sábado, 4 de abril de 2020

Quatro de abril


Ela acordou pouco antes das seis. A consulta estava marcada para antes das nove. Fez café, esquentou o pão, viu que a geleia de morango tinha acabado, regou as plantas e pensou em ir pro banho. Ouviu, mesmo de longe, uma melodia que não lhe era indiferente. Caminhou devagar em direção à janela. A cortina branca do vizinho esvoaçava, balançando serenamente. Aos poucos reconhecia a letra, o que fez com que começasse a batucar no parapeito, e recordava, de modo detalhado, o ano para o qual se deixava levar. 

O vizinho, que também acordara cedo, ouvia o samba de 1993. Naquela época ela já contava bons anos de desfile como baiana da escola. Lembrou que o compositor até foi intérprete, mas só nesse ano em que as vozes vindas do Morro dos Macacos sopravam o antídoto para pôr fim a qualquer mal: pra salvar a geração só esperança e muito amor. 

Não podia se atrasar para a consulta, mas as recordações não cessavam. Sua neta havia acabado de nascer, portanto era a primeira vez que entrava na Avenida tendo o título de avó, as lágrimas descendo toda vez que cantava a criança é a esperança de Oxalá. E até hoje se emocionava com essa possibilidade de tudo, em meio a ruínas, ser resgatado: 

Então foram abertos os caminhos
E a inocência entrou no templo da criação
Lá os guias protetores do planeta
Colocaram o futuro em suas mãos 

Cantou o samba todo, o café esfriando na xícara, o barulho dos passarinhos cada vez menor. No dia do nascimento da neta, teve a sensação exata, ao olhar nos olhinhos miúdos da pequena, de estar diante da esperança de Oxalá. Era cantando Gbala que embalava a menina no colo, admirando o quartinho todo branco e azul. Sabia que, quando ela crescesse mais um pouco, entenderia o amor ao pisar descalça no chão da quadra. 

Tomou um banho rápido e vestiu a roupa que já estava separada. O vizinho repetiu o samba. Faltava meia hora para o jogo de búzios e ela não desmarcaria porque a última consulta tinha sido em dezembro. Gostava de acalmar o coração, de saber o que estava por vir. Fechou a porta cantarolando Gbala, lembrando a neta pequenininha, feliz por hoje a menina ser também torcedora da escola, apaixonada a ponto de chorar ao serem campeãs e de ter a resposta certa pra qualquer um que chegasse falando de outra agremiação: sou da Vila, não tem jeito. 

Quando guardou a chave na bolsa e prestou atenção no símbolo do chaveiro, só aí se deu conta. Era quatro de abril. Anos e anos atrás, em 1946, estava fundada a Vila Isabel. Então, foram abertos os caminhos.

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