terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Cento e setenta e sete anos

Não cabia naqueles olhos de menina tamanha grandeza. Precisava da ajuda de outras vistas pra conhecer o Pedro II. Era deslumbramento o que acontecia. Espanto. Será que alguma vez se perderia ali dentro? Como seria capaz de conhecer tanto lugar num lugar só? Quem chamaria, se não soubesse onde estava? Não deixava de ser uma viagem em busca do desconhecido.

Fila pra cantar o hino. Um hino do próprio Colégio? Outra vez deslumbramento. Às vezes o som silenciava como se a roda do relógio não estivesse girando. Tempo correndo sem pressa. Acelerado o tempo, o coração. Tempo de outra vida, passando depressa. Vamos, meninos, vamos subir a rampa para ir às salas. Daqui a pouco as aulas começam. Mais uma vez espanto. Eram outras vistas que a ajudavam a enxergar o que ainda não cabia de todo na sua.

Passaram os dias. Batidas na porta da frente. Soube o que é ter histórias engraçadas pra contar. Apaixonou-se. O desconhecido da vida se apresentava ali. A amizade, o carinho, a admiração e o respeito foram aprimorados. Subiu as escadas do pátio, a rampa pra Unidade III. Espanto não mais havia, mas deslumbramento, sim. A todo momento. 

Outra vida? Mesma vida, novo olhar. As responsabilidades e as decisões se aproximavam. Um dia, afinal, a gente acaba tendo de pôr um ponto no curso do rio. Mas escolhera botar mais dois pontos. Queria a terceira margem. Era muito apegada ao que não acaba, ao que permanece, ao que continua com as reticências. Amou. Ficou por vezes sentada no banco do pátio, entre os pombos, vendo como era bom não ver o tempo passar. E ele corria. Aulas e aulas que poderiam ser repetidas, ela nem se importava. Queria mesmo que fossem. Manhãs de alegria e tardes de alegria. Noites de recordação. Já sabia andar por qualquer parte do que não mais era desconhecido.

Despediu-se no dia 22 de dezembro de 2010, no Teatro Mário Lago. Era preciso percorrer outros caminhos. O conjunto das estrelas havia acabado. Mas, repare, as constelações, elas não deixam de aparecer toda noite no céu. E era assim que amava. Uma luzinha voltava sempre a reacender o que havia sido atenuado. Alumbramento. Retornou quatro anos depois para redescobrir o brilho da vida e colocou de novo as reticências.

Seus olhos, hoje, conhecem todo o espaço e abraçam o Colégio inteiro, mas, por isso mesmo, o que cresceu desmesuradamente foi o amor pela Instituição. E é ele, agora, o que, apesar de caber no olhar, transborda no coração. 

Cento e setenta e sete anos. Obrigada, Pedro II.

sábado, 22 de novembro de 2014

A estrutura narrativa de Vidas Secas

Com a temática da seca e um estilo sintético porque também seco, o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, demonstra isomorfia entre forma (estilo) e conteúdo (temática). Nessa perspectiva, a exploração de uma escrita “a palo seco”, como se vê na poesia de João Cabral, constitui a completa estrutura do livro.

Cada parte da narrativa é uma representação do seu todo, havendo uma articulação entre a linguagem, os personagens, o espaço, a ação e o tema abordado. Sendo assim, esses elementos apropriam-se da seca e fazem com que ela seja a responsável pela composição da obra, de modo que tudo esteja representando o mesmo: a vida seca do sertanejo.
 
retirantes-vidas-secasNo entanto, o propósito de recorrência da ideia do seco não reduz ou empobrece a narrativa, pois, ao contrário disso, é o que possibilita seu estado de elevação e iluminação: trabalhar em torno do mesmo elemento, nesse caso, é uma maneira de indicar a unidade da obra e ratificar sua organicidade.

É a partir dessa unidade e dessa estrutura arquitetônica que podemos interpretar cada bloco narrativo como partes não tão autônomas, porque, mesmo possuindo um sentido completo, cada uma dessas partes constitui apenas uma irradiação do todo, que diz respeito, por sua vez, ao sentido pleno do livro.
 
Desse modo, a justaposição de capítulos – que se refletem porque representam o mesmo, embora de forma diferente – distancia rigorosamente a narrativa de seu modelo tradicional. Rompe-se a lógica de uma história composta por encadeamento de fatos, em que um acontecimento necessariamente leva a outro, e o que se tem, na verdade, é a impressão dos personagens, em cada bloco narrativo, acerca dos eventos.

Em Vidas secas importa, sobretudo, a reação mental do personagem e sua experiência emocional. Assim, o leitor habituado ao romance de costumes, que lê as páginas para saber somente o que acontecerá depois de algo já ocorrido, pode estranhar a estrutura do livro.

Em vez de uma única perspectiva do narrador doutrinário, portanto, o narrador de Vidas secas é multiperspectivado porque reflete, no ato de narrar, a perspectiva de um e de outro personagem, adotando, para isso, múltiplos pontos de vista.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Cruz e Souza, poeta simbolista

Cruz e Sousa, nascido em Santa Catarina, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1890 e começou a trabalhar na Folha Popular, jornal em que foram reunidos, pela primeira vez, os poetas representantes do movimento simbolista. Esse grupo de poetas, liderado por Cruz e Sousa, era contrário ao Realismo, ao Naturalismo e ao Parnasianismo, correntes já anteriormente consagradas na literatura brasileira.

Em 1893, o maior representante do Simbolismo brasileiro publica Missal, livro composto por poemas em prosa, e Broquéis, que abarca poemas em verso. Foi a partir de tais publicações, sobretudo da segunda, que ele marcou uma nova tendência literária, caracterizada pelo espiritualismo, pela subjetividade, pela musicalidade e pelo predomínio da emoção – aspectos opostos ao Parnasianismo, que cultuava o cientificismo, a exterioridade objetiva, o rebuscamento e a racionalidade.

