domingo, 5 de novembro de 2023

Foi um péssimo dia


Um livro que nos dá a mão e nos conduz a um espaço, acolhedor e contraditoriamente desafiante, chamado memória: essa foi minha sensação ao ler o recém-lançado Foi um péssimo dia, de Natalia Borges Polesso. O primeiro período do livro já aponta para um movimento convidativo ao leitor: "Eu acho que lembrar da gente anos antes é um ótimo exercício para se compreender no agora". Inevitavelmente pensamos em nós mesmos antes de continuar a leitura.

E isso, ao menos pra mim, começa antes mesmo da primeira página: na organização da obra em duas partes, indicadas pelas páginas pretas ("para minha mãe" e "para meu pai"), já que a gente pensa, ainda que rapidamente e de maneira fragmentada, em um ou mais tópicos que poderiam ser explorados na escrita se fôssemos nós os autores; e na capa - a menina insatisfeita sentada na escada, de fone no ouvido e mochila ao lado, me remeteu à Thaís da época de Pedro II, que ia e voltava para/do colégio ouvindo música e tentando, por meio dela, achar algum sentido no que a adolescência lhe revelava.

Ambientado nas décadas de 80 e 90, o romance, ainda mais para quem as viveu, consegue ser familiar e surpreendente: menciona elementos próprios do período, como a bala soft e o walkman, e aborda a loucura de ter sido criança e adolescente nesses anos, muitas vezes acostumada ou acostumado com a incompreensão. O trecho sobre ansiedade é elucidativo: "Para uma pessoa ansiosa, não saber das coisas ou lidar com imprevistos pode desencadear crises, hoje eu sei (...). Naquela hora, eu não tinha ferramentas para lidar com esses sentimentos."

Foi um péssimo dia, além de nos relembrar um pouco - ou muito - do que fomos, é uma leitura atenta às emoções de crianças e adolescentes, de modo que o fone de ouvido da capa não me parece mero figurante, já que talvez a compreensão ou o conforto buscado nessas fases da vida sejam encontrados com frequência nas músicas. Recentemente ouvi "Não é sério", canção do Charlie Brown Jr. que fez parte da minha adolescência e que me veio à mente enquanto escrevia sobre o livro: "Sempre quis falar, nunca tive chance/ E tudo que eu queria estava fora do meu alcance", diz a letra. 

A escuta é necessária, e a literatura é uma forma peculiar de ouvir o outro. Que surpresa boa foi ter adquirido o romance na Primavera dos Livros, aqui no Rio, e ter tido a chance de ouvir a voz dessa narradora que sabe que "é o amor que alivia, que evita que a gente tenha somente dias péssimos. E tô falando de todos os tipos de amor."

domingo, 22 de outubro de 2023

É a Ales


Em certo trecho de "É a Ales", o ritmo da leitura me lembrou o da música "Streets of Philadelphia", que coloquei imediatamente para ouvir. Então me dei conta de que a música fala, com ar melancólico, sobre andar pelas ruas, sobre escuridão, sobre perspectiva indefinida. E é por aí que a narrativa do mais recente Nobel de Literatura caminha.

O que de início me parecia estranho - a estrutura dos diálogos e a reiteração da expressão "ela/ele pensa" - pouco depois se transformou em dinamismo e reflexão, respectivamente. Os personagens pertencem a épocas diferentes e estão numa confluência que afrouxa a noção de agora, antes e depois. Quem não mais existe está ali. E daí evoco o "penso, logo existo" de Descartes, lendo tantas vezes "ela pensa" ou "ele pensa". A narrativa faz com que todas e todos (co)existam. Curiosamente, a leitura de Jon Fosse também me leva à pergunta na voz de Caetano: "Existirmos, a que será que se destina?"

A relação entre Asle e Signe e as relações familiares presentes no romance nos conduzem a uma janela aberta sem paisagem, diante do breu, com as inquietações que os traumas, as indecisões e as impotências provocam. "É a Ales" tem a capacidade de abordar esses temas com a paradoxal delicadeza de uma revoada dentro de uma gaiola: não há espaço para tantas sensações, mas contraditoriamente elas se instalam e se movimentam. Talvez por isso um só período de tempo (passado, presente ou futuro) não seja o bastante para a narrativa.

sábado, 23 de setembro de 2023

Estranha forma de vida


"Estranha forma de vida", o curta de Almodóvar que está nos cinemas, é esplêndido. E saí da sessão impressionada com tudo o que Almodóvar falou na entrevista - posterior ao curta -, que dura bem mais que meia hora. 

O filme tem como foco as vidas entrelaçadas de dois homens em um cenário atípico porque historicamente machista: o faroeste. Com personalidades bem diferentes, um é mais carinhoso e sentimental, enquanto o outro coloca as leis acima de seus desejos. 

O curta nos faz pensar em questões que envolvem masculinidade pela relação homossexual no gênero faroeste, em etarismo, e nos faz prestar atenção em curiosos detalhes do erótico: como explica Almodóvar, não houve interesse em mostrar cenas de sexo, mas em revelar o erótico a partir de palavras desnudas. 

