Eu conheci Ailton Krenak, líder indígena e importante pensador brasileiro, quando vi o documentário Guerras do Brasil.doc na Netflix. Há pouco tempo, li Ideias para adiar o fim do mundo, um livro fundamental que reúne, de modo adaptado, duas palestras suas e uma entrevista realizadas entre os anos de 2017 e 2019 em Portugal. Ao longo das páginas, são vários os trechos que nos convidam a pensar. Sublinhei muitas partes que, ao serem relidas, reforçam a necessária inversão de uma lógica social excludente, feita para anular narrativas: "Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade". Sobre isso, o autor questiona: "Por que essa narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?"
Com esses questionamentos ecoando, fui atrás de narrativas que não me contassem a mesma história, e então cheguei a Nós: uma antologia de literatura brasileira, organizada e ilustrada por Mauricio Negro. Nela há dez contos escritos por indígenas, cada um relacionado a um determinado povo. Assim, conhecemos histórias dos mebengôkré kayapó, dos saterê-mawé, dos maraguá, dos pirá-tapuya waíkhana, dos balatiponé umutina, dos taurepang, dos umuko masá desana, dos guarani mbyá, dos krenak e, por fim, dos kurâ-bakairi. As ilustrações com cores predominantemente avermelhadas, dispostas sempre antes de cada história, são lindas e parecem dar ainda mais vida ao texto, uma vez que as imagens proporcionam maior imersão do leitor no espaço das narrativas.
Por ser publicado pela Companhia das Letrinhas, temos a princípio a ideia de que se trata de um livro voltado para o público infanto-juvenil, mas, na verdade, a obra tem grande relevância para os adultos também, sendo interessantíssima, inclusive, para aqueles que desejam iniciar ou aprofundar o contato com a literatura indígena. Além disso, o fato de ser uma edição da Companhia das Letrinhas talvez seja o que garanta um caráter didático ao livro, notado pelas palavras que estão destacadas no texto e reunidas em um vocabulário, ao final de cada história, com a tradução para o português.
Todas as dez narrativas condensam as visões de mundo não dos exploradores, mas dos explorados; não dos dominadores, mas dos dominados. Por isso não se tratam de narrativas globalizantes e por isso estão também longe de contar para a gente a mesma história, oferecendo novidades, conhecimentos, encantamentos e, sem dúvida, a beleza expressa na maneira de contar e no conteúdo do que se conta. Começando pela narrativa a respeito de um amor aparentemente impossível, a antologia passa pela origem do açaí; pela perspectiva contrária à sociedade patriarcal, apresentando um modelo social em que impera a autonomia da mulher ("a moça iria escolher um deles, ninguém sabia qual – pois antigamente era assim que os Maraguá se casavam –, para ser seu marido"; "para fazer a vontade da esposa, o marido a deixou ir sozinha"); pela relação entre os animais; pela descoberta do fogo; e, entre tantas outras temáticas, passa, sobretudo, pela valorização dos elementos naturais, a partir da compreensão do respeito à natureza: "Na natureza tudo é indissociável. Uma árvore é um ser humano."
Como não poderia ser diferente, a leitura nos mostra, na figura de um velho sábio que reúne as crianças para lhes contar algo, a importância da memória e da ancestralidade: "Gravem na memória esta história sagrada. Porque um dia serão vocês a contar para os seus filhos. E depois, seus filhos contarão para os seus netos. E a história vai vingar de geração em geração, porque é parte do nosso corpo material e espiritual." Essa ligação de gerações é o que move a cultura indígena, sendo a força que sempre permitiu que esses povos resistissem e continuem resistindo num país que historicamente impulsiona seu aniquilamento.
Curiosamente, como Ailton Krenak afirma e como as narrativas de Nós: uma antologia de literatura indígena ratificam, a possibilidade de adiar o fim do mundo, de lidar com ele de forma verdadeiramente humana e respeitosa, depende muito da nossa disposição de enxergá-lo como os indígenas enxergam. Para isso, é preciso ler e ouvir essas narrativas que nos contam outras histórias, que nos trazem novas perspectivas e que nos auxiliam a interpretar o mundo de maneira diferente. Afinal, como disse Krenak, "tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa".
Publicado originalmente no Além de Machado.

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