Como aponta Raimundo Magalhães Jr. no livro Poesia e vida de Cruz e Sousa, o poeta, quando publicou Broquéis e alcançou certa visibilidade, foi bastante criticado na imprensa: Artur Azevedo, José Veríssimo, Rodrigo Otávio e Araripe Jr., por exemplo, escreveram negativamente sobre Cruz e Sousa. No embate entre os simbolistas e os adeptos das outras correntes citadas, porém, havia certa contenção por parte dos primeiros, que pertenciam a uma atmosfera mística e sutil. Enquanto estes demonstravam total antipatia à objetividade e à exatidão, os parnasianos consideravam-nos como “nefelibatas”, ou seja, como escritores que viviam nas nuvens.

Para o poeta parnasiano, de acordo com Alfredo Bosi em História concisa da literatura brasileira, “tudo pode ser dito com clareza”, porque “não há transcendência em relação às palavras”. Diferentemente disso, o simbolista Cruz e Sousa imprime à palavra a tensão entre matéria e espírito, explorando exatamente a transcendência inexistente no Parnasianismo, como se pode verificar no poema “Cárcere das almas”:

Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!

Embora não seja o único representante do Simbolismo, é possível dizer que Cruz e Sousa seja o principal responsável pelo seu encerramento. Quando o poeta falece, em 1898, o movimento deixa de ter a organização e a força que antes possuía, mesmo permanecendo por algum tempo graças a outros escritores. A influência simbolista, contudo, acaba manifestando-se no Modernismo, que abrange um grupo, ainda que mergulhado nas novidades modernistas, vinculado a certo espiritualismo, a exemplo de Ribeiro Couto, Cecília Meireles e Tasso da Silveira.

Cabe dizer, por fim, que Cruz e Sousa, sendo um poeta negro, sofreu bastante com o racismo e, atualmente, sofre com o possível silenciamento de seus versos e de sua história, já que é muitas vezes esquecido. Nesse sentido, o estudo do movimento literário no qual ele se insere é uma maneira de valorizá-lo e de reconhecer sua grandeza não só na literatura, mas, também, na cultura nacional.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

domingo, 12 de outubro de 2014

Machado de Assis, um sujeito político

O "bruxo do Cosme Velho", denominação atribuída a Machado de Assis por Drummond, foi considerado pela crítica um homem apolítico e despreocupado com as questões sociais de seu tempo. No entanto, um escritor que produziu crônicas por quase cinquenta anos, a meu ver, não poder ser visto como escapista ou indiferente a aspectos históricos, tendo em vista que a crônica geralmente trabalha com fatos atrelados ao cotidiano.

Logo que começou a publicar seus folhetins no jornal O Espelho, gênero que mais tarde se desdobraria em crônica e em romance, ele define a seu modo o trabalho de quem escrevia nessa seção jornalística: "O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política".

As crônicas publicadas na Gazeta de Notícias sob o título de "A Semana", por exemplo, referem-se aos anos que vão de 1892 até 1897. Em época de recente instauração da República e Abolição da Escravatura, Machado denuncia a farsa do novo regime, que continuaria com a oligarquia no poder, e também aponta, embora não sem reconhecer o valor da lei assinada, a discriminação que os negros continuariam a sofrer no âmbito social.
 
Somado a isso, é constante vermos em suas crônicas comentários sobre a crise decorrente da política do Encilhamento, formulada pelo então ministro da fazenda Rui Barbosa no governo de Deodoro da Fonseca, e sobre as reformas urbanas que já causavam impacto no Rio de Janeiro.

Neste tempo de segundo turno, período propício a falar de eleições, seleciono dois trechos de crônicas machadianas que mostram a preocupação política do escritor, sempre atento ao movimento da história, e que explicitam a importância do voto por meio de uma espécie de súplica feita ao leitor, convidando-o a votar e a participar conscientemente como cidadão:

Crônica de 7 de agosto de 1892 (fragmento):

“Indiferença diz pouco em relação à causa real, que é a inércia. Inércia, eis a causa! Estudai o eleitor; em vez de andares a trocar as pernas entre três e seis horas da tarde, estudai o eleitor. Achá-lo-ei bom, honesto, desejoso da felicidade nacional. Ele enche os teatros, vai às paradas, às procissões, aos bailes, aonde quer que há pitoresco e verdadeiro gozo pessoal. Façam-me o favor de dizer que pitoresco e que espécie de gozo pessoal há em uma eleição? Sair de casa sem almoço (em domingo, note-se!), sem leitura de jornais, sem sofá ou rede, sem chambre, sem um ou dois pequerruchos, para ir votar em alguém que o represente no Congresso, não é o que vulgarmente se chama de caceteação? Que tem o eleitor com isso? Pois não há governo? O cidadão, além dos impostos, há de ser perseguido com eleições?
(…)
Que fazer? Aqui entra a minha medicação soberana. (…) O eleitor não vai à urna, a urna vai ao eleitor.”

Crônica de 30 de outubro de 1892 (fragmento):

“Hoje, domingo, não há a mesma multidão, o eleitorado é restrito; mas podia e devia haver mais calor. Trata-se não menos que de eleger o primeiro conselho municipal do Distrito Federal, que é ainda e será a capital verdadeira e histórica do Brasil. Não é eleição que apaixone, concordo; não há paixões puramente políticas. Nem paixões são cousas que se encomendem, como partidos não são cousas que se evoquem. Mas (permitam-me esta velha banalidade) há sempre a paixão do bem e do interesse público. Eia, animai-vos um pouco, se não é tarde; mas, se é tarde, guardai-vos para a primeira eleição que vier. Contanto que não quebreis urnas, nem as fecundeis — a conselho meu, — agitai-vos, meus caros eleitores, agitai-vos um tanto mais.

