isso aconteceu antes da quarentena. Faz tempo, desde que cresci, que o correr da vida passou rosianamente a embrulhar tudo. Fragilizados, preocupados e aflitos, estamos, cada um à sua maneira, desembrulhando talvez não tudo, mas certamente tudo o que é possível.

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