quarta-feira, 27 de setembro de 2017

27 de setembro


Já peguei muito doce. Saía de mochila com a minha mãe, às vezes com primos e tias, e começava a manhã olhando atentamente para as casas. Rodávamos Piedade, Quintino, Cascadura, Abolição. Eu só voltava quando escurecia, sem aguentar mais andar, com um cansaço enorme que paradoxalmente não me impedia de chegar na ânsia de separar as balas, as pipocas, os doces embalados e os não embalados em bacias e potes.

Era certo comer churros com guaraná em Cascadura. Já subi ladeira correndo pra ser a primeira dos primos a pegar um saquinho com Kinder Ovo. E como corri. Eu, que nunca gostei de boneca, só me apeguei a uma que ganhei em dia de Cosme e Damião. Certa vez, estando a tarde toda na rua, fui pra casa apertada à beça pra ir ao banheiro, mas não deu tempo: me mijei na porta, antes de a chave virar. O importante era ter a mochila e mais alguns sacos lotados de doces.

Outro dia que não me sai da memória foi quando corri com meu primo até uma moça toda vestida de rosa, parada na porta de um centro, com saquinhos de doce na mão. Chegando lá, vi que ela, apesar de grande, falava como criança. Meus poucos anos de idade me fizeram franzir a testa e corresponder ao olhar perdido do meu primo. Pegamos o doce e saímos, provavelmente olhando pra trás. Contamos o ocorrido para os adultos que estavam com a gente, que riram do nosso espanto. Nem lembro se na ocasião me explicaram por que a moça falava como criança. 

Teve também a época em que minha vó entrou para a Igreja Universal e falava para mim que aquilo era coisa do diabo. Eu, porém, não deixava de comer e ria escondida da vó, que levava sua religião equivocadamente tão a sério a ponto de demonizar outras. O vô, que não seguia a religião dela, olhava para mim rindo também, e até chegava com um ou outro doce, para reprovação da vó e alegria da neta.

Acho que peguei doce até uns doze anos, e não há ano mais triste do que aquele em que a gente precisa parar, feito jogador que não pode mais correr em campo. Mas agora é a vez de experimentar o outro lado, o de dar doces e ficar desesperada, e feliz, com a fila gigante que se forma. Andar por ruas vazias em dia de São Cosme e São Damião, como aconteceu hoje pela manhã, me dá tristeza, receio da escassez de uma tradição.

Mas felizmente o subúrbio continua. Entre carros buzinando, crianças de chinelo, mães gritando, carrinhos de bebê cheios de doces, cadeiras na calçada e agradecimentos, a gente segue o curso de uma cidade que se cria e se redescobre em samba de dois-dois, com a molecada correndo e armando a lona no peito de quem é apaixonado por São Sebastião do Rio de Janeiro.


terça-feira, 12 de setembro de 2017

Banco de trás


Desde que sentamos juntos no banco de trás, naquele domingo, passou a faltar matéria para a poesia porque ela, a minha, mesmo ruim, ficou monotemática, assim como os dias que vieram então outros, iguais, arrastados pela urgência de entrar de novo naquela rua e descer do carro pisando na calçada com o calafrio dos amores estridentes, iniciais, tresloucados, do avesso, o reverso do que sou. O perigo existe quando encontramos alguém que seja incompreensivelmente capaz de descortinar nosso inverso, aquilo exatamente que somos sem que os outros saibam. É quando o perigo flerta com o sublime, incandescente. Você me deu um beijo, ficou pelo caminho devido aos afazeres do dia e eu pedi que o motorista seguisse, ainda que a vontade fosse a de continuar sentindo sua mão apoiada na minha perna. Pode seguir, por favor. E a vida foi em frente, sem retorno, mostrando as saudades correndo vagarosas pela janela do banco de trás, feito paisagem bonita que vai embora enquanto a viagem progride, sem passagem de volta.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Pelos caminhos do mar


Havia um barquinho lá longe, onde a onda quebrava. A lua que embranquecia a escuridão da noite apontava para os cabelos pretos caídos nos ombros dela. As mãos abertas, como se dissesse que tudo aquilo era seu. Na minha cidade todo mundo é de Oxum, mas foi essa a história que o pescador me contou e me encantou.

Fiquei embaixo da cachoeira pensando como devia ser bonito ver o mar agitado mas sem força pra derrubar o barco. Qualquer outro seria derrubado, mas aquele não podia. Teve gente que não viu, que olhou na direção indicada pelo pescador mas nada conseguiu enxergar. Devia ser saudação a ele ou recado de que a calmaria não demoraria a chegar.