Por hoje, leitor amigo, vai tranquilamente dar o teu voto. Vai, anda, vai escolher os intendentes que devem representar-nos e defender os interesses comuns da nossa cidade.”

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

sábado, 27 de setembro de 2014

Paulo Honório, descrito pela ausência de descrição

A literatura pode muito dizer mesmo quando não explicita graficamente a mensagem, utilizando a coerência e a interpretação como suporte para o entendimento completo de algo que se mostra implícito. É a partir dessa perspectiva que conhecemos o narrador-personagem de São Bernardo, romance de Graciliano Ramos, nos primeiros “dois capítulos perdidos” do livro.

Em verdade, ao contrário do que o narrador postula, nada têm de perda os dois primeiros capítulos, porque, enquanto nos deparamos com a maneira de Paulo Honório contar os fatos, descobrimos como é seu caráter e, consequentemente, como é feita a construção desse personagem.

Assim, sem uma apresentação de seu perfil, algo que habitualmente encontramos nos romances de costumes, o leitor apreende dos acontecimentos narrados características que permitem identificar a figura de Paulo Honório como uma pessoa que se mostra enérgica, persistente, diligente e, nas palavras de João Luiz Lafetá, como um homem “que não se desanima com os fracassos”.

No primeiro capítulo, vemos sua proposta de criar o livro a partir da “divisão do trabalho”, o que decerto implica a colaboração de diferentes pessoas. Depois de expor quem ficaria com cada parte e mostrar-se entusiasmado com todo o processo, o protagonista logo percebe certo empecilho: “Estive uma semana bastante animado, em conferência com os principais colaboradores, e já via os volumes expostos, um milheiro vendido graças aos elogios que (…) eu meteria na esfomeada Gazeta, mediante lambujem”.
 
Mas o otimismo levou água na fervura, compreendi que não nos entendíamos.” Essa atitude de encarar a realidade sem lamentações, aceitando o provável insucesso da obra mas não desistindo de seu projeto, confirma a ideia de que estamos diante de um sujeito contrário ao desânimo. Tal caracterização, como se vê, é percebida apenas pela maneira como ele demonstra seu ponto de vista.

Além disso, até mesmo seu nome ele não nos diz, de modo que só o descobrimos em um diálogo em que outro personagem, Azevedo Gondim, faz a ele referência, desejando explicar-lhe que “um artista não pode escrever como fala”: “Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo.” Portanto, da mesma maneira que tomamos conhecimento do caráter de Paulo Honório através de suas atitudes, em vez de mera descrição já pronta, seu nome acaba chegando ao leitor por meio de outra voz.

No mais, ao longo do romance – narrativa sobre a vida desse personagem –, o estilo literário de Graciliano Ramos molda-se magistralmente para contar a conquista da terra de São Bernardo, a ambição do grande fazendeiro que se torna Paulo Honório, seu desejo de ter um herdeiro – ainda que impossibilitado de amar – e como ele, regido pelo egoísmo e pelo poder, traça seu próprio destino solitário.

Toda a construção do livro, nesse sentido, faz-se por uma linguagem sem rodeios e por um ritmo avesso à morosidade, desvendando um personagem que, sem descrição prévia de personalidade, é descrito pelos atos e pelas atitudes reveladas ao correr das páginas.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A parte ida

Ao lado de meu avô,
meu tempo era de barco
(navegação que dita aonde vou,
esparso rio à disposição 
de criança que vê tudo a cor).

Com meu avô a tempo,
poucas ondas observam o curso
do rio escasso; perigo do vento
no percurso se elimina, e fica
só a miúda embarcação construída,
pequena neta instruída, a ida.

Mas chega também partida
no todo tempo de meu avô;
a margem comporta o barco 
(e a vida) que com ele sou:
dividido deslocamento amargo
seca rio, disseca água, apaga cor.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Incômodo

aqui, no escuro do frio,
a porta trancada e às avessas
paisagens, miragem de baldio
espaço arterial, e boca ilesa
que só rio,

ressecado cômodo incomoda
(como caco desaconchegado, 
prego entranhado, amor em
longe lado) e torna acre a hora
que em abismo se afoga,

aqui, na roda do tempo,
na rota que invento, recorto
pedaços de riso, recordo 
traço em divisa, e lembro,

no incômodo acomodado  
(a agonia se sente acolhida)
da casa: faz uma falta fodida
calar teu sussurro inebriado.

sábado, 30 de agosto de 2014

A crônica esportiva de Nelson Rodrigues

Bem se sabe que Nelson Rodrigues tem uma rica produção, considerando seu trabalho, em diferentes campos de atuação, como escritor, dramaturgo e jornalista. Atendo-se às suas crônicas, por exemplo, ele constrói, por meio do envolvimento entre os fatos jornalísticos e a recriação do real – aspecto marcadamente literário –, personagens que se tornam próprios de sua criação textual. A partir disso, podem ser feitas muitas análises interessantes sobre os escritos do anjo pornográfico, sendo uma delas a relação que ele possui com o esporte e, em especial, com o futebol.

No que se refere a essa temática, temos diversas denominações, que são codinomes ou epítetos, criadas por Nelson para aludir a seus protagonistas. É o caso, por exemplo, de Didi, jogador do Botafogo, que é tratado como “príncipe etíope do rancho” ou “imperador Jones”, e de Zagalo, chamado “Coração de Leão”. Além disso, há também os personagens inventados pelo cronista, a exemplo do Gravatinha, da grã-fina das narinas de cadáver e do Ceguinho.

