sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Carta para a Jade

Jade,

em poucos dias você vai nascer. Em janeiro você chega, como eu também cheguei num janeiro de 93. Você será capricorniana como eu. Dizem que somos muito racionais -- e têm razão. Eu só aprendi que a razão não é fundamental com Machado de Assis e, na verdade, só consegui pôr isso em prática neste 2015 que está indo embora. Foi um grande aprendizado, deixou minha vida mais bonita e mais leve. Me fez feliz.

Eu te escrevo agora porque estou numa madrugada de dezembro pensando que a gente ainda não se conhece e eu já te amo. Tem pessoas que se amam sem se conhecerem, a vida tem dessas coisas. Um dia elas se (re)conhecem e descobrem as formas de amor que existem no mundo, e uma delas é a amizade. Eu desejo profundamente que você tenha amigos de confiança, que ria muito com eles, que saiba guardar seus segredos e que descubra ao lado deles o quanto a vida pode ser boa.

Você vai nascer sem saber nada sobre o nosso mundo, Jade. Seus pais vão te ensinar muito e também vão aprender bastante contigo, porque (há quem não saiba, mas eu vou contar um segredo a você) é o pequeno que guarda o extraordinário. Eu sou aquela prima (ou seria tia?) que vai conversar com você sobre miudezas e sobre assuntos pelos quais muita gente não se interessa. Eu vou te ouvir quando você quiser me contar qualquer sopro de vida, vou te aconselhar quando e se você solicitar, vou fazer você rir muito a qualquer momento -- as pessoas da nossa família riem muito comigo, você vai ver. Eu ainda não te conheço, mas já te amo. E eu gosto muito de fazer quem eu amo sorrir.

Sua bisavó, minha avó e avó da sua mãe, ria muito comigo. A gente passava tardes e tardes brincando e falando do meu futuro. Quando eu era bem pequena, um pouco maior do que você, eu cismava que seria rica. Hoje eu sei que nem preciso de tanto dinheiro, é que ele vai e volta e eu sou feita das coisas que permanecem. Um dia, quando você conversar com você mesma, vai aprender que a alegria vem com facilidade, que a verdade do seu olhar é o que proporciona a vida da sua vida.

Meu avô e o avô da sua mãe, seu bisavô, me deu um barco que, apesar de ficar guardado lá em cima do meu armário, me transporta pra um tempo que a gente chama de passado (há muita alegria no passado, quando a gente sorri lembrando é porque tá com saudade, você ainda vai sentir muito isso). Ele, seu bisavô, era uma dessas pessoas que enxergam com o coração, como meu pai, que puxou a ele. Ele tinha uma risada leve, andava a passos lentos, gostava muito de dar presente e de mocotó. O mocotó do meu avô era muito bom. Quando eu ia pra casa dele e da minha avó, seus bisavós, a gente também comia macarrão colorido no almoço e pão com mortadela no lanche. Eu adorava, Jade. Quando você estiver maiorzinha, a gente vai comer mocotó, macarrão colorido e pão com mortadela.

Eu vou torcer pra que no seu mundo, quando você estiver grande e for dona de si -- porque saiba, Jade, as mulheres são muito fortes e independentes, ainda que tentem te mostrar o contrário --, o diálogo seja mais importante que os imperativos tão presentes na atualidade. Tomara, Jade, que você possa fazer parte de um mundo que não queira jogar fora a democracia e que lute para melhorá-la a todo momento. A gente ainda vai conversar sobre isso e você, Deus queira, vai ver a beleza da esperança equilibrista. Um dia, Jade, você entenderá que somos iguais, que temos direitos, que direitos humanos são importantíssimos e que temos o dever de defendê-los.

Sei que você ainda é muito pequena pra receber uma carta grande assim, mas é que sua prima (ou seria tia?) gosta de escrever e, quando escreve pra quem ama, acaba usando muitas palavras. Às vezes sai alguma poesia até. Tomara que você goste de poesia, Jade, que você goste de ler e que entenda a revolução que as letras são capazes de promover dentro da gente.

