domingo, 21 de junho de 2020

Um presente no aniversário de Machado de Assis


Pouco antes do dia dos seus 181 anos, Machado de Assis ganhou um presente: a tradução para o inglês de Memórias póstumas de Brás Cubas, feita por Flora Thomson-DeVeaux em um trabalho de quase cinco anos de duração, que esgotou no mesmo dia em que foi lançada, no início de junho. Na verdade, parece que seus leitores é que ganharam um presente. Quando começou a publicar em jornais, no ano de 1859, Machado apontou em “O ideal do crítico” o caminho para que o Brasil tivesse uma grande literatura. Agora, o sucesso da tradução de sua obra é mais uma das evidências de que o autor faz parte desse caminho e tem singular relevância não apenas na literatura brasileira, mas também na literatura universal. Sendo parte emblemática da primeira, tornou-se notável na segunda.

Quando iniciei meus estudos em Machado de Assis, na Letras da UFRJ, muito me incomodava ver que lhe foram direcionados comentários que o julgavam apolítico, revelados pela crítica de que sua atuação nos jornais e nos livros deveria fazer com que ele se comprometesse com os acontecimentos de sua época, em vez de fugir de posicionamentos. Esse foi um dos motivos que me levaram a esmiuçar o Machado cronista, já que na crônica, mais do que na ficção, é possível ter maior contato com o autor e consequentemente com suas opiniões e reflexões. Em 1910, por exemplo, o crítico Pedro Couto, a respeito de Machado, escreve que “os fatos sociais são postos à margem, nem indiretamente, mesmo, eles se fazem sentir”, e em 1926, baseado na mesma perspectiva, o poeta Emílio Moura afirma que “ninguém praticou entre nós, em grau tão elevado, a Arte pela Arte”, acrescentando que “nos seus livros ele nunca nos revelou o homem nas suas relações com o meio físico e social”.

São muitos os exemplos que invalidam a visão de quem acusou o escritor de ser um homem alheio a seu tempo e de não se posicionar, como homem negro, em defesa dos negros. As muitas crônicas que abordam temas como a falta de representação política em razão do alto percentual de analfabetos, o apelo para o leitor votar conscientemente, o questionamento da Abolição (em um momento de efusão, ele refletia sobre até que ponto essa liberdade seria efetiva) e a denúncia da farsa da mudança de regime; os contos que tratam da Escravidão, como “Pai contra mãe” e “O caso da vara”; e um romance como Esaú e Jacó, que aponta o comportamento semelhante de um monarquista e um republicano na busca pelo poder, são alguns dos exemplos que demonstram o compromisso social, político e literário de Machado de Assis, atuando sempre de modo crítico e proporcionando reflexões absolutamente importantes não só para a sociedade da época, mas também para a atual. No livro Machado de Assis afrodescendente, que aliás está com desconto no site da editora Malê, Eduardo de Assis Duarte atesta a valorização do negro na obra machadiana. Em epígrafe usada no livro, há uma declaração que mais uma vez desconcerta a crítica que endossa o discurso do alheamento: “Eu tenho a inqualificável monomania/ De não tomar a arte pela arte,/ mas a arte como a toma Hugo,/ missão social, missão nacional, missão humana”.

Nascido no Morro do Livramento em 21 de junho de 1839, Machado de Assis começou aí sua missão social, nacional e humana. Preto, pobre e sem educação formal, foi autodidata e se tornou o maior escritor brasileiro. Hoje, 181 anos depois de seu nascimento e mais de um século após sua morte, continua sendo lido no mundo e seu livro esgota rapidamente. Quando às vezes me pergunto se segui o caminho certo ao me dedicar anos e anos às suas produções, lendo e relendo incessantemente sua obra, acabo chegando facilmente à resposta: continuarei as leituras e releituras de tudo o que diz respeito a Machado de Assis. Ele sempre nos faz pensar. E a gente sempre precisa refletir.  

Publicado originalmente no Além de Machado.

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