A crônica esportiva começou a ser por ele escrita a partir da década 50 no jornal Última Hora e, posteriormente, na revista Manchete Esportiva, já apresentando um modo de narrar próprio de um relato subjetivo e de resgate de memória, tendo em vista suas impressões acerca de determinado fato ou a lembrança do passado como ponto de partida da construção do texto. Cabe dizer, porém, que os acontecimentos acabam não sendo o fator central explorado por Nelson, como se o texto fosse meramente informativo, porque ele imprime à crônica um teor crítico na medida em que divaga ou comenta sobre algum aspecto referente ao comportamento humano. Dessa forma, a crônica assume um caráter transtemporal, já que não se limita a ser simples relato de um episódio.

A maneira como o cronista narra remete a um conceito autobiográfico, como ocorre na crônica intitulada “Bocage no futebol”, publicada em 14 de janeiro de 1956 na Manchete Esportiva. Nela, ele aborda o “impacto criador e libertário” do palavrão, sobretudo no futebol. O viés autobiográfico é percebido logo no início da crônica, quando o escritor recorre à memória da infância para escrever sobre o jogador Jaguaré, que não se adapta ao futebol europeu por este não fazer uso de “nome feio” e volta a jogar no Brasil, ganhando pouco, “mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos”.

Nesse sentido, o exemplo do jogador Jaguaré é usado como ilustração de um pensamento sobre o uso do palavrão, defendendo um comportamento que muitas vezes é moralmente condenado. Diga-se de passagem, essa concepção rodrigueana faz grande falta a quem tem de conviver com o moralismo chato que, naturalmente, está presente não só no futebol.

O método de utilizar um fato para concretizar o pensamento exposto no texto pode ser visto também em outra crônica publicada na Manchete Esportiva, referente à morte de Maneco, jogador do América, que cometeu suicídio – tomando formicida – por causa de problemas profissionais e financeiros.

Tendo tal episódio como ponto de partida de sua reflexão, Nelson diz o seguinte: “Cada um de nós é um suicida frustrado. E se ainda não estouramos os miolos, ou não pendemos de uma forca, ou não tomamos formicida, é que nos salva, sempre em cima da hora, a nossa incoercível pusilanimidade vital. Mas se cancelamos o nosso suicídio, admiramos e, mais do que isso, invejamos o alheio”. Sendo assim, o que se tem nessa passagem é uma divagação sobre certa temática humana, que demonstra, claramente, uma visão inversa àquela que a sociedade geralmente adota sobre o suicídio.

Por meio de exemplos como esse, portanto, pode-se confirmar o caráter de a crônica de Nelson Rodrigues não se limitar a um mero julgamento simplista de determinado acontecimento. Além disso, é uma grande contribuição histórica, sem dúvida, ter o futebol de sua época tão bem registrado para o leitor que é apaixonado pelo esporte.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

sábado, 16 de agosto de 2014

João Cabral, uma poesia a palo seco

João Cabral de Melo Neto, poeta nascido no Recife, é associado cronologicamente à geração de 45 do Modernismo brasileiro, mas, em verdade, suas características destoam das que normalmente definem tal momento literário. Contrário ao sentimentalismo poético e defensor de uma poesia escrita ‘a palo seco’, ele produz com exatidão e objetividade e, por isso, ocupa um espaço singular na Literatura.

A preferência pelo encontro de consoantes na composição poética, aspecto que negligencia a suavidade atingida pela melodia das vogais, faz com que o elemento “pedra” represente semanticamente essa valorização ao selecionar as palavras que serão por ele utilizadas. Seu primeiro livro intitula-se Pedra do sono (1942) e o último, A educação pela pedra (1966), mostrando esse elemento não como um estorvo no meio do caminho, mas como possibilidade de educar-se por meio do despertar provocado por um eventual tropeço.

Isso fica mais claro, por exemplo, a partir do entendimento do poema “Catar feijão”, no qual ele compara o processo de escrever com o ato de catar feijão: neste, retira-se “um grão qualquer, pedra ou indigesto,/ um grão imastigável, de quebrar dente” que ocasionalmente esteja entre os grãos de feijão; na composição poética, porém, acontece o contrário – deve ser selecionada a melhor palavra, representada, pois, pela pedra, já que “a pedra dá à frase seu grão mais vivo:/ obstrui a leitura fluviante, flutual,/ açula a atenção, isca-a como o risco.”

A exatidão e a objetividade da produção literária de João Cabral podem ser vistas sobretudo no modo como foi criada sua obra Serial: totalmente articulada em torno do número quatro, é composta por dezesseis poemas – quatro ao quadrado –, todos eles são divididos em quatro partes e há o trabalho com quatro variantes métricas, além de outros aspectos que remetem ao mesmo número. É nesse livro que encontramos, a meu ver, um de seus melhores poemas, “Graciliano Ramos:”, que será brevemente analisado:

GRACILIANO RAMOS:

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

***

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

***

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga,
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

***

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.

A temática do sertão aproxima João Cabral de Melo Neto de Graciliano Ramos, a quem o título se refere estabelecendo um diálogo com Vidas Secas. Nesse romance, os personagens têm uma fala limitada, com construções simples, fato que permite a relação da pobreza vocabular com a experiência da miséria. João Cabral acredita que a vida no sertão não pode ser retratada por uma linguagem associada ao ritmo e à melodia dos versos, porque esses artifícios estariam dissociados da falta de humanidade a que são submetidos os que possuem uma vida severina. É por isso que ele utiliza somente “as mesmas vinte palavras”, palavras estas que giram “ao redor do sol”, ou seja, em um ambiente seco e escasso.

Ainda na primeira estrofe, temos a “faca” como um instrumento responsável tanto pela dor física do sertanejo quanto pela sua dor existencial. Pensando nesse mesmo signo a partir da análise da criação textual, percebemos que as palavras consideradas poéticas são evitadas por João Cabral justamente porque representariam o alimento que não deixa nítido o perigo de uma faca: a palavra literária, desse modo, funcionaria como enfeite ou floreio a uma realidade cruel e sem vida, da mesma maneira que a “crosta viscosa,/ resto de janta abaianada” cegaria uma possível cicatriz feita pela lâmina que corta.