Tornar as palavras desnudas é como escrever um poema, fazer literatura. Por isso, mas não só, "Estranha forma de vida" é tão bom.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Ninho

Meu conto "Ninho" foi publicado na 10ª edição da revista Contos de Samsara, que teve como tema a palavra "colmeia". Para ler o conto, que começa na página 45, basta acessar o link aqui e baixar o pdf da revista.


sexta-feira, 30 de junho de 2023

Meu conto "Nó" foi publicado na 9ª edição da revista Contos de Samsara, que teve como tema a palavra "colmeia". Para ler o conto, que começa na página 153, basta acessar o link aqui e baixar o pdf da revista.



segunda-feira, 3 de abril de 2023

Alívio

Meu conto "Alívio" foi publicado na 8ª edição da revista Contos de Samsara, que teve como tema a palavra "útero". Para ler o conto, que começa na página 76, basta acessar o link aqui e baixar o pdf da revista.


segunda-feira, 13 de março de 2023

Guia

Enquanto descanso encostado no muro sob a marquise, a ver se a chuva para, acendo um cigarro. Espero pela última corrida do dia, torcendo para não desviar tanto dos arredores, porque depois vou para casa. Dois passageiros chegam apressados, fugidos da ameaça de temporal, e param na direção da porta traseira, boa noite, você pode nos levar até São Cristóvão, por favor?

Apago o cigarro, entro no carro, ligo o relógio. No meio do caminho, para-brisas de um a outro lado, vejo o sinal verde e, apesar de perceber que o casal conversa, nem presto muita atenção no diálogo, com um cansaço acumulado desde as seis da manhã, quando saí para trabalhar. Dia cheio, a filha esperando, a fome batendo, na correria acabo não comendo direito, isso depende dos horários combinados com os passageiros. Que bom que ao menos hoje os sinais decidiram colaborar, às vezes todos ficam vermelhos, parece que também combinam um com o outro.

Segundos antes de passar pelo sinal verde, me assusto. Um senhor atravessa na frente do carro, sem olhar para cima, para os lados, nada. Não tenho tempo de frear, o casal no banco de trás emudece, fica tão em silêncio que some sem aviso e me deixa ali diante do atropelamento, um senhor caído no chão ao lado de uma lata de alumínio vazia e de um meio-fio que, ainda bem, não está com sangue. Abro a porta apavorado e, antes de conseguir pedir ajuda para socorrê-lo, ligar para bombeiro, qualquer coisa, vejo algumas pessoas se aproximando: cerca de dez homens abandonam os papelões onde estavam deitados debaixo de marquises, enrolados em panos rasgados, e andam na minha direção gritando tu tá maluco, vai morrer, filho da puta, quer matar o velho, caralho, a culpa foi tua, avançou o sinal. Com tantos olhares de raiva, vozes dormentes, braços para a frente na tentativa de logo me alcançarem, dedos apontados pela certeza inventada, eu não sairia vivo dali.

Nesse instante noto que um homem, vindo do lado oposto dos outros, joga a guimba de seu cigarro no chão, fumaça confundindo os olhares, gole de cachaça esguichado para todos verem: “Ninguém faz nada com o taxista, porra! Ele não teve culpa!”. Os gritos cessam, as pessoas dispersam e eu, sentindo o suor percorrer meu rosto ao mesmo tempo que os olhos piscam fundo de alívio, seguro o fio de contas em meu pescoço. As miçangas, que não poderiam ter outra cor, estão molhadas da chuva.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Senha 124

Foto: Agência O Globo

Abro o livro Aruanda da Eneida enquanto espero a consulta do meu pai num hospital público do Rio em um dia muito quente de verão. Na sala do ambulatório, bastante gente aguarda ser chamada pela senha. 124.

Passam por mim, do lado de fora, pessoas sérias, cansadas, falando sozinhas, conversando com outras, mexendo no celular ou na bolsa. Com a sacola no chão, apoiada na parede, uma senhora vende café. À minha frente, na outra rua, há uma casa decerto antiga, com a pintura bem gasta, uma varanda grande embora vazia e a imagem de uma santa ou um santo – não consigo identificar de longe – na fachada. O azulejo, bem próximo ao telhado, disposto na parte superior e de modo central, é uma das marcas dos subúrbios que se impõem; da infância que retorna; do passado, portanto, que não se prende a seu tempo.

Olho a página na qual tinha fechado e começo a ler a crônica que dá prosseguimento ao livro, "Companheiras". Nela, Eneida fala de quando esteve com mais vinte e quatro mulheres presas políticas numa sala da Casa de Detenção: "Quem já esqueceu o sombrio fascismo do estado Novo com seus crimes, perseguições, assassinatos, desaparecimentos, torturas?".

A pergunta sobre esquecimento fica vagando na minha cabeça, penso no que ainda está bem recente, olho de novo para a casa com o muro descascando, cansado do mesmo paradeiro, e imagino a revolta da cronista – e sobretudo da militante que ela foi – ao constatar que, pior que o esquecimento, é a capacidade de ignorar o que é lembrado, de não querer enxergar, de propósito, a memória.

124. A senha é pronunciada depois de eu ter lido alguns textos e guardado o livro. O número me leva à Eneida: ela, uma mulher, mais as outras vinte e quatro. As vinte e quatro mulheres e a que chegou depois, Elisa Soborovsk, responsável por marcar ainda mais aquele lugar, aquelas vidas ("O governo Getúlio Vargas entregou-a mais tarde à Gestapo. Hitler matou-a.").

Eneida e as "grandes mulheres; boas companheiras", assim como tantas outras, se impuseram, retornaram, não se prenderam a seu tempo. Lembrar-se delas é como emoldurar, na fachada de nossas casas, o que nos guarda e nos inspira.