Agora são mais de duas horas da manhã e, por mais que eu tenha insônia todos os dias, vou ficar por aqui pra tentar dormir. Quando você chegar, a gente vai se dar muito bem porque eu já te amo. Eu vou me emocionar quando te conhecer, tão pequenininha nesse mundão. Que você e eu tenhamos muita saúde, Jade, e muita vida pela frente. A gente ainda tem muito o que conversar. 

Um beijo,
Thaís.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Nos botequins do Rio de Janeiro

Encontrei o Botequim de bêbado tem dono (2008) em um estande na Bienal deste ano e, assim que vi o livro escrito por Moacyr Luz e com incríveis ilustrações de Chico Caruso, não tive dúvida de que ele iria para a minha estante. As crônicas que tratam dos vinte e cinco bares apresentados combinam humor e memória afetiva para contar histórias boêmias e impregnadas de amor à cidade. Adquirir esse livro em um evento que não teve sequer uma mesa para discutir a crônica carioca ao menos serve de alento a quem é declaradamente fascinado pelo gênero.

O leitor, que a todo momento tem a agradável sensação de fazer parte de um bom papo de mesa de bar, tem a oportunidade não só de ligar-se intimamente a um traço cultural da cidade – o botequim –, mas também de receber preciosas dicas relacionadas a ele. O melhor chope, obviamente com colarinho, está no Adonis; no Momo é servido um bife a cavalo sem igual; no Costa foi descoberto um Steinhager batizado, à época, de “a mais recente relíquia de Vila Isabel”; são especiais os bolinhos de bacalhau do Paulistinha, e é lá que tem caldo de galo e roda de samba em homenagem a São Jorge.

Além disso, os pastéis de angu do Beco do Rato, as torradas ao alho do Getúlio, os filés à francesa do Lamas, os salgadinhos do Bracarense e a batida de maracujá e os torresmos do Real Chopp também merecem destaque. E por falar em destaque, o cronista chama a atenção para a excelente música do Bip-Bip e afirma que, “se o samba invadiu de novo a cidade, a retomada nasceu nas mesinhas do estabelecimento”.

Nas andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, que tem sua memória resgatada no Paladino, passamos pela Rua da Conceição, pelos becos da Lapa, pela Miguel Lemos, pela São Luiz Gonzaga e por muitas outras que guiam os passos ébrios ou ainda sóbrios aos botecos. Pra citar João Nogueira, essa “vida boêmia de bar em bar” encontrada em cada página mostra o botequim como ambiente democrático, avesso às chatas regras de boas maneiras e profundamente imerso na vida suburbana que pulsa em nossa cidade.

Voltando às particularidades de cada boteco, cabem as lembranças de que o Capela – feito para profissionais – registrou a presença de Zé Keti, Nelson Cavaquinho e Geraldo Pereira e de que no Sobrenatural Elton Medeiros cantou “Peito Vazio”. Se os bares têm tantas boas histórias, Moacyr Luz é quem tem a pena da galhofa para registrá-las. E tudo isso com as ilustrações que Chico Caruso proporciona ao final de cada crônica, captando o instante que aproxima ainda mais o leitor dos relatos reunidos no livro.

Vale dizer por fim que, neste tempo em que o jornal(ismo) agoniza e perde seus suplementos literários, a publicação semanal das crônicas de Moacyr Luz em O Dia acalenta os leitores ávidos pelos bons textos que o caráter dogmático da imprensa tem combatido.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Desenhos da infância

Lendo o texto do Verissimo que foi publicado ontem, me vieram à cabeça memórias da infância. Claro que a imagem de um cão correndo atrás do carro sem que nós saibamos com qual finalidade me traz também um saudosismo suburbano. O trecho inicial "houve um tempo em que" incita o lamento de que estamos em outra época, sem cachorros correndo atrás de carros enquanto conversamos livremente no portão de casa.

O que minha memória resgatou e sobre o que quero discorrer, no entanto, diz respeito a desenhos infantis: o Frajola correndo atrás do Piu-piu; o Coiote tramando armadilhas para colocar as mãos no Papaléguas; o Dick Vigarista querendo pegar o Pombo; o Tom desesperado para capturar o Jerry. Todos têm algo em comum: suas estratégias sempre são em vão e eles permanecem a esmo com suas tentativas frustradas.