Ademais, ao falar “somente do que fala”, o poeta esclarece o sertão como tema: um ambiente reduzido ao espinhaço, sem espaço para a folha prolixa ou vistosa de um cenário que não faz parte daquele lugar seco. Mais adiante, ao falar “somente por quem fala”, ele dá voz às pessoas que vivem no sertão, submetidas à falta de dignidade e a uma experiência vital “em que só cabe cultivar/ o que é sinônimo da míngua”.

Por fim, as duas últimas estrofes expressam a quem o poeta direciona seu lamento, como se fosse um aviso ao leitor para que este desperte do “sono de morto” e enxergue a problemática social tratada no poema. O sol “estridente”, quando “bate nas pálpebras como/ se bate numa porta a socos”, evidencia a urgência de alertar e mostrar essa realidade àqueles que a desconhecem ou mantêm distância dela.

“Graciliano Ramos:”, portanto, serve como um bom exemplo para uma breve compreensão de sua obra. A partir da leitura desse poema, percebe-se a presença constante do atrito de consoantes, a temática do sertão, a preocupação com a divisão exata da forma, a crítica às palavras consideradas poéticas e a denúncia social, características que marcam fortemente a composição literária de João Cabral de Melo Neto.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.


sábado, 2 de agosto de 2014

Ariano Suassuna e a possibilidade de um país real

Diante de uma realidade que permite a compreensão de dois Brasis, um referente à valorização de sua própria essência e outro relacionado ao desconhecimento da mesma, pode-se entender aquilo que Machado de Assis apontou, em crônica de 18 de dezembro 1861, como País Real e País Oficial. Para ele, o primeiro é “bom e reserva os melhores instintos”, ao passo que o segundo mostra-se “caricato e burlesco”.

É essa perspectiva que Ariano Suassuna explora na tônica da dramaturgia e da literatura que produz, estendendo o tema, naturalmente, às palestras que apresenta. Em uma de suas aulas-espetáculo, ele analisa essa oposição que Machado de Assis aponta para comentar sobre a cultura popular e a cultura de massa, explicitando as diferenças expostas na visão de um país esmagado pela indústria cultural e de outro concebido a partir das raízes da arte popular. Defensor incansável das manifestações de um povo que segue esquecido e negligenciado pelo discurso histórico comumente adotado, o fundador do Movimento Armorial buscou sempre a mediação entre a cultura oral e a letrada.

Cabe dizer que o Movimento Armorial foi lançado em outubro de 1970, no Recife, com o objetivo de promover uma arte brasileira erudita a partir da cultura popular, de modo que esta fosse respeitada e valorizada por muitos que ainda desconhecem sua origem. Nesse sentido, Suassuna faz com que tal pensamento esteja sempre atrelado ao seu trabalho com a palavra, fato que pode ser percebido até mesmo na expressão usada para designar suas palestras: “aula-espetáculo” congrega dois substantivos com significados referentes, respectivamente, ao erudito e ao popular. Além disso, a representação literária do Movimento lançado é feita magistralmente no Romance da Pedra do Reino, cujo título do primeiro capítulo – “Pequeno cantar acadêmico a modo de introdução” – já expressa a junção do canto popular com a erudição acadêmica.

O narrador-personagem do romance, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, é a personificação das dualidades tão ressaltadas pelo seu criador, porque reúne, por exemplo, o religioso e o satírico, a fidalguia e a plebe, o drama e o riso. A maneira como ele enxerga o Sertão é a mesma maneira de Suassuna enxergar o Brasil. Quando Quaderna – dessa vez em O Rei Degolado, romance do qual ele é também narrador-personagem – diz achar “o Sertão bonito exatamente por causa daquilo que os delicados acham feio nele”, o que se tem é a subversão do olhar que geralmente é adotado para analisar nosso próprio território.

Com a intenção de produzir uma arte genuinamente brasileira, o escritor mostra-se contrário ao desvirtuamento que a indústria cultural causa no produto artístico. A padronização que torna a arte submissa ao mercado retira a peculiaridade das origens da cultura popular para transformá-la e passar a concebê-la como mercadoria. Desse modo, a falta de compreensão ou conhecimento daquilo que é popular pelos próprios brasileiros é um fator decorrente dos preconceitos burgueses pertencentes à sociedade moderna, que promove cada vez mais o desencantamento dos nossos valores.

É por isso que as apresentações e produções de Ariano Suassuna são imprescindíveis para compreendermos a relevância das miudezas tão irrelevantes na concepção de quem desconhece o que há de melhor na cultura nacional.

Ele é uma grande possibilidade para nós, brasileiros, adentrarmos no País Real e nos aproximarmos dos encantamentos que o País Oficial afasta por ser “caricato e burlesco”.

Publicado oficialmente no Ouro de Tolo.

sábado, 19 de julho de 2014

O Brasil de Lima Barreto

Em 1982, a Unidos da Tijuca levou um mulato, jornalista e escritor para a Avenida. Reverenciando Lima Barreto, o samba que canta e encanta o enredo de Renato Lage sintetiza a vida de um grande brasileiro que, com uma história marcada por discriminação e humilhação, utilizou as letras como instrumento crítico para refletir sobre determinados aspectos sociais.

Por ser um observador atento da realidade, seus romances apresentam cenas e perspectivas que permitem aproximá-los do estilo das crônicas, com uma linguagem associada à informalidade e ao ritmo de escrita próprio desse gênero, o que significa, então, certo distanciamento do rebuscamento e da norma culta tão valorizados pelo Parnasianismo. A abordagem urbana e cotidiana de sua narrativa relaciona-se bastante, nesse sentido, com o cronista que foi Lima Barreto, preocupado em denunciar as posturas avessas a uma sociedade igualitária e, sobretudo, inclusiva.
 
