A rua da minha infância era uma ladeira que a gente tinha preguiça de subir. Para o lado oposto, havia outra ladeira, por onde eu andava, e muitas vezes corria, vindo da escola. A rua da minha infância era calma e o padeiro costumava passar lá. Às vezes eu comia o sonho que ele vendia. Era uma rua também silenciosa, principalmente à noite. Nela já acharam corpo de gente morta. Era misteriosa, a rua que eu subia, descia e mirava do portão, quando brincava por ali.
No final dela tinha outra rua, maior e bem mais agitada, onde passavam motos e carros constantemente, mas não ônibus. Ela dava acesso a muitas outras ruas menores, mais calmas e mais silenciosas. Durante uma época, eu descia a minha rua para ir à festa junina que os moradores organizavam nessa rua maior. Porque a rua era grande, a festa também era. Mas o cheiro era um só: vatapá. Toda ela ficava enfeitada de bandeirinhas coloridas, gente andando pra lá e pra cá, crianças de mãos dadas com os pais, barraquinhas de comidas diversas, brincadeiras e música alta. Porque a rua era grande e comportava muita gente, houve também o tempo de caber nela a violência, e aí a festa nunca mais aconteceu.
No tempo em que não havia mais festa, eu me mudei para essa rua maior, mais agitada e longe da calmaria. E o interessante é que eu, uma criança reservada – a timidez muitas vezes confundida com antipatia –, hoje me vejo de outra forma, como se o processo de mudança de ruas tivesse acompanhado a formação da minha personalidade, dos meus gostos, do meu comportamento diante da vida. A paixão pelo festejo e pela vida que há fora da casa e dentro desse espaço surpreendente que é a rua veio depois, bem depois que me mudei.
É possível que a alma das ruas se alinhe realmente à nossa, como explicou João do Rio no A alma encantadora das ruas: “Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas.” Essa aproximação entre as ruas e os tipos, no entanto, podem ser apenas aproximações, e não necessariamente uma regra. Eu estou longe, por exemplo, de compartilhar as opiniões políticas da rua onde moro. Mas isso é outra história. O que me aproxima dela é seu passado de festa, milho verde, salsichão e cocada, olhando pro céu e pro balão multicor. É a pulsão de vida que me aproxima da minha rua.
Lendo João do Rio, pensei em muitas ruas que fazem parte de mim. Em outro trecho do livro, ele diz: “Só a rua pode nos dar a expressão do sofrimento absoluto como da alegria completa.” E imediatamente me lembrei de uma rua específica da cidade, que me viu, em momentos distintos, tão feliz e tão triste, com a tarde caindo e o copo da cerveja ficando vazio. Algumas ruas me viram crescer, outras acompanharam minha independência, e há também as que testemunharam uma ou outra paixão – passageira; interminável. As ruas sempre foram cúmplices de tudo. Quando piso nelas, sabem como me sinto. Deve ser por isso que gosto de estar nas ruas: sou compreendida.
Ao andar pelas ruas e diferenciá-las, sabendo que elas se caracterizam pelas nossas próprias experiências também, afirmo que “essa cidade me atravessa” e percebo como quero, sempre, “o Rio aceso em lampiões e violões que quem não viu não pode entender o que é paz e amor”. Flanar, esse “verbo universal sem entrada nos dicionários, (…) é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem (…); é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça”. E quem faz isso, comenta João do Rio, é “possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa”.
Publicado originalmente no Além de Machado.

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