Como bem questionou Verissimo, que faria o cão ao alcançar o carro? Comê-lo? Ninguém sabe, nem o próprio cão. E é assim que é analisado quem bate panela contra tudo. O que fazer quando o Pombo, o Papaléguas, o Piu-piu e o Jerry forem capturados? Terminar o desenho e pensar no desenvolvimento de outro capítulo? O problema é que tal capítulo deve ser previamente concebido, calculado, organizado.

Não adianta pedir organização política por meio de atos tão desorganizados, tampouco exigir respeito quando se deseja desrespeitar outra vida. Querer a volta da Ditadura sabendo o que ela significa – porque, sinceramente e lamentavelmente, a maioria dos que andam solicitando a repressão sabe bem de que se trata o regime – é um modo de calar os que conseguiram ter voz.

Latir atrás do carro sem um porquê democrático não muda conjuntura alguma, só reforça o ditado "cão que ladra não morde". E, diferentemente dos desenhos da minha infância, a vontade de anular o outro não tem a mínima graça.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Aperta o start

Já cedo eu passava pelos Arcos naquele sábado de julho. Apreensão notória do desconhecimento, chão molhado de chuva, pés na Fundição Progresso. Só havia estado ali à noite, em qualquer show dedicado ao samba, à tristeza que balança. De lupa na Lapa, já vaguei pela Mem de Sá ao som de Moyseis Marques.

Mas naquela manhã de sábado eu divagaria. E a gente tem medo de. Alguns turistas nos Arcos, a vista do bonde, a porta aberta e o coração fechado. Timidez de falar com quem não conhece, talvez confundida com antipatia, pouco papo, leves sorrisos e ainda a apreensão. Paspalhos diante do Messiê, picadeiro à frente, cortina vermelha escondendo o espelho. Aperta o start.

Voltei pra casa com pranto no peito por ter visto Carlitos, a solidão e o amor. Em casa, abraço quem não vivo sem, falo de amizade como manifestação do amor e escrevo a quem tem meu carinho, outra forma de amor. Perdão pela repetição da palavra que Drummond mandou não ser pronunciada, leitor. Tem muito "amor" nesse parágrafo porque era só isso que eu sentia. E sinto.

Domingo, mais um dia de ver os Arcos. Chorei com meu nariz de palhaço, a menor máscara do mundo, e com a minha imagem refletida na criança que voltei a ser. Ela apareceu no espelho e me deu a certeza de que sou pequena. Como diria o principezinho de Saint-Exupéry, as pessoas grandes precisam sempre de explicações, porque nada entendem, afinal. Não se compreendem, inclusive, neste mundo de adultos que não podem ser frágeis.

Acontece que a fragilidade, quando revelada, faz de nós especiais para quem a vê. É por isso que sorrimos de imediato ao nos depararmos com o olhar puro de um bebê na nossa direção. E o que eu quero, depois de me mostrar pequena para todos, é me deparar sempre com um olhar puro na minha direção. Assim sou capaz de saber que, no meu mundo, os adultos também podem ser frágeis e, portanto, fortes porque profundamente humanos.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Das coisas que ninguém sente falta

Quando minha avó morreu, eu me dei conta de que me apego às coisas das quais ninguém sente falta. Quando eu soube que não tinha mais jeito, que ela ia embora mesmo, que eu não receberia mais sua ligação na virada do ano me desejando parabéns, abri a bolsa dela que estava na minha casa, peguei dentro outra bolsinha e retirei os poucos papéis que estavam ali, esses que a gente sempre leva junto da gente sem importar pra onde é que nós vamos.

Não ficaram comigo a bolsa e a sapatilha preta que ela usava. Só guardei as coisas que ninguém sente falta. Era uma página de um caderninho de telefone com alguns números anotados, uma foto sua com uma de minhas primas no colo, algumas fotos 3x4 – eu, o primeiro dos retratos – e, para minha maior surpresa, o convite do meu aniversário de um ano, todo colorido, festa com tema de palhaço, tudo registrado ali. Naquele dia de 1994, ela ficou desesperada ao me ver tão pequena no colo de um palhaço com pernas de pau, meu Deus, minha menininha, que perigo, desce, tira ela de lá de cima.