Há poucos dias, enquanto caminhava pelo Largo do Machado depois de escutar samba e ijexá, parei numa roda pra ouvir o batuque dos tambores de Olokun na rua. Saias rodadas, guias brancas e azuis, sorrisos de festa, coro entoado e maracatu. Era o Brasil no qual eu acreditava e do jeito que sempre vi. Na beira da praia, ouvindo as pancadas do mar. E ela apareceu. O mar cintilado, a água prateada, alumiada a gente. Foi o que cantaram os tambores.

De vez em quando eu admiro o mar e penso na imensidão da vida; lembro a história do pescador e ouço baixinho o batuque de Olokun. O vagar das ondas e o divagar da vista se perdem entre as águas. Embora muitos não vejam, há barcos que não viram com pancadas fortes, que seguem adiante. Eu fico na beira da praia, com os pés molhados na areia, ouvindo as histórias de pescadores e a música de Caymmi. É bonito aprender que o vento sopra o destino pelos caminhos do mar. 

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Nos Fla-Flus


Eu ainda tô respirando Fla-Flu. Acabei de assistir novamente ao excelente documentário “Fla x Flu - 40 minutos antes do nada” e me arrependi de ter perdido tantos Fla-Flus. Me arrependi de não ter ido aos jogos da época em que nem era nascida, e também de quando era criança (meus pais não me levavam ao Maracanã, eu que levei os dois). Só não vou nos próximos se estiver morrendo. Como vocês ainda vão ter que me aturar por muito tempo neste mundo, porque se tem uma coisa que eu gosto é de viver, estarei em todos.

Revendo o documentário, tive até vontade de abraçar Assis, o Carrasco. Assim como tive vontade de abraçar o Zico, o Leandro, o Júnior. A comemoração de gol do Maestro na final do Brasileiro de 1992 tá eternizada num boneco que fica na minha estante. Todo dia eu olho.

Quando falaram em tom de brincadeira com o Bial sobre o gol de 1995 do Renato, que se ele estivesse de cinta não o faria, Bial replicou: “E você já viu alguém jogar de cinta?”. No Flamengo já jogaram, há muito tempo, lá em 1927. Contam que Moderato tinha feito uma cirugia e meteu uma cinta abdominal pra entrar em campo e ser campeão em cima do América. Não era Fla-Flu, mas era muito amor ao time.

E o que importa no futebol, assim como na vida, são as nossas paixões. É o que nos impulsiona, o que nos move e o que faz a gente ser exatamente o que é. Fla-Flu é coisa séria. Não tem nada melhor. E que bom que nessa história o meu lado é rubro-negro. A emoção é enorme, tal como o bom humor, sobretudo porque somos campeões.

Um beijo aos vitoriosos amigos rubro-negros. E aos tricolores, conformados ou inconformados com a derrota de ontem, também. Sem vocês a gente não vive (até vive, mas não com tanta emoção).

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Canto a palo seco


“Hoje é um dos dias mais felizes da minha vida”, disse a um amigo enquanto a roda de samba comandada pelo Chico Alves animava o Trapiche. E me senti incomodada quando me dei conta do que eu acabava de dizer naquele domingo. Belchior havia partido e o dia era de tristeza. Nos bares, bebiam Belchior; na Casa Porto, onde muito me arrependo de não ter ido, viviam Belchior; no Trapiche, sorrimos Belchior. Tudo é maravilhoso, nada é maravilhoso.

Eu ainda estava com o olho meio aberto, meio fechado, próprio da preguiça das manhãs de domingo, quando soube de sua morte. Confesso que nunca fui de ouvir muito suas músicas, mas passei o dia todo escutando. Lamentei não ter ouvido antes tantas e tantas vezes o coração selvagem que é exatamente como o meu, que tem essa pressa de viver. Nunca quero o que a cabeça pensa, mas sempre o que a alma deseja.

Com o Trapiche lotado, Chico Alves lançou um canto a palo seco que uniu vozes e sorrisos fundidos no pranto da criança que fomos e que ali recuperamos. Dançamos, cantamos e fomos felizes, como raramente temos conseguido ser neste tempo de silenciamento ao nosso grito desesperado em português e de repressão ao exercício democrático.

Percebi, então, que o que tornava aquele dia assustadora e despretensiosamente bom era a reunião de pessoas que acreditam, em meio à desesperança, na voz belchiorana que nos diz, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer. Descobrimos que Belchior vivia em cada um de nós, sabendo que o amor é uma coisa boa, e não estava proibido, portanto, ser esse um dos dias mais felizes da minha vida, porque, aliás, tudo é permitido, até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê.

