quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Elefantes no céu de Piedade

Foto: Thaís Velloso

Quando criança, andava pelas ruas de Piedade sem imaginar que seus nomes poderiam ser mencionados em uma obra de ficção. No colégio, eu e meus amigos estávamos lendo, para a prova do bimestre, um livro que falava da Delfim Moreira, da Ataulfo de Paiva, de jovens, bem mais velhos que nós, andando de bicicleta pelo Leblon. Aquele cenário era muito diferente da minha realidade, e o protagonismo do bairro da Zona Sul na narrativa significava para mim que a Avenida Suburbana não tinha importância alguma em comparação com a Delfim Moreira. Eu, uma criança do subúrbio, estudando em um colégio da Zona Norte com um livro que discorria apenas sobre o Leblon, constatava que “o mundo passava longe de Piedade”, como diz o narrador do romance de Fernando Molica.

Essa distância pressupunha a ideia de cidade partida: do lado de lá estavam aqueles que poderiam protagonizar livros; do lado de cá, a gente, que deveria aprender com eles para conseguir estar do outro lado um dia. Do mesmo modo, tal condição implicava outra inferioridade, cuja explicação está na fala que Francisco, o narrador, recupera da avó: “Política, dizia, era para os grandões, não para nós, que somos pobres, moramos no subúrbio, não temos conhecimento, não temos estudo, eles é que sabem, melhor ficarmos quietos para não aguentarmos as consequências, a corda arrebenta sempre do lado mais fraco”. E a lógica era – ainda é, em muitos casos – mesmo essa. Da convivência com meus avós e tios, por exemplo, que moravam também em Piedade praticamente (Quintino fica ao lado, afinal), não me lembro de qualquer comentário político, qualquer menção à época da ditadura no país.

A regra do “eles é que sabem” demonstra que o distanciamento em relação a temas políticos acaba influenciando certa simpatia pelo poder que busca a ordem, o progresso, muitas vezes confundidos com alguma melhoria na vida de uma família de classe média do subúrbio carioca: “Ditadura, como assim? Governo que mata as pessoas? Não, não é possível, você deve estar exagerando […]. Aqui em casa mesmo a mamãe fala que agora temos ordem, que os militares acabaram com a bagunça, que tudo melhorou. A loja do papai vive cheia de clientes […]. Ele conseguiu comprar esta casa, comprou o Opala…”. A visão do menino é questionada pelo primo universitário, com quem estava convivendo havia poucos dias: “Francisco, por favor, você acha que o Brasil ficou bom porque o tio comprou um Opala? Só uns poucos melhoraram de vida, primo”.

A proximidade com o primo “subversivo” faz com que Francisco comece a vislumbrar outra perspectiva sobre o regime. Somado a demais acontecimentos familiares, é esse contato afetivo, marcado pelo fato de considerar Cacá “um cara legal”, que passa a proporcionar a ele alguns questionamentos: “Talvez os comentários de Cacá sobre tortura e abusos não fossem tão mentirosos assim”; “Pela primeira vez, achava que poderia não haver um lado sempre certo nas brincadeiras de polícia e ladrão”. Tal proximidade, no entanto, não era comum em Piedade (“o caso de nossa família era excepcional, perigoso”). Ao falar de seu bairro, o narrador revela uma sintomática característica da nossa cidade, do nosso país: estar ou manter-se afastado dos acontecimentos mascarava para muitas pessoas a realidade e, consequentemente, contribuía para que elas apoiassem a ordem, repetissem chavões, engrossassem o coro, assim como acontece hoje em dia.

Por causa desse diálogo com a atualidade, mas não só por isso, “Elefantes no céu de Piedade” vale muito ser lido. É uma obra que ajuda a elucidar questões ainda confusas para nós, como o apoio de grande parcela social a governos autoritários, desumanos, cruéis com essa mesma população que lhes é favorável. Muitas vezes, a cabeça confusa de Francisco – reflexo do pensamento dos pais -, que confunde a troca do fusca pelo opala com o progresso social da nação, é a cabeça do cidadão que acompanha de longe, ou simplesmente não acompanha, os rumos políticos do país.