Inserido numa época em que o Rio de Janeiro buscava a modernização inspirada no modelo parisiense e, consequentemente, a higienização que excluía e marginalizava os indivíduos pertencentes às camadas mais baixas, “o mestiço que nasceu nesta cidade” se opõe a essa medida de segregação, diferentemente de grande parte dos literatos e daqueles que representavam a elite brasileira. Para ele, a Literatura tinha a função social de estimular o ideal de fraternidade e de debochar dos fatores pífios que contribuíam para a desigualdade, não sendo possível, dessa maneira, compactuar com o alheamento das problemáticas de seu tempo.

É a partir de tal concepção que a produção literária de Lima Barreto também apresenta, muitas vezes, episódios de sua própria experiência como cidadão consciente e vítima do preconceito.

Tomando algumas de suas obras como exemplo, pode-se dizer que ele reflete sobre os limites do nacionalismo em Triste Fim de Policarpo Quaresma; expõe a ofensa do preconceito racial e de classe em Recordações do Escrivão Isaías Caminha e em Clara dos Anjos; registra o que passou num manicômio, quando se internou por alcoolismo, em Cemitérios dos Vivos; examina a farsa da Abolição e da República numa cidade em vias de modernização em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá; e analisa satiricamente o Brasil da época em Os Bruzundangas.

Além disso e das opiniões que também transmitia nos jornais, o cenário suburbano, a presença do botequim, a defesa de uma cidade multifacetada, a possibilidade de coexistência cultural em uma época cujo objetivo era padronizar um modo de vida por meio da exclusão de outros e a preocupação com a verdadeira identidade do Rio de Janeiro são aspectos que fazem com que o meu Brasil seja o mesmo Brasil de Lima Barreto. Rejeitado pelos acadêmicos mas homenageado pelo povo no Carnaval, tem e seguirá tendo suas ideias vivas, estas sempre contrariando as figuras que perpetuam o desejo de mascarar e esconder parte de nossa cultura.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

Lá de Itaparica

Embora muita gente ainda não tenha notado, com o término da Copa e o retorno de um Campeonato Brasileiro nada motivador para os cariocas da série A, iniciou-se há pouco tempo o período de campanha eleitoral e algumas discussões começaram a ser esboçadas, ainda que vez ou outra estejam restritas a meras manipulações de dados ou a imperativos ditos de modo impetuoso.

Já li, como é costume ler nestes meses antecedentes às eleições, bem intencionados que incentivam o voto nulo como se ele fizesse parte da contagem de votos válidos. Certo dia, acredito ter sido no mês passado, deram de cismar numa conversa que a nulidade garantiria mudança no panorama político porque anularia as eleições por meio da demonstração da insatisfação dos cidadãos. Sorri um sorriso pontual, repeti que a anulação só ocorreria em caso de fraude e continuei a ver o noticiário.

Creio que o hábito de acompanhar o noticiário ao acordar, frequentemente em jornais eletrônicos, seja algum tipo de influência da minha avó materna, que vai todos os dias à banca e passa a manhã lendo jornal. Foi assim que, tomando café na sexta que findou, deparei-me com a eternidade que João Ubaldo Ribeiro alcançava por, de repente, ter ficado ausentemente presente. Lembro que há alguns anos eu vi o autor de Viva o povo brasileiro dizer que o boteco carioca é mais rico do que qualquer similar nacional ou estrangeiro porque servia para ele como inspiração e permitia-lhe maior contato com o mundo e com as pessoas. Deve ter sido nesse momento que o escolhi como um escritor que não poderia faltar nas minhas leituras.

A verdade, porém, é que ainda preciso ler muito das produções de João Ubaldo Ribeiro, porque a característica de aprender e reaprender enquanto são lidas as suas obras é o que faz com que a curiosidade não termine e a sua narrativa seja encantadora. Às vezes, quando fico meio em dúvida se gosto mais da ficção ou da história, acabo sempre constatando que gosto mesmo é da história que a ficção recria. E o autor baiano tem sua parte nisso, consagrado no romance brasileiro de forma emblemática.

Ademais, a brasilidade descrita no cotidiano, na improbidade mascarada, na beleza, na virtude, no viralatismo, na fé ritualística e na força inquestionável de Ogum na guerra faz com que a gente ouça comovido o samba da Império da Tijuca de 1987, uma homenagem àquele que veio lá de Itaparica. O que pretendo fazer, agora, é continuar absorvendo a influência de João Ubaldo Ribeiro, não só lendo suas publicações, mas também indo ao boteco, coisa que ele fazia quase todos os finais de semana.

sábado, 12 de julho de 2014

Firula inexata

Depois de comemorarmos a vitória sobre a Colômbia com dois gols dos zagueiros Thiago Silva e David Luiz e lamentarmos a lesão de Neymar sem sermos patrocinados para tal, acreditamos que a paixão, a sorte ou qualquer outro fator que não fosse técnico venceria com certa dificuldade a excelente equipe alemã. Diante do telão e dos amigos, olhei o time da Alemanha chegando ao estádio e comentei que era meio impossível vê-lo perder, mas a paixão, bem se sabe, não tá nem aí pro impossível.

O problema maior não foi a falta momentânea do craque lesionado ou do zagueiro que ficou fora do jogo devido a um cartão recebido no anterior, mas, obviamente, da inexistência constante de um meio-campo bem organizado, como muitos, com exceção do treinador, perceberam. Chorei nos minutos que declaravam a eliminação e me senti ridícula por algum tempo, mas, assim como as cartas de amor de Álvaro de Campos, não seríamos torcedores se não fôssemos ridículos.

