domingo, 5 de novembro de 2023
Foi um péssimo dia
domingo, 22 de outubro de 2023
É a Ales
O que de início me parecia estranho - a estrutura dos diálogos e a reiteração da expressão "ela/ele pensa" - pouco depois se transformou em dinamismo e reflexão, respectivamente. Os personagens pertencem a épocas diferentes e estão numa confluência que afrouxa a noção de agora, antes e depois. Quem não mais existe está ali. E daí evoco o "penso, logo existo" de Descartes, lendo tantas vezes "ela pensa" ou "ele pensa". A narrativa faz com que todas e todos (co)existam. Curiosamente, a leitura de Jon Fosse também me leva à pergunta na voz de Caetano: "Existirmos, a que será que se destina?"
A relação entre Asle e Signe e as relações familiares presentes no romance nos conduzem a uma janela aberta sem paisagem, diante do breu, com as inquietações que os traumas, as indecisões e as impotências provocam. "É a Ales" tem a capacidade de abordar esses temas com a paradoxal delicadeza de uma revoada dentro de uma gaiola: não há espaço para tantas sensações, mas contraditoriamente elas se instalam e se movimentam. Talvez por isso um só período de tempo (passado, presente ou futuro) não seja o bastante para a narrativa.
sábado, 23 de setembro de 2023
Estranha forma de vida
"Estranha forma de vida", o curta de Almodóvar que está nos cinemas, é esplêndido. E saí da sessão impressionada com tudo o que Almodóvar falou na entrevista - posterior ao curta -, que dura bem mais que meia hora.
O filme tem como foco as vidas entrelaçadas de dois homens em um cenário atípico porque historicamente machista: o faroeste. Com personalidades bem diferentes, um é mais carinhoso e sentimental, enquanto o outro coloca as leis acima de seus desejos.
O curta nos faz pensar em questões que envolvem masculinidade pela relação homossexual no gênero faroeste, em etarismo, e nos faz prestar atenção em curiosos detalhes do erótico: como explica Almodóvar, não houve interesse em mostrar cenas de sexo, mas em revelar o erótico a partir de palavras desnudas.
Tornar as palavras desnudas é como escrever um poema, fazer literatura. Por isso, mas não só, "Estranha forma de vida" é tão bom.
sexta-feira, 1 de setembro de 2023
sexta-feira, 30 de junho de 2023
segunda-feira, 3 de abril de 2023
segunda-feira, 13 de março de 2023
Guia
Enquanto descanso encostado no muro sob a marquise, a ver se a chuva para, acendo um cigarro. Espero pela última corrida do dia, torcendo para não desviar tanto dos arredores, porque depois vou para casa. Dois passageiros chegam apressados, fugidos da ameaça de temporal, e param na direção da porta traseira, boa noite, você pode nos levar até São Cristóvão, por favor?
segunda-feira, 23 de janeiro de 2023
Senha 124
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| Foto: Agência O Globo |
Abro o livro Aruanda da Eneida enquanto espero a consulta do meu pai num hospital público do Rio em um dia muito quente de verão. Na sala do ambulatório, bastante gente aguarda ser chamada pela senha. 124.
Passam por mim, do lado de fora, pessoas sérias, cansadas, falando sozinhas, conversando com outras, mexendo no celular ou na bolsa. Com a sacola no chão, apoiada na parede, uma senhora vende café. À minha frente, na outra rua, há uma casa decerto antiga, com a pintura bem gasta, uma varanda grande embora vazia e a imagem de uma santa ou um santo – não consigo identificar de longe – na fachada. O azulejo, bem próximo ao telhado, disposto na parte superior e de modo central, é uma das marcas dos subúrbios que se impõem; da infância que retorna; do passado, portanto, que não se prende a seu tempo.
Olho a página na qual tinha fechado e começo a ler a crônica que dá prosseguimento ao livro, "Companheiras". Nela, Eneida fala de quando esteve com mais vinte e quatro mulheres presas políticas numa sala da Casa de Detenção: "Quem já esqueceu o sombrio fascismo do estado Novo com seus crimes, perseguições, assassinatos, desaparecimentos, torturas?".
A pergunta sobre esquecimento fica vagando na minha cabeça, penso no que ainda está bem recente, olho de novo para a casa com o muro descascando, cansado do mesmo paradeiro, e imagino a revolta da cronista – e sobretudo da militante que ela foi – ao constatar que, pior que o esquecimento, é a capacidade de ignorar o que é lembrado, de não querer enxergar, de propósito, a memória.
124. A senha é pronunciada depois de eu ter lido alguns textos e guardado o livro. O número me leva à Eneida: ela, uma mulher, mais as outras vinte e quatro. As vinte e quatro mulheres e a que chegou depois, Elisa Soborovsk, responsável por marcar ainda mais aquele lugar, aquelas vidas ("O governo Getúlio Vargas entregou-a mais tarde à Gestapo. Hitler matou-a.").
Eneida e as "grandes mulheres; boas companheiras", assim como tantas outras, se impuseram, retornaram, não se prenderam a seu tempo. Lembrar-se delas é como emoldurar, na fachada de nossas casas, o que nos guarda e nos inspira.


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