quarta-feira, 3 de maio de 2017

Canto a palo seco


“Hoje é um dos dias mais felizes da minha vida”, disse a um amigo enquanto a roda de samba comandada pelo Chico Alves animava o Trapiche. E me senti incomodada quando me dei conta do que eu acabava de dizer naquele domingo. Belchior havia partido e o dia era de tristeza. Nos bares, bebiam Belchior; na Casa Porto, onde muito me arrependo de não ter ido, viviam Belchior; no Trapiche, sorrimos Belchior. Tudo é maravilhoso, nada é maravilhoso.

Eu ainda estava com o olho meio aberto, meio fechado, próprio da preguiça das manhãs de domingo, quando soube de sua morte. Confesso que nunca fui de ouvir muito suas músicas, mas passei o dia todo escutando. Lamentei não ter ouvido antes tantas e tantas vezes o coração selvagem que é exatamente como o meu, que tem essa pressa de viver. Nunca quero o que a cabeça pensa, mas sempre o que a alma deseja.

Com o Trapiche lotado, Chico Alves lançou um canto a palo seco que uniu vozes e sorrisos fundidos no pranto da criança que fomos e que ali recuperamos. Dançamos, cantamos e fomos felizes, como raramente temos conseguido ser neste tempo de silenciamento ao nosso grito desesperado em português e de repressão ao exercício democrático.

Percebi, então, que o que tornava aquele dia assustadora e despretensiosamente bom era a reunião de pessoas que acreditam, em meio à desesperança, na voz belchiorana que nos diz, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer. Descobrimos que Belchior vivia em cada um de nós, sabendo que o amor é uma coisa boa, e não estava proibido, portanto, ser esse um dos dias mais felizes da minha vida, porque, aliás, tudo é permitido, até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê.

Eu queria um gole de cerveja no seu copo, no seu colo e nesse bar, mas fui buscar esse gole no Sats, única saideira possível. Entre um e outro papo, entre um e outro chope, entre um e outro beijo, entre uma e outra saudade, amanheci implorando à vida que pisasse devagar: “Meu coração, cuidado, é frágil”. Porque sou de deixar de lado as certezas e arriscar tudo de novo com paixão.

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