Ao final do romance, o narrador afirma que “memória é também construção”, mas em outro momento alerta: “É preciso ter cuidado com a construção da memória que diz respeito à história coletiva”. Enquanto é possível preencher lacunas da memória individual a partir do imaginário, uma vez que o tempo faz com que determinadas lembranças pessoais fiquem esparsas ou contraditórias, não podemos fazer o mesmo com a memória coletiva. Nesse sentido, cabe registrar o que Beatriz Sarlo comenta em seu livro Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva: “A memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura e o é na maioria dos países da América Latina […]. A ideia do ‘nunca mais’ se sustenta no fato de que sabemos a que nos referimos quando desejamos que isso não se repita […]. Os atos de memória foram uma peça central na transição democrática […]. Nenhuma condenação teria sido possível se esses atos de memória, manifestados nos relatos de testemunhas e vítimas, não tivessem existido”.

Diante disso, “Elefantes no céu de Piedade”, ao abordar a perspectiva de uma família de classe média do subúrbio carioca a respeito da ditadura brasileira, nos faz refletir sobre a construção dessa memória coletiva e, ao mesmo tempo, salienta como é importante conhecer a história, esta escrita com inicial maiúscula, para termos consciência do significado de “nunca mais”. Não à toa Francisco passa a questionar certos pensamentos somente após conviver com alguém que posteriormente sofreria nas mãos das autoridades; não à toa Eneida, sua mãe, esboça desconfiança dessas mesmas autoridades apenas quando testemunha a forma como o irmão foi preso (“era a primeira vez que eu via minha mãe manifestar algum tipo de questionamento em relação ao governo”).

A crença na ideia de que “falar de política só traz problema, isso é com o governo, não é com a gente”, que paira sobre Piedade – representação metonímica de muitos lugares do Brasil -, permite que elefantes sobrevoem o céu daquele bairro, de outras regiões, de um país inteiro e, ainda assim, sejam ignorados. O problema, como a narrativa atesta, é que uma hora acabamos sentindo o grande peso que passa a assolar nossas vidas.

Publicado originalmente no Além de Machado.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Domingo de Carnaval


Passaram a sexta e o sábado de Carnaval. Acorda tarde, pisa no glitter espalhado pelo chão da casa, separa a camisa da escola pra vestir à noite, coloca a playlist com os sambas-enredo das agremiações do dia, pensa no desfile que mais quer ver, prepara a bolsa térmica, separa o cartão do metrô e os ingressos e, quando se dá conta, já é hora de sair de casa novamente.

A caminho da Sapucaí, comenta com amigas e amigos as expectativas pro primeiro dia do Especial e as impressões sobre os desfiles do Acesso; sente o coração embriagado pela sensação de estar, ao mesmo tempo, em um dia que marca o início das apresentações e a metade de todas elas; canta o samba da própria escola, pedindo, como se fosse reza, que ela venha da melhor maneira; lembra os ensaios de rua e sorri, confiante no grito que chama a vitória.

Chegando ao Centro, pensa nos domingos de bloco, que contam com outra dinâmica: acordar bem cedo. Por ali, a rua se enche de pessoas que decidem não falar de tristeza e então desfilam com seus estandartes, revelam as fantasias compradas ou confeccionadas dias antes e espalham confetes, espumas, serpentinas. Nas proximidades do Sambódromo, componentes e torcedores com ingressos pendurados no pescoço carregam fantasias, instrumentos, cervejas, salgadinhos, espetinhos, cachorro-quente, refrigerante, água e capa de chuva. Com a certeza de que um lindo dia se anuncia, presenciam, enfim, o terceiro dia de Sambódromo, o primeiro de desfile do Grupo Especial.

No ano em que nasci, minha escola, a Vila Isabel, desfilou no domingo. Em 2006, foi campeã após ter passado pela Avenida no domingo. E foi também se apresentando no domingo que a Vila poderia ter conquistado mais um título, em 2012. O domingo de Carnaval, portanto, é um dia peculiar, ainda mais se considerarmos que, diferentemente da segunda-feira, tem mais chances de ser surpreendente. Isso porque, sabemos, pouquíssimas foram as vezes em que uma escola de domingo levantou a taça, fator que faz com que muitos comemorem quando sua escola é sorteada pra segunda.