Eu queria um gole de cerveja no seu copo, no seu colo e nesse bar, mas fui buscar esse gole no Sats, única saideira possível. Entre um e outro papo, entre um e outro chope, entre um e outro beijo, entre uma e outra saudade, amanheci implorando à vida que pisasse devagar: “Meu coração, cuidado, é frágil”. Porque sou de deixar de lado as certezas e arriscar tudo de novo com paixão.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Ouvindo Elis


Hoje me permiti ouvir Elis Regina, a aniversariante do dia, por um tempo, sabendo que seria difícil fazer isso. E explico por quê: há momentos na vida em que certas músicas acabam com a gente, da mesma forma que nos fazem renascer em outros instantes. Na parede da memória, há quadros que doem muito. Mas não sou ninguém diante de Elis. Que se dane toda dor. E a ouvi, já de início, me dando uma porrada com a letra de Belchior: "É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". 

Na sequência, Romaria. Silêncio. A vida por vezes passa profunda no que se cala. Hoje o dia é de um sorriso composto da grandeza do que é miudinho, acolhedor e verdadeiro. A tarde cai enquanto lembro Carlitos, o maior, personificação do amor que aprendi a enxergar ao usar a menor máscara do mundo, o nariz de palhaço. Sou de um Brasil que sonha com a volta de tanta gente que partiu e choro junto de Marias e Clarices. 

Hoje me permiti ouvir Elis Regina por um tempo. Até que começou Canto de Ossanha, aquele que diz que "o amor só é bom se doer". Pergunte pro seu orixá. Vai, vai, vai. Não vou. Só vou se for pra ver uma estrela aparecer na manhã de um novo amor. Bolero de Satã. Com Cauby. Nada supera o grave dessa música. Ninguém superaria os dois juntos. E em "Andança", amigos, é Elis cantando o sucesso na voz de Beth Carvalho. É Brasil que não acaba. Uma saudade imensa. Me leva, amor. Mais uma vez a vida em verso encantado, coragem de deixar coisas pra trás e seguir em frente. Ou levá-las com a gente, porque saudade não é de amenizar rápido. Vivendo e aprendendo a jogar.

Hoje o dia é de um sorriso composto da grandeza do que é miudinho, acolhedor e verdadeiro, tal como ensinou a aniversariante deste dezessete de março. Que se dane toda dor. Que a gente pegue o trem azul, com o sol na cabeça. O sol pega o trem azul, você na cabeça. O vento que entra pela janela enquanto escuto Elis avisa que a tarde continua caindo, é quase noite. Redescobrir. Quando uma música une Gonzaguinha e Elis, podem ter certeza de que sou eu ali, menina, mulher, pequena, grande, frágil e forte, como se fora brincadeira de roda. Vou como a criança que não teme o tempo. "Tudo principia na própria pessoa". Quase choro, mas rio. 

Maria, Maria. Pra me lembrar que faço parte da turma que traz no peito essa marca e possui a estranha mania de ter fé na vida. É o que acontece quando se ouve Elis: parece que vai doer. E dói. Mas renova e a gente se reinventa. Porque é preciso ter manha, graça e sonho, sempre. Só tinha de ser com você. Obrigada, Elis.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Cantando o Juremê na Sapucaí

No último domingo de ensaios técnicos na Sapucaí, a Império da Tijuca mostrou animação. O bom samba da escola se destacou e garantiu a empolgação, apesar de não ter sido cantado por todos os componentes. Ficaram um pouco comprometidos os quesitos “evolução” e “harmonia” (especialmente este), reconhecimento essencial para que a Verde-e-Branco drible as falhas, as corrija e faça um belo desfile no Carnaval.

No que diz respeito ao canto, a Beija-Flor não deixou a desejar. Pelo contrário. A escola de Nilópolis passou pela Avenida de modo explosivo, com um entrosamento bonito de se ver nas alas, em que cabe destacar o momento em que os componentes batem o pé no chão no incrível trecho “Araquém bateu no chão”. Neguinho da Beija-Flor, antes de cantar o melhor samba-enredo do ano, levantou as arquibancadas com “Domingo eu vou ao Maracanã”, “Mulher, Mulher, Mulher”, o samba de 2015 – referente ao enredo da Guiné Equatorial, último campeonato da Azul-e-Branco da Baixada – e, é claro, o samba de exaltação.

A bateria, que sustentou a escola até o fim, impressionou ao se apresentar de modo impecável. O casal Selminha Sorriso e Claudinho, como é comum, esbanjou simpatia e brilho. O ruim da noite foi o que aconteceu com o diretor Laíla, que passou mal (sofreu um princípio de infarto) e segue internado no hospital sem previsão de alta.