Foi em 2013 que eu vi esse convite na bolsa de minha avó. Caramba, ela guardava, andava com ele, só porque era meu. E chorei mais ainda. Eu chorei como nunca quando ela deixou comigo essas miudezas da vida, quando eu peguei pra mim sem motivo algum o que era só dela. E com isso eu comecei a perceber que presto atenção no miúdo, no que depois talvez ninguém lembre, no que não pretende permanecer.

Se não existisse esta crônica, é possível que ninguém soubesse o que ela sempre levava na bolsa. Eu nunca contei, nunca mostrei, só guardei como se fosse saudade objetificada. Às vezes eu também levo junto de mim o que mais ninguém precisa saber, qualquer gesto ou expressão que a alegria reconhece. E sorrio mais ainda. Eu sorrio como nunca quando vejo comigo essas miudezas da vida.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Pangloss às avessas

Nesta semana, enquanto assistia ao programa do Caco Barcellos, profissional que atribui ao jornalismo a dignidade que geralmente outros descartam, foi interessante ver a discordância de dados que os deputados arriscavam para tentar justificar a necessidade de reduzir a maioridade penal. Números aleatórios – e bem distantes uns dos outros – foram ditos para afirmar que os crimes são cometidos majoritariamente por menores de idade. O resultado disso é óbvio: seus discursos estavam equivocados.

O problema, nesse caso, é o interesse que possuem de continuarem enganados (e, consequentemente, enganando) e o desinteresse de fundamentarem suas teses com respaldo na realidade. Reforçam primeiramente o que desejam e só depois buscam uma justificativa. Vejam vocês que, ao escrever esta crônica, acabo me deparando com o pensamento de um filósofo do século XIX, idealizo algumas divagações a serem feitas, e concordo mais uma vez com Schopenhauer. Numa cultura que privilegia a razão, a verdade é que ela dificilmente é privilegiada, porque se submete, a todo tempo, à vontade.

Some isso, ainda, ao fato de termos o Congresso mais conservador desde o período ditatorial. Religiosos, militares, ruralistas, todos estão lá para defender suas vontades, ainda que para assegurá-las seja preciso lançar mão da invenção e do imaginário como razão. A falta de espaço para o diálogo e a perpetração da intolerância são aspectos que fazem com que tenhamos, ali, uma espécie de Pangloss às avessas, com o objetivo de apresentar para os cidadãos o pior dos mundos, onde sequer cabe o otimismo.

Voltando ao assunto anterior, no entanto, saiba o leitor que surgem também vontades em quem agora escreve. O texto poderia terminar com algumas considerações sobre discussões absurdas que andam promovendo, como a defesa do projeto de lei da terceirização do trabalho no Brasil, mas deixemos isso para outra hora, porque tenho de escutar o livro de poemas que comprei ontem autografado.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A literatura brasileira no Carnaval

O desfile da Unidos de Padre Miguel neste ano, belíssima homenagem a Ariano Suassuna – escritor falecido em julho do ano passado –, foi mais um dos tantos exemplos da literatura brasileira no Carnaval. Essa relação entre a literatura e as escolas de samba passou a ser feita com a exigência de temáticas nacionais nos enredos, que ocorreu a partir da década de quarenta e proporcionou, desde a época, um diálogo importante entre a cultura letrada e a cultura popular.

Diante de um cenário histórico que, de certa maneira, opõe o âmbito das letras nacionais ao espaço popular, o Carnaval, festa em que o barão da ralé se consagra como rei profano e divino, foi capaz de mesclar a rua e a Academia e mandar às favas os títulos que para muitos trazem algum prestígio. É na folia de Momo, portanto, que os doutores abandonam suas máscaras e dão voz a Aldir Blanc e João Bosco: “custei a compreender que a fantasia é um troço que o cara tira no carnaval e usa nos outros dias por toda a vida”.

