segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Dentro de um livro


Desde o mês retrasado eu tenho escutado um álbum que me marcou bastante. Quando eu era pequena, pedia com frequência à minha mãe que colocasse o Perfil da Adriana Calcanhotto pra tocar. Arrisco dizer, sem muita certeza, que "Inverno" era a minha preferida, até porque me fascinava a ideia de o dia mais feliz de uma pessoa ser lembrado pelo olhar de outra espelhando a passagem de um avião até ele sumir.

Também me agradava muito o início de "Esquadros": "Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome". Não sabia quem era Almodóvar nem Frida Kahlo na época, naturalmente, mas ignorava isso porque, havendo quem não soubesse o nome de algumas cores, não seria grave que eu não soubesse o significado daquelas palavras desconhecidas. Por outro lado, eu me dava conta de que me identificava com essa coisa de andar pelo mundo prestando atenção nas cores.

São três os episódios que até hoje guardo, ocorridos enquanto eu andava não pelo mundo, mas pela cidade: quando, por volta de um seis ou sete anos, vi uma menina de fralda com a mãe numa calçada, ambas sentadas no chão ao lado de potes transparentes com tampas coloridas – aquilo me impressionou tanto que passei o dia pensando nelas, comentando com a minha mãe a imagem que, hoje sei, me fez refletir sobre o quão penoso é andar pelo mundo "vendo doer a fome nos meninos (e nas meninas) que têm fome"; no dia em que, criança, sem saber eu impedi o roubo de um videogame num shopping, porque o moço pegou a embalagem, percebeu que eu estava acompanhando tudo e ficou imóvel me encarando, até devolver o produto com uma expressão pálida de quem me pedia silêncio; e na vez em que da janela de uma casa em Vila Isabel eu vi um policial sendo agressivo com um menino na rua deserta em que estávamos.

Todas essas cores – o colorido das tampas dos potes com comida e o negro da menina e da mãe, do rapaz que hesitou em levar o videogame e do menino agredido pelo policial que abusava da própria autoridade e do próprio preconceito – fizeram parte da minha formação. E aí compreendo com facilidade por que eu já gostava de repetir trechos como “eu gosto dos que têm fome, dos que morrem de vontade, dos que secam de desejo, dos que ardem”. Aqueles personagens reais da minha infância, afinal, representavam tudo isso: a fome da mãe e da filha na rua, a vontade enorme do rapaz de ter videogame ou dinheiro, o desejo doloroso do menino de ser respeitado e sua raiva ardente originada da humilhação seletiva do policial, com a mão pesada levantada sem dó na direção de quem é negro e pobre.

As cores de Almodóvar e Frida Kahlo contrastavam com a capa acinzentada do álbum da Adriana Calcanhotto, mas lembro que, coerentemente, me soavam tristes canções como "Devolva-me", "Mentiras", "Vambora" e "Metade", revelando uma solidão que minha cabeça infantil admirava mas não era capaz de entender tão profundamente. Ouvir a atordoante pergunta "e meus amigos, cadê?", a afirmação "não tem ninguém ao lado" e o desespero em “que é pra ver se você olha pra mim" me mostrava como a vida adulta devia ser complicada.

Em "Cariocas", concordei com muito do que era dito na letra. De fato eu detestava o sinal fechado, sobretudo em dias de viagem para a Região dos Lagos, onde eu comeria camarão e passaria manhãs, tardes ou noites na praia, e não gostava dos dias nublados. Essa expressão, "dias nublados", também me remetia à capa do disco, e só entendi que ela poderia fazer sentido porque a cantora não era carioca, então podia ser que gostasse de dias assim.

Por fim, mesmo que provavelmente não pensasse isto na naquela época, atualmente vejo em "Vambora" um dos trechos mais bonitos, talvez o meu favorito, de todo o álbum: "Porque meu coração dispara quando tem o seu cheiro dentro de um livro". Apesar de ouvir essa música desde pequena, foi somente no ensino médio que descobri que "dentro da noite veloz" e "na cinza das horas" eram referências a livros de Ferreira Gullar e Manuel Bandeira. E sei, ainda a respeito da letra, que me intrigava o desafio proposto em "você tem meia hora pra mudar a minha vida", mas foi só depois de muito tempo que eu entendi que essa parte da música era mesmo possível de acontecer.

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