A última escola a se apresentar foi a Grande Rio, com a presença da homenageada Ivete Sangalo, que arrastou os fãs e lotou o Sambódromo. A bateria acelerou demais para acompanhar um ensaio que foi muito animado e se transformou em micareta, muito por conta da proposta do enredo.

Ivete, cantando o samba-enredo em cima de um trio elétrico, roubou o posto de principal intérprete. Os fãs da cantora foram ao delírio e fizeram festa. A Grande Rio realizou um ensaio polêmico, que agradou a muitos mas desagradou, principalmente, alguns dos que vivem e acompanham as escolas de samba o ano inteiro. No mais, ficou a impressão de que é a popularidade do enredo que poderá garantir o sucesso do desfile.

Ontem, as escolas que ensaiaram foram União do Parque Curicica, Alegria da Zona Sul e Cubango, todas da série A; hoje entram na Avenida Porto da Pedra, também da série A, Vila Isabel e Salgueiro, ambas do Grupo Especial.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Brilha o Cruzeiro do Sul


Ontem foi dia de estar presente no Sambódromo para acompanhar os ensaios técnicos. Cheguei à Praça Onze ansiosa para assistir às três escolas que passariam pela Avenida, mas confesso que não via a hora de cantar o maravilhoso samba da parceria de Altay Veloso. É pela verde e branca de Padre Miguel, portanto, que começo este registro.

O ensaio da Mocidade me impressionou sobretudo pela bateria, que fez uma apresentação arrebatadora. Assim que o samba começou, o público cantou junto, reforçando aquilo que alguns insistem em deixar de lado: o samba de enredo tem uma relevância tamanha. Os componentes das alas cantavam a plenos pulmões, acompanhados especialmente do setor 3, onde se concentrou a torcida. Mesmo com chuva, o céu de Sherazade revelou que a Mocidade tem razão pra sonhar. Sem muito sucesso em carnavais recentes, a escola aparentou ser forte candidata para estar entre as campeãs.

Antes dela, São Clemente mostrou que tem um samba capaz de animar a Sapucaí. Eu, que já o achava uma beleza mas duvidava de seu funcionamento, arrisco dizer que a escola pode surpreender no quesito. Apesar de ainda não ser tão conhecido pelo público, e até mesmo por componentes, o samba conta com um refrão que animou muita gente e demonstrou um bom desempenho. Entretanto, a São Clemente não se saiu muito bem em evolução. O destaque foi Rosa Magalhães no tripé da comissão de frente. A carnavalesca que tanto admiro, ainda mais por conta do desfile inesquecível que deu o título pra minha Vila em 2013, recebeu muitos aplausos.

Quem abriu a noite foi a Estácio, que caiu para o Acesso no ano passado e agora tenta retornar ao Especial. O enredo sobre Gonzaguinha empolgou os torcedores entrosados com o samba que lembra composições do homenageado. O ensaio foi animado, com participação de um público que soltou a voz e demonstrou carinho pela escola que se entregava.

No próximo fim de semana os ensaios técnicos continuam com Sossego, Rocinha e Santa Cruz no sábado, dia 28, e Império da Tijuca, Beija-Flor e Grande Rio no domingo, dia 29. A hora de cantar o Juremê na Sapucaí se aproxima.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Batizada no altar do samba


Quem gosta de Carnaval, e sobretudo de Escola de Samba, sabe que não é só em fevereiro que a gente vivencia a festa. As disputas de sambas de enredo nas quadras são prova disso. É a partir desse momento que o samba de cada escola passa por alterações que podem torná-lo melhor ou não, num processo que só termina mesmo no dia do desfile, quando avaliamos se o samba funcionou na Avenida. E a safra deste ano está especialmente boa.

A Mangueira ilustra bem esse processo que altera nosso olhar pra uma mesma obra: o samba deste ano era uma coisa antes da gravação oficial do CD e outra, totalmente diferente, na voz do Ciganerey, que é um intérprete incrível. Quando aconteceu a primeira votação das notas pros sambas na Rádio Arquibancada, lancei 9,8 pra Mangueira. Hoje, no entanto, para mim a Verde-e-Rosa merece 10, ainda que o samba não seja superior ao da menina dos olhos de Oyá, referente ao último título da escola.