Nesse sentido, a ponte entre o samba de enredo e a obra literária, quebrando o contraste popular x erudito, une aquilo que para muitos parece não possuir vínculo. A letra da música, em todo caso, obviamente não explica o aspecto literário – e, por isso mesmo, singular – da obra, mas sintetiza o que ela aprofunda por meio de um estilo também próprio. Assim, trabalhar com esses diferentes gêneros – principalmente em sala de aula, se pensarmos pelo viés educacional – pode ser altamente enriquecedor.

Dos diversos exemplos literários que foram temas dos desfiles carnavalescos no Rio de Janeiro, destacam-se alguns: em 1952, a Mangueira homenageou “um poeta de sublime inspiração”, Gonçalves Dias; a Portela, em 1966, foi campeã com o samba de Paulinho da Viola, o único de sua carreira, sobre Memórias de um sargento de milícias, o romance de Manuel Antônio de Almeida a respeito da figura do malandro e do Rio do século XIX; em 1975, a Águia se inspirou em Mário de Andrade para levar Macunaíma à Avenida, enquanto a verde-e-rosa poetizou o Carnaval com Jorge de Lima; a Em Cima da Hora ficou sendo responsável por um dos melhores sambas da história, em 1976, com enredo sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, mostrando que o “sertanejo é forte, supera a miséria sem fim”; e, pra terminar, vale registrar que Ariano Suassuna, o Imperador da Pedra do Reino, já havia sido homenageado pelo Império Serrano em 2002.

Muitos outros enredos foram criados com base na literatura. Vitoriosos ou não – a Unidos de Padre Miguel, por exemplo, deveria ter sido campeã com Suassuna mas não foi –, formam, sem dúvida, uma contribuição histórica e cultural de grande valor para o Brasil. A análise dos enredos e seus sambas, dessa forma, faz com que o elo traçado entre o carnaval e a literatura possibilite a quebra de uma barreira existente entre as manifestações populares e as literárias.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Vitória da ilusão

Tive superpoderes na Gávea, cantei de olhos fechados no Largo de São Francisco, ganhei a viagem indo à Lapa, li destinos na Praça XV, andei pela Tijuca, conheci marchinha nova no Andaraí. Tem gente que reveste a cidade de São Sebastião com micareta e eu fujo disso porque dói quando eu Rio. Vitória da ilusão. Armei outro Rio de Janeiro pra recriar a criação.

No meu bloco não há corda; na minha escola ninguém pega fogo. O meu Carnaval é da rua e da bagunça, da cerveja e da gargalhada, do deboche e da emoção; é da comoção com a fantasia infantil, da saudade do tempo não vivido, do asfalto sujo de confete, do samba, da marchinha, da música brasileira, da senhora que dá a mão pra brincar no Carioca da Gema. E é também da melancolia, da dor que pinta e borda a máscara negra. Bandeira branca, amor.

Minha manhã de Carnaval nasce com a voz de Elizeth Cardoso. O sol desponta e a gente logo lamenta por Aurora não ser sincera. Nas noites das escolas de samba, ninguém dorme, e o lamento, dessa vez, é pelo monopólio da televisão, porque a concepção de Carnaval como cultura não existe onde deveria. Veio o esquenta da bateria e o aviso de que a hora havia chegado. A Vila Isabel desfilou bem e sorriu de novo.

Ficou fantasiada de Dolores Duran a noite de terça-feira. Fim de caso. Senti falta de tocar tamborim, de batucar o pandeiro, da companhia de um outro sábado de folia. Mas Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves já disseram que não vim pra ficar. Esperei com sossego a quarta-feira de cinzas, dia de apuração e apuros. A pulsação acelerada indica que o folião apaixonado, num misto de esperança e memória, acaba transformando a vitória da ilusão em ilusão da vitória.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Não tem jeito

Saí da Barão de Drummond pra ver um samba nascer. Chapéu branco, bermuda branca, sapato branco e a camisa da Vila Isabel ao meu lado. Alguém que também andava pelas calçadas do Boulevard conversava com dois amigos no banco do ônibus. Me lembrei do último campeonato, da minha voz quase-não-voz de tanto grito, da alegria que a lágrima manifesta. Eles falaram de Martinho e do bairro de Bento Ribeiro. 

