segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Senha 124

Foto: Agência O Globo

Abro o livro Aruanda da Eneida enquanto espero a consulta do meu pai num hospital público do Rio em um dia muito quente de verão. Na sala do ambulatório, bastante gente aguarda ser chamada pela senha. 124.

Passam por mim, do lado de fora, pessoas sérias, cansadas, falando sozinhas, conversando com outras, mexendo no celular ou na bolsa. Com a sacola no chão, apoiada na parede, uma senhora vende café. À minha frente, na outra rua, há uma casa decerto antiga, com a pintura bem gasta, uma varanda grande embora vazia e a imagem de uma santa ou um santo – não consigo identificar de longe – na fachada. O azulejo, bem próximo ao telhado, disposto na parte superior e de modo central, é uma das marcas dos subúrbios que se impõem; da infância que retorna; do passado, portanto, que não se prende a seu tempo.

Olho a página na qual tinha fechado e começo a ler a crônica que dá prosseguimento ao livro, "Companheiras". Nela, Eneida fala de quando esteve com mais vinte e quatro mulheres presas políticas numa sala da Casa de Detenção: "Quem já esqueceu o sombrio fascismo do estado Novo com seus crimes, perseguições, assassinatos, desaparecimentos, torturas?".

A pergunta sobre esquecimento fica vagando na minha cabeça, penso no que ainda está bem recente, olho de novo para a casa com o muro descascando, cansado do mesmo paradeiro, e imagino a revolta da cronista – e sobretudo da militante que ela foi – ao constatar que, pior que o esquecimento, é a capacidade de ignorar o que é lembrado, de não querer enxergar, de propósito, a memória.

124. A senha é pronunciada depois de eu ter lido alguns textos e guardado o livro. O número me leva à Eneida: ela, uma mulher, mais as outras vinte e quatro. As vinte e quatro mulheres e a que chegou depois, Elisa Soborovsk, responsável por marcar ainda mais aquele lugar, aquelas vidas ("O governo Getúlio Vargas entregou-a mais tarde à Gestapo. Hitler matou-a.").

Eneida e as "grandes mulheres; boas companheiras", assim como tantas outras, se impuseram, retornaram, não se prenderam a seu tempo. Lembrar-se delas é como emoldurar, na fachada de nossas casas, o que nos guarda e nos inspira.

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