A Vila, azul que dá o tom à minha vida, escolheu um samba arrebatador, que promete crescer muito na Avenida, com destaque para o Igor Sorriso, que tem uma voz ímpar capaz de melhorar ainda mais o que já era bom. Mesmo o trocadilho em “ouvi-la pra sempre no meu coração”, que poderia soar forçado, encaixou perfeitamente com o conjunto da obra. A homenagem a Kizomba de 1988 e à Angola de 2012 não cai na mesmice e engrandece o samba logo no início. Se depender do samba, o povo de Noel tem tudo pra fazer um desfile emocionante. A nota, é claro, só pode ser 10.

O samba da Grande Rio é razoavelmente bom. Animado, mas, em se tratando da letra, fraco na mesma proporção. Pode dar certo no Sambódromo em razão da animação, muito por conta da homenageada e do trecho “levanta a poeira, Ivete”, mas não arrisco dizer que certamente levantará a poeira nos setores. Fica, portanto, com 9,7.

Não me entusiasmei com o samba da Portela. Apresenta exaltações um pouco clichês e uma letra fraca e confusa em relação à sinopse, talvez comprometida por uma interpretação não tão bem feita. Para mim, a Águia recebe 9,8 no quesito.

O samba da Ilha, além de ser de grande relevância, faz a gente pensar numa Sapucaí inteira cantando “Ê, é no girê!”, um indício de que a escola tem condições de surpreender. O enredo inédito, voltado para o candomblé angolano, rendeu um belo samba pra Ilha. Não é um dos grandes da escola nem um dos três melhores do ano, mas é bom à beça. Nota 9,9.

O samba da São Clemente é bom. A parceria dos portelenses foi uma escolha acertada para a escola de Botafogo. Apesar de ter um enredo de difícil abordagem carnavalesca, a São Clemente conta com a incomparável Rosa Magalhães para desenvolvê-lo e, além disso, tem um samba apropriado para realizar um bom desfile, apesar de não haver trechos tão contagiantes a ponto de garantir a empolgação do público. Nesse caso, 9,9.

A Imperatriz tem um samba chato, meio cansativo, mas igualmente bonito. Não empolga, mas a escola vem com um enredo importantíssimo, que está sendo equivocadamente e propositalmente atacado pelos defensores do agronegócio, e uma letra que mostra a beleza e a relevância dos povos do Xingu. Por isso minha nota é 9,8.

A Tijuca, no quesito samba de enredo, só não perde pra Tuiuti. O “chega, my brother” não empolga e a batucada do pavão não enlouquece. Logo, a nota é 9,6.

A Tuiuti, que tem um enredo maravilhoso, não possui um samba à altura. É o pior da safra, sem se destacar em nada, com uma monotonia melódica e uma letra que não se distancia do comum. Naturalmente recebe a nota mais baixa: 9,5.

Salgueiro vai desfilar com um samba fraco e arrastado, que nem se compara ao do ano anterior, bastante superior ao atual. Pode até funcionar bem, mas aí só vai entender quem é Salgueiro. Minha nota é 9,8.

A Mocidade, para muitos, tem o melhor samba do ano. E eu só não confirmo porque sou da turma que viciou no Juremê da Beija-Flor. Mas é inegável que o samba da Mocidade é gigante, com uma levada única e trechos contagiantes, como há tempos a escola não trazia. As passagens “fui ao deserto roncar meu tambor/ pra Alah conhecer meu Xangô” e “põe Aladin no agogô, tantã na mão de Simbad/ meu ouvido é de mercador” traduzem bem demais a interação entre o Saara de lá com o Saara de cá, evidenciando a mistura de culturas. Impossível dar menos do que 10.

A Beija-Flor, que não é de brincadeira, resolveu mostrar a que veio já na escolha do samba. O refrão não sai da cabeça desde a primeira vez que a gente escuta, a letra é fácil e o “Pega no amerê, aretê, anamá” já garantiu o samba como antológico, totalmente distante de qualquer clichê. A única coisa que me incomodou, confesso, foi a supressão do “no ventre”, na gravação oficial, para facilitar o canto. Sou das que lamentam a ausência da expressão toda vez que ouve o Neguinho cantar “bate o coração de Moacir” sem o “no ventre” antes. É um detalhe que faz falta pra quem acompanhou a mudança, mas que em nada altera a qualidade do samba, que evidentemente merece nota 10.

Sendo assim, temos no geral uma safra bastante satisfatória, com poucos sambas de fato ruins, o que por si só já é gratificante para quem dá ao samba de enredo o valor que às vezes ele parece ter perdido. É assim, batizada no altar do samba, que inicio essa coluna para falar de Carnaval com certa regularidade, questionando a espetacularização da festa, narrando experiências em crônicas e registrando a imortal vitória da ilusão sob o olhar apaixonado de quem faz de tudo isso a sua cachaça.