Foi difícil dormir no dia da derrota por 7x1. Foi triste acordar no dia seguinte sabendo que não era pesadelo. Mesmo com as possíveis e positivas reflexões a serem feitas depois do que aconteceu com a Seleção, o que se pode constatar é que a CBF, tanto mental quanto estruturalmente, deve continuar a mesma, porque, utilizando as palavras do narrador machadiano em Esaú e Jacó, "nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele".

Seguindo o conselho de Almir Guineto e deixando de lado esse baixo-astral, deixo de lado também qualquer fator que transcenda a bola no pé para torcer na final em que o Maracanã não estará verde e amarelo. Evito critérios políticos e substituo o desejo alheio de não querer vitória européia em nosso território por admiração a Podolski e Schweinsteiger, novos adeptos do manto sagrado, e sobretudo ao primeiro, que aproveitou a Copa no Brasil para se encantar mais fora de campo do que dentro dele. Diga-se de passagem, é exatamente esse encantamento que falta a muitos brasileiros.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Duplo domínio

Em uma das melhores aulas que tive na Faculdade de Letras, um professor de Literatura Brasileira disse que o discurso literário é o mais completo e o mais complexo se comparado a qualquer outro, pois congrega consciência racional e experiencial emocional, diferentemente dos discursos científicos ou filosóficos, por exemplo, que se restringem à lógica e à razão. E confesso que, depois de ter me dado conta disso, estudar Literatura ficou ainda mais apaixonante.

A verdade é que fomos habituados a entender que o texto mais próximo do real é aquele que preza pela racionalidade da escrita e não permite doses de subjetivismo, de modo que, na escola, precisamos redigir textos geralmente na terceira pessoa, circunstância que é mantida na criação de monografias, dissertações e teses. No entanto, essa predileção pela razão afasta-se da realidade justamente por contemplar somente um lado da condição humana, colocando num plano inferior ou simplesmente descartando as experiências individuais de cada um e, consequentemente, suas perspectivas emocionais. Conceber o homem como puramente racional ou, do mesmo modo, como exclusivamente emocional é rejeitar uma de suas partes e, portanto, distanciar-se da realidade que diz respeito à reunião desses dois pólos.

Pois bem. Foi justamente em torno de tais opostos que giraram as discussões da semana, evidência máxima de que o futebol, assim como o discurso literário, também abarca o duplo domínio da vida humana. Mas isso é posterior ao jogo. Assistir à partida que levaria o escrete às quartas de final não foi fácil.  

Depois de noventa minutos que só permitiram um gol pro Brasil e outro pro Chile, com um gol de Hulk anulado por ter dominado a bola com o braço, os trinta minutos de acréscimo vieram e, no segundo tempo, Pinilla chutou a bola no travessão. Um alívio para os apreensivos brasileiros e uma tatuagem para o chileno. Nosso sofrimento, que parecia interminável nesses cento e vinte minutos, teve de se arrastar aos pênaltis. Neymar, que passou praticamente o jogo todo com dores na perna devido a um choque, foi escalado por Felipão pra ser o primeiro a bater, mas, diante dos fatos, bateu o último pênalti. Foi decisivo, assim como Julio Cesar, que, para a surpresa de seus tantos críticos, fez ótimas defesas. Thiago Silva desesperou-se ao ver que a disputa iria para os pênaltis e preferiu rezar, completamente frágil e emocionado. O capitão não chutou na hora de definir o placar. 

Bastou o feito para as opiniões dos torcedores serem divididas: de um lado, os defensores de uma integridade racional; de outro, os que exaltam a virtude emotiva. Concordo, decerto, que a atitude do capitão de um time seja assumir a responsabilidade e encarar a liderança do jogo. A consciência racional faria com que Thiago Silva batesse o pênalti. Mas que somos nós diante dos grandes instantes da vida? Ainda não estamos habituados com a fragilidade porque fomos adestrados aos extremos da racionalidade, mesmo que seja preciso lançar mão do fingimento para lidar com eles. A experiência emocional também tem voz. A gente é que acha que ela deve sempre fazer silêncio.

No mais, o que desejo é que essa voz transforme o choro em uma força que impulsiona e capacita. Jogaremos contra a melhor seleção da Copa, enfrentaremos James Rodríguez, que anda sendo ovacionado como se já fosse o maior craque dos últimos tempos, e teremos de torcer muito pela marcação correta de Cuadrado, o jogador colombiano que, a meu ver, oferece mais perigos do que o até então artilheiro do Mundial. Diante da pulsação apavorada de um coração que não se acalma, eu duvido muito que consigamos silenciar nossa emoção.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Uma tensão intolerável

Ter ido a Copacabana durante a Copa ficou bem mais divertido depois que assisti à gravação dos "yellow blocs". Havia um samba argentino, uma embriaguez holandesa, uma comemoração mexicana, um grito chileno, uma confiança costarriquenha e, diante disso tudo, afirmo aos simpatizantes do vídeo que vale muito a pena correr o risco de tomar uma faca no baço. A única coisa que me incomodou no dia em que eu estava na praia carioca, aliás, foi ver a boa atuação do Ochoa, que deixou nossa Seleção no zero a zero.

Na última partida do Brasil, contra Camarões, peguei carona no samba do Originais e fui parar no Renascença, o doce refúgio que me foi apresentado por um professor de geografia em 2010 e que desde então frequento. A melhor roda do Rio de Janeiro, comandada por Moacyr Luz, tem um dom incrível de alegria. Vejam vocês que, como cantou Noel Rosa, ninguém aprende samba no colégio, mas, às vezes, pode ser ele que ensine a gente a ir ao samba. Coisas nossas.