Eu, feito criança vidrada no preferido brinquedo, vi e ouvi com admiração. "Tem que escrever!", disse um deles, tirando do bolso a caneta e procurando qualquer coisa que servisse como papel. Era mais uma letra azul-e-branca nascendo. A gente, que escuta Nelson Sargento cantar, já sabe que, mesmo agonizando, o samba não morre. Havia até instruções de escrita de quem já tinha mais intimidade com a coisa: não põe três pontos, samba não é assim, samba é direto. Anotado.

Fui parar de novo na 28, como de costume. Alas e compositores, baianas e carros de som, festa no Petisco, cerveja gelada no Costa e rua cheia. Desapeguei dos meus por um tempo e vi tudo só. Surdo, cuíca e tamborim à minha frente. Fiquei dentro da bateria com a canção e o coração, can-ção, co-ra-ção. Dá vontade de voltar sempre – é a emoção que puxa, que decide e que mostra o porquê da torcida por uma escola. Paixão é assim mesmo, a gente não quer nem saber, só sabe que é.

Não é à toa que o Moacyr Luz canta "Vila Isabel, meu Deus, como tu és de chorar de emoção" no início de um dos meus sambas preferidos. E eu já espero, com a ansiedade peculiar dos desesperados, o momento de ver a azul-e-branco entrar na Avenida, de novo sorrindo, deixando no ar a mais bela sinfonia. Martinho, em seu último show, falou sobre vitória e o povo de Noel, comovido, encheu de esperança o peito. Sou da Vila, não tem jeito.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Herói de nossa gente

Foi brincar Carnaval, em 1975, o “herói de nossa gente”. Deitado em sua rede, viu a águia portelense voar entre as árvores da floresta brasileira. Sabemos de sua história por causa do papagaio que conhecia suas frases e seus feitos e tudo revelou ao homem que ficou para nos contar.

Mário de Andrade acocorou-se em cima de umas folhas, ponteou na violinha e botou a boca no mundo para cantar na fala impura o que viveu Macunaíma. E foram Davi Corrêa e Norival Reis que fizeram um samba de enredo para que ele saísse das páginas de um livro fechado para encantar sua gente a céu aberto.

O anti-herói, que desde cedo manifestou sua preguiça e passou a demonstrar sua personalidade travessa, foi abandonado pela mãe e engravidou Ci, que perdeu o filho e virou estrela, deixando um talismã com Macunaíma. Numa rapsódia cujo enredo se desenvolve em torno do “muiraquitã”, o talismã que lhe foi dado por Ci e que ele precisava resgatar por tê-lo perdido em uma briga, o “herói sem nenhum caráter” foi atrás de Piaimã, o gigante que ficou com seu amuleto, mas não obteve sucesso na recuperação do objeto.

Macunaíma reúne o folclore brasileiro e as ideias das vanguardas europeias, representação do Modernismo na literatura nacional. É, assim, identidade por muitos desconhecida, é encontro de raças e é símbolo de cultura.

Sendo a reunião disso tudo, o “filho do medo da noite” desemboca no carnaval carioca, essa enorme manifestação cultural, e, além de se tornar constelação, fica também sendo responsável por um dos nossos sambas mais bonitos – defendido, na Avenida, por Clara Nunes –, que rendeu à Portela o primeiro Estandarte de Ouro em samba de enredo, a segunda vitória do hoje recordista Davi Corrêa.

Por ele ter ido morar no infinito, por ter virado constelação, Mário de Andrade chorou, e confessou isso numa carta enviada a Álvaro Lins: “pouco importa, si muito sorri escrevendo certas páginas do livro: importa mais, pelo menos pra mim mesmo, lembrar que quando o herói desiste dos combates da terra e resolve ir viver ‘o brilho inútil das estrelas’, eu chorei”.

Foi com uma constelação que a Portela, quinta colocada naquele ano, encerrou o desfile, reafirmando tudo o que o autor do livro sentiu, principalmente, na criação dos últimos capítulos. A azul-e-branco mostrou que Macunaíma brilha e comove, assim como resplandecem e encantam as grandes miudezas das nossas gentes.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.