Enquanto seleciono essas memórias dos domingos de carnaval, penso no Sambódromo vazio. Hoje seria dia de não notar o corpo cansado da sexta e do sábado na arquibancada e voltar mais uma vez pro melhor lugar da cidade: “Atenção, Sapucaí!”. É esse o instante da tensão desmedida, da alegria eufórica, da curiosidade, da concentração. O esquenta da bateria, a primeira escola pronta pra entrar, as alegorias encaminhadas, as bandeiras tremulando no setor 1…

Apesar de ter noção de que “nada se acaba quando é feito por paixão”, como afirma a letra de “Vitória da Ilusão”, é impossível não estar saudosista e comovida em um Carnaval que nem pôde começar, por todos os motivos que isso envolve. Este fevereiro esquisito, em que o domingo de Carnaval não tem o mesmo significado que comumente tem para nós, é tempo de nos atentarmos a mais um verso de Adir Blanc: “Das cinzas à ressurreição!”. Afinal, num dia que se assemelha a uma quarta de cinzas sem apuração, é preciso abrir alas para a esperança.

Com grandes enredos na cabeça e prontos para renascer das cinzas, plantaremos de novo o arvoredo quando enfim chegar o Carnaval. Enquanto a gente sofre com a espera, o controle remoto aponta pra televisão e seleciona os desfiles antigos que fazem a gente cantar e vibrar na sala de casa. Tão bonita, a nossa escola…

Publicado originalmente no site da Rádio Arquibancada.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Carta a um grande amor, o Carnaval

Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil

Se estivéssemos juntos agora, no quarto estariam espalhados meus shorts coloridos, o glitter azul sobre a escrivaninha e a fantasia dos blocos de pré-carnaval já lavadas depois de tanto suor, gotas de cerveja, água e lama do asfalto sujo, além dos confetes que grudam para só descolarem da roupa no banheiro de casa. Os ingressos da Sapucaí, já comprados há muitos dias, estariam guardados onde eu sempre deixo, na lateral do armário. Minha ansiedade, que sempre é grande, estaria triplicada; Martinho seria homenageado pela Vila em poucos dias, afinal. 

Todos os outros anos eu repetia: não sei o que faria da vida se não tivesse você em fevereiro ou março, se não acompanhasse você até fevereiro ou março. Como prova, fiquei perdida desde o último Carnaval, sem ter direção que me encaminhasse para as quadras, para os ensaios, para o Mercadão de Madureira, para o Centro da Cidade e para os lugares onde ouço samba-enredo e bebo devagar minha cerveja. Muita coisa mudou em mim recentemente, é verdade, mas nada que diga respeito a você. Porque faz parte da minha essência perceber e gostar da mesma sensação boa de criança ao ver a fantasia de um grupo de bate-bolas, os portões das casas com serpentinas penduradas, as espumas espalhadas pelo chão, a rua inteira na minha frente pra eu andar, andar e andar, sem pensar em nada - ou pensando em tudo. 

Sei lá como é não estar por perto este ano. Fantasias guardadas, copos vazios, a lateral do armário sem ingresso algum guardado. Passar o início do ano sem andar de chinelo na Vinte e Oito enquanto os carros não transitam mais e toda a rua se enche de instrumentos de bateria, carro de som, torcedores e componentes é um troço muito esquisito. Ficar janeiro todo sem engatar um ensaio de escola de samba no outro é uma novidade que machuca, ainda que seja evidentemente necessária. Por aqui andamos muito machucados, alguns mais e outros menos, mas todos, sim, enfrentando os próprios medos - ou fugindo deles. Ando com uma saudade enorme da alegria, aquela que só você me traz, e quando existe algo ou alguém que nos proporciona uma alegria única, é porque tem bastante amor nisso aí. Ê, Carnaval, que falta que tu faz...