Antes de o jogo começar, apostei que Fred faria um gol porque me distancio do clubismo que ataca mais do que critica e preenchi a agonia que antecede o apito do juiz com o pandeiro, o ganzá e o tamborim. Saudades da Guanabara. Ligação e recordação recordando essa cor de coração pra dizer, mais uma vez, que o meu peito é uma lona armada. Cerveja gelada, barulho de vuvuzela, silêncio e Hino Nacional (com emoção, Zico...) cantado. O placar de 4x1 pro Brasil rendeu abraço, vibração e mais cavaquinho. Chorei Élton Medeiros, sorri João Nogueira, cantei Candeia e sussurrei Cartola. Ele é a corda e eu sou a caçamba.

Mas vamos aos fatos futuros: enfrentaremos o incansável time de Sánchez e Vidal e eu recorro ao Nelson Rodrigues de 1962 pra dizer que "tudo no jogo de amanhã justifica uma tensão intolerável". Qualquer erro nosso será trágico e o mais ínfimo acerto adversário será uma lástima para os brasileiros de bom caráter. Porém, enquanto o sábado não chega, aproveitemos – embora não sem lamentar – este difícil dia sem Copa do Mundo, imersos na ansiedade do imprevisível futebol.

domingo, 15 de junho de 2014

Comboio de corda

A semana começou com um personagem-heterônimo que viajou a Lisboa depois de passar um tempo no Brasil. Disse-me ele que "sábio é aquele que se contenta com o espetáculo do mundo" e eu fiquei a pensar no significado de "contentar-se": de um lado, o conformismo e a aceitação; de outro, a alegria e a emoção. Fechei o livro que citava a morte de Fernando Pessoa e lembrei-me de seu nascimento em 13 de junho.

Um dia antes, neste ano, vesti-me de verde e amarelo e fui à rua assistir à estreia da Copa. O espetáculo do mundo começaria com gols brasileiros e nós, espectadores, ficaríamos contentes com a partida. Mas é bom frisar que eu me contentei de alegria e não de conformismo. O extremismo de quem vê todo torcedor como alienado está longe de conhecer o sentimento que transcende qualquer fato, tese ou argumento, pois esse extremismo, em vez de ver e reparar os acontecimentos de modo dialético, enxerga-os a partir da dicotomia.

Ora, o problema da dicotomia é que ela exclui obrigatoriamente uma das partes, como se a Copa só pudesse ser boa ou ruim, e eu, particularmente, fujo das certezas defensoras de uma verdade absoluta. O que está ocorrendo no Brasil é histórico e confesso a vocês que, por estar acompanhando todos os jogos, falta-me tempo para escrever. Por isso, meu humilde conselho é que façam o mesmo e aproveitem os grandes e pequenos sopros de vida que o esporte pode nos proporcionar.

Percebam, então, que o futebol abarca em si o inesperado e o surpreendente, calando a exatidão da racionalidade. Há os que desejam o mau êxito do time brasileiro porque creem que isso servirá como espelhamento de uma nação fracassada, assim como acreditam alguns que a vaia à presidenta dentro de um estádio seja uma manifestação produtiva e de extremo bom senso. Torcer contra a Seleção e contra o Brasil, para mim, é perder-se no vazio das coisas exatas e cortar a corda infinita deste comboio chamado coração, que, lúdico, manda às favas a calha de roda. Que seja nossa a vitória.

domingo, 8 de junho de 2014

Sorria mais, criança

O episódio desta crônica poderia ser qualquer um dos assuntos a que a semana assistiu: a lei inconstitucional sancionada pelo governador, a divisão partidária no apoio aos candidatos à presidência, a nova evidência de que a tal assinatura de 1888 livrou o escravo do açoite mas prendeu-o na miséria ou a declaração do prefeito, que, em época de Copa do Mundo, disse que o Rio não esconde suas pessoas mais pobres. Pereira Passos também devia pronunciar tais palavras.

Fato é que o grande evento deste ano, embora seja visto com olhos exclusivamente desfavoráveis por alguns, já chegou às nossas ruas e abarca em si mesmo a complexidade de acontecer num Brasil com problemáticas em demasia e, ao mesmo tempo, avanços e qualidades peculiares. Imersa nessa situação de contradições inexplicáveis, portanto, digo que a minha torcida pela Seleção que aí está é imensa, ainda que eu discorde da postura abusiva e desrespeitosa das instituições e autoridades ligadas ao futebol.

Não é exatamente sobre isso que tenho a intenção de discorrer, no entanto. As boas e produtivas discussões às vezes se tornam enfadonhas e o que importa para mim, no momento, é a voz de Dona Ivone Lara cantando "Sorriso de Criança". Saibam vocês que num desses incertos dias, depois de ver alguns ursos coloridos, cachorros passeando, bicicletas na calçada e a confusão cinzenta do mar e do céu, sentei-me de costas para o horizonte e fiquei frente à verticalidade urbana. De repente, surgiu um menininho miúdo, de uma beleza gigante; o pequeno mal sabia andar, mas sabia sorrir como ninguém. Desviou do caminho que naturalmente seguiria, parou à minha frente e, sem demonstrar interesse em nada, deu-me de presente um sorriso de criança. Ficou ali sorrindo, me deixou surpresa e meio sem jeito, e depois foi embora espalhando amor por onde ia.

O posterior engarrafamento, as pautas midiáticas e os demais fatos sem relevância ao longo da semana até me tiraram a imagem mais bonita daquela tarde, pois a correria carrega essa capacidade de vez ou outra nos arrancar a graça da vida. O que é bom, porém, acaba sendo guardado com a gente – é dessa maneira que a saudade acontece, afinal – e o menininho ficou eternizado para mim como personagem deste registro. Assim, as notícias semanais tornaram-se secundárias quando dei início à escrita do texto, porque tenho cá as minhas convicções de que é sempre preciso deparar-se com a leveza da humanidade neófita antes de analisar os acontecimentos de um mundo caduco. Era só isso o que eu queria lhes dizer.