sábado, 19 de julho de 2014

O Brasil de Lima Barreto

Em 1982, a Unidos da Tijuca levou um mulato, jornalista e escritor para a Avenida. Reverenciando Lima Barreto, o samba que canta e encanta o enredo de Renato Lage sintetiza a vida de um grande brasileiro que, com uma história marcada por discriminação e humilhação, utilizou as letras como instrumento crítico para refletir sobre determinados aspectos sociais.

Por ser um observador atento da realidade, seus romances apresentam cenas e perspectivas que permitem aproximá-los do estilo das crônicas, com uma linguagem associada à informalidade e ao ritmo de escrita próprio desse gênero, o que significa, então, certo distanciamento do rebuscamento e da norma culta tão valorizados pelo Parnasianismo. A abordagem urbana e cotidiana de sua narrativa relaciona-se bastante, nesse sentido, com o cronista que foi Lima Barreto, preocupado em denunciar as posturas avessas a uma sociedade igualitária e, sobretudo, inclusiva.
 
Inserido numa época em que o Rio de Janeiro buscava a modernização inspirada no modelo parisiense e, consequentemente, a higienização que excluía e marginalizava os indivíduos pertencentes às camadas mais baixas, “o mestiço que nasceu nesta cidade” se opõe a essa medida de segregação, diferentemente de grande parte dos literatos e daqueles que representavam a elite brasileira. Para ele, a Literatura tinha a função social de estimular o ideal de fraternidade e de debochar dos fatores pífios que contribuíam para a desigualdade, não sendo possível, dessa maneira, compactuar com o alheamento das problemáticas de seu tempo.

É a partir de tal concepção que a produção literária de Lima Barreto também apresenta, muitas vezes, episódios de sua própria experiência como cidadão consciente e vítima do preconceito.

Tomando algumas de suas obras como exemplo, pode-se dizer que ele reflete sobre os limites do nacionalismo em Triste Fim de Policarpo Quaresma; expõe a ofensa do preconceito racial e de classe em Recordações do Escrivão Isaías Caminha e em Clara dos Anjos; registra o que passou num manicômio, quando se internou por alcoolismo, em Cemitérios dos Vivos; examina a farsa da Abolição e da República numa cidade em vias de modernização em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá; e analisa satiricamente o Brasil da época em Os Bruzundangas.

Além disso e das opiniões que também transmitia nos jornais, o cenário suburbano, a presença do botequim, a defesa de uma cidade multifacetada, a possibilidade de coexistência cultural em uma época cujo objetivo era padronizar um modo de vida por meio da exclusão de outros e a preocupação com a verdadeira identidade do Rio de Janeiro são aspectos que fazem com que o meu Brasil seja o mesmo Brasil de Lima Barreto. Rejeitado pelos acadêmicos mas homenageado pelo povo no Carnaval, tem e seguirá tendo suas ideias vivas, estas sempre contrariando as figuras que perpetuam o desejo de mascarar e esconder parte de nossa cultura.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

Lá de Itaparica

Embora muita gente ainda não tenha notado, com o término da Copa e o retorno de um Campeonato Brasileiro nada motivador para os cariocas da série A, iniciou-se há pouco tempo o período de campanha eleitoral e algumas discussões começaram a ser esboçadas, ainda que vez ou outra estejam restritas a meras manipulações de dados ou a imperativos ditos de modo impetuoso.

Já li, como é costume ler nestes meses antecedentes às eleições, bem intencionados que incentivam o voto nulo como se ele fizesse parte da contagem de votos válidos. Certo dia, acredito ter sido no mês passado, deram de cismar numa conversa que a nulidade garantiria mudança no panorama político porque anularia as eleições por meio da demonstração da insatisfação dos cidadãos. Sorri um sorriso pontual, repeti que a anulação só ocorreria em caso de fraude e continuei a ver o noticiário.

Creio que o hábito de acompanhar o noticiário ao acordar, frequentemente em jornais eletrônicos, seja algum tipo de influência da minha avó materna, que vai todos os dias à banca e passa a manhã lendo jornal. Foi assim que, tomando café na sexta que findou, deparei-me com a eternidade que João Ubaldo Ribeiro alcançava por, de repente, ter ficado ausentemente presente. Lembro que há alguns anos eu vi o autor de Viva o povo brasileiro dizer que o boteco carioca é mais rico do que qualquer similar nacional ou estrangeiro porque servia para ele como inspiração e permitia-lhe maior contato com o mundo e com as pessoas. Deve ter sido nesse momento que o escolhi como um escritor que não poderia faltar nas minhas leituras.

A verdade, porém, é que ainda preciso ler muito das produções de João Ubaldo Ribeiro, porque a característica de aprender e reaprender enquanto são lidas as suas obras é o que faz com que a curiosidade não termine e a sua narrativa seja encantadora. Às vezes, quando fico meio em dúvida se gosto mais da ficção ou da história, acabo sempre constatando que gosto mesmo é da história que a ficção recria. E o autor baiano tem sua parte nisso, consagrado no romance brasileiro de forma emblemática.

Ademais, a brasilidade descrita no cotidiano, na improbidade mascarada, na beleza, na virtude, no viralatismo, na fé ritualística e na força inquestionável de Ogum na guerra faz com que a gente ouça comovido o samba da Império da Tijuca de 1987, uma homenagem àquele que veio lá de Itaparica. O que pretendo fazer, agora, é continuar absorvendo a influência de João Ubaldo Ribeiro, não só lendo suas publicações, mas também indo ao boteco, coisa que ele fazia quase todos os finais de semana.

sábado, 12 de julho de 2014

Firula inexata

Depois de comemorarmos a vitória sobre a Colômbia com dois gols dos zagueiros Thiago Silva e David Luiz e lamentarmos a lesão de Neymar sem sermos patrocinados para tal, acreditamos que a paixão, a sorte ou qualquer outro fator que não fosse técnico venceria com certa dificuldade a excelente equipe alemã. Diante do telão e dos amigos, olhei o time da Alemanha chegando ao estádio e comentei que era meio impossível vê-lo perder, mas a paixão, bem se sabe, não tá nem aí pro impossível.