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O amor que não vivi

A persistência da memória, Salvador Dalí

O amor que não vivi mostrava carinho,
Me fazia versos sem exigir resposta,
Me espreitava e oferecia seu ninho...
Mas eu, indisposta, fazia outro caminho.

O amor que não vivi olhava o relógio
Sempre à meia noite de um novo janeiro.
Enquanto eu insistia em não ver o óbvio,
O telefone tocava ao andar o ponteiro.

O amor que não vivi me deu um presente.
Sem um porquê me trouxe de repente
As músicas que poderiam me alertar:
Não precisa doer pra amar.

O amor que não vivi foi insistente,
Mas eu, menina, não ligava pro possível.
Imersa numa imaginação entorpecente,
Só me interessava decifrar o ilegível.

O amor que não vivi esteve a meu lado
Mesmo sabendo que eu era distraída.
Hoje, vendo tudo isso já terminado,
Penso no que poderia ter sido a vida.

O amor que não vivi não era fantasia:
Se ao nosso tempo eu buscasse retornar,
Veria que a vida realmente valia
O sorriso que ele tinha pra me dar.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A Vila e a rua

Foto: Diego Mendes/ Vila Isabel

Depois de pensar bastante nos motivos que fazem meu coração ser branco e azul, arrisco dizer que o que mais me comoveu na Vila Isabel não foi o momento de entrar na quadra pela primeira vez, mas o deslumbramento de estar com a escola na rua. Chegar à Vinte e Oito de Setembro em dia de ensaio, ou mesmo abrir a primeira cerveja do lado de fora da quadra em noite de disputa de samba, faz a gente se emocionar com o espaço, os componentes, os torcedores.

Os integrantes da bateria com seus instrumentos no meio da rua, o fluxo de carros substituído pelo de pessoas, os bares cheios horas antes de o carro de som ser ligado, as barracas de churrasquinho nas calçadas musicais, os acenos da vizinhança que vibra das janelas e das varandas, tudo isso fez parte do meu encanto pelo “povo do samba”. Naquele momento, eu percebi a relação peculiar da Vila com a rua, uma ligação que faz ainda mais sentido ao lembrarmos que, mesmo no ano de Kizomba, a escola ainda não tinha quadra e ensaiava a céu aberto.

O chão da Vila Isabel, que é forte, vem de muito tempo. E é ele que me remete ao trecho do samba de Moacyr Luz e Martinho: “Vila Isabel, meu Deus, como tu és de chorar de emoção…”. Foi em 2013 que chorei de emoção após acompanhar cada nota da apuração na quadra e ver ser declarada a vitória, com as bênçãos de Noel. Comemorar o campeonato de nossa escola por si só já é emocionante, mas fazer isso depois de ter presenciado o preparo, o empenho e a garra de uma comunidade nos projeta para uma dimensão incomparável, em que o mundo todo passa a caber nos versos “é o morro no asfalto duas vezes: uma pra ser campeão e a outra pra comemorar”.

Conheci a Vila de perto nos preparativos para o Carnaval de 2011. A partir daí, muitas vezes estive no aquecimento da bateria e fui atrás da Swingueira nos ensaios. A certeza da minha paixão por essa escola só crescia todas as vezes em que o Tinga, em frente ao antigo Petisco, puxava “Sou da Vila, não tem jeito” e nossas vozes se somavam à dele. Cantando isso no meio da multidão, qualquer vilaisabelense renasce das cinzas e enxerga com mais nitidez a beleza da vida no menino que, aos poucos anos de idade, caminha com um tamborim na mão, embalado pelo passo cambaleante da criança que aprendeu recentemente a andar mas já sabe amar uma escola.

Além de tudo, os três campeonatos da Vila traduzem muito do que faz parte de mim: a sede de que o Apartheid enfim se destrua; o amor pela América Latina; e o desejo de que as terras sejam partilhadas, como bem apontou Martinho no verso “progredir, partilhar, proteger”. Foi a Vila Isabel, feita de raízes que ecoam o grito forte dos Palmares e guiada pela lua de Luanda, que me ensinou que vale muito viver o Carnaval o ano inteiro pra tudo se acabar na quarta-feira.