O problema maior não foi a falta momentânea do craque lesionado ou do zagueiro que ficou fora do jogo devido a um cartão recebido no anterior, mas, obviamente, da inexistência constante de um meio-campo bem organizado, como muitos, com exceção do treinador, perceberam. Chorei nos minutos que declaravam a eliminação e me senti ridícula por algum tempo, mas, assim como as cartas de amor de Álvaro de Campos, não seríamos torcedores se não fôssemos ridículos.

Foi difícil dormir no dia da derrota por 7x1. Foi triste acordar no dia seguinte sabendo que não era pesadelo. Mesmo com as possíveis e positivas reflexões a serem feitas depois do que aconteceu com a Seleção, o que se pode constatar é que a CBF, tanto mental quanto estruturalmente, deve continuar a mesma, porque, utilizando as palavras do narrador machadiano em Esaú e Jacó, "nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele".

Seguindo o conselho de Almir Guineto e deixando de lado esse baixo-astral, deixo de lado também qualquer fator que transcenda a bola no pé para torcer na final em que o Maracanã não estará verde e amarelo. Evito critérios políticos e substituo o desejo alheio de não querer vitória européia em nosso território por admiração a Podolski e Schweinsteiger, novos adeptos do manto sagrado, e sobretudo ao primeiro, que aproveitou a Copa no Brasil para se encantar mais fora de campo do que dentro dele. Diga-se de passagem, é exatamente esse encantamento que falta a muitos brasileiros.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Duplo domínio

Em uma das melhores aulas que tive na Faculdade de Letras, um professor de Literatura Brasileira disse que o discurso literário é o mais completo e o mais complexo se comparado a qualquer outro, pois congrega consciência racional e experiencial emocional, diferentemente dos discursos científicos ou filosóficos, por exemplo, que se restringem à lógica e à razão. E confesso que, depois de ter me dado conta disso, estudar Literatura ficou ainda mais apaixonante.

A verdade é que fomos habituados a entender que o texto mais próximo do real é aquele que preza pela racionalidade da escrita e não permite doses de subjetivismo, de modo que, na escola, precisamos redigir textos geralmente na terceira pessoa, circunstância que é mantida na criação de monografias, dissertações e teses. No entanto, essa predileção pela razão afasta-se da realidade justamente por contemplar somente um lado da condição humana, colocando num plano inferior ou simplesmente descartando as experiências individuais de cada um e, consequentemente, suas perspectivas emocionais. Conceber o homem como puramente racional ou, do mesmo modo, como exclusivamente emocional é rejeitar uma de suas partes e, portanto, distanciar-se da realidade que diz respeito à reunião desses dois pólos.

Pois bem. Foi justamente em torno de tais opostos que giraram as discussões da semana, evidência máxima de que o futebol, assim como o discurso literário, também abarca o duplo domínio da vida humana. Mas isso é posterior ao jogo. Assistir à partida que levaria o escrete às quartas de final não foi fácil.  

Depois de noventa minutos que só permitiram um gol pro Brasil e outro pro Chile, com um gol de Hulk anulado por ter dominado a bola com o braço, os trinta minutos de acréscimo vieram e, no segundo tempo, Pinilla chutou a bola no travessão. Um alívio para os apreensivos brasileiros e uma tatuagem para o chileno. Nosso sofrimento, que parecia interminável nesses cento e vinte minutos, teve de se arrastar aos pênaltis. Neymar, que passou praticamente o jogo todo com dores na perna devido a um choque, foi escalado por Felipão pra ser o primeiro a bater, mas, diante dos fatos, bateu o último pênalti. Foi decisivo, assim como Julio Cesar, que, para a surpresa de seus tantos críticos, fez ótimas defesas. Thiago Silva desesperou-se ao ver que a disputa iria para os pênaltis e preferiu rezar, completamente frágil e emocionado. O capitão não chutou na hora de definir o placar. 

Bastou o feito para as opiniões dos torcedores serem divididas: de um lado, os defensores de uma integridade racional; de outro, os que exaltam a virtude emotiva. Concordo, decerto, que a atitude do capitão de um time seja assumir a responsabilidade e encarar a liderança do jogo. A consciência racional faria com que Thiago Silva batesse o pênalti. Mas que somos nós diante dos grandes instantes da vida? Ainda não estamos habituados com a fragilidade porque fomos adestrados aos extremos da racionalidade, mesmo que seja preciso lançar mão do fingimento para lidar com eles. A experiência emocional também tem voz. A gente é que acha que ela deve sempre fazer silêncio.

No mais, o que desejo é que essa voz transforme o choro em uma força que impulsiona e capacita. Jogaremos contra a melhor seleção da Copa, enfrentaremos James Rodríguez, que anda sendo ovacionado como se já fosse o maior craque dos últimos tempos, e teremos de torcer muito pela marcação correta de Cuadrado, o jogador colombiano que, a meu ver, oferece mais perigos do que o até então artilheiro do Mundial. Diante da pulsação apavorada de um coração que não se acalma, eu duvido muito que consigamos silenciar nossa emoção.