terça-feira, 25 de outubro de 2022

Conversa de família


Já faz tempo que minha mãe e meu pai se separaram, mas isso nunca os impediu de continuarem amigos. Na verdade, a amizade entre os dois até se tornou mais leve, mais aparente, após a separação. Numa noite, por exemplo, depois de trabalhar o dia todo, ele, do alto de seus cinquenta anos, chegou indignado em casa comentando com a minha mãe:

– Pô, caraca! Aquela mulher me mandou mensagem perguntando o que eu estava fazendo online no zap de madrugada. É mole? Fuçando minha vida a essa hora.

– E quando é que tu vai dar uns pega nessa mulher? Ela tá te querendo.

– Que dar pega o quê! Vou dar pega nada!

– Deixa de ser frouxo! 

– Frouxo... eu, hein. Que coisa esquisita, tirar print da tela pra dizer que viu o “online”...

Ele acha um absurdo a modernidade do stalker, esse negócio de ver o que o outro faz por meio de redes sociais. Talvez nem saiba o significado de stalkear. Não entende que, quando a gente tá a fim de alguém, pode acabar mandando uma mensagem de madrugada, mesmo que na maioria das vezes isso esteja condicionado a uma total falta de assunto.

Poucos dias depois do ocorrido, fomos os três comer num trailer da nossa rua, onde costumávamos pedir um x-tudo acompanhado de batata frita. Na mesa, voltamos ao assunto, e meu pai – meio sem graça, rindo da situação – continuou sem acreditar que uma pessoa se prestava ao papel de bisbilhotar a vida da outra no whatsapp, ainda mais de madrugada. Eu havia acabado de mencionar o nome da tal moça, quando minha mãe me interrompeu, direcionando a pergunta ao meu pai:

– Tu não vai comer?

Interferi na mesma hora, num misto de constrangimento e espanto: 

– Mãe!

– Que é, garota? A batata! Perguntei se ele não ia mais comer a batata frita...

– Ahhh, bem. 

Gargalhamos.

Crônica destaque da antologia +Humor, publicada pelo Selo Off Flip em 2023.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

A cura

Foto: Leo Aversa

Ouvi contar a história o menino. Eu já a conhecia, embora se renovasse na voz do pequeno. Prestei atenção: o abandono à beira do mar, a maternidade vinda das águas, a espuma das ondas surgindo, as feridas cobertas, a timidez natural da solidão experimentada logo no início da vida, a rejeição posteriormente repetida, indignação que provocara a ira, o espalhar daquilo que precisaria ser curado. Foi desse modo que começou o espetáculo, com o conhecimento da trajetória do orixá da doença e da cura.

Obaluaê no palco, Obaluaê no terreiro, Obaluaê em sonho, Obaluaê de novo no teatro. Assim estive por vezes perto dele, como quando ouvia, de maneira repetida durante o isolamento, Mingo Silva cantar “Povo do Ayê”, música que me fazia suportar, não sem dor, feridas que teimavam em não sarar, ou quando Os Tincoãs me acalmavam, sobretudo quando vinha na letra a saudação “Atotô, meu pai!”.

“Cura”, de Deborah Colker, me fez lembrar disso tudo e também de um conto de Conceição Evaristo que termina com o ensinamento de que é preciso fazer o caminho de volta para chegar novamente ao princípio de tudo. Da mesma forma, é preciso se voltar para dentro, percorrer a estrada esburacada que nos projeta tropeços-quedas-abismos, a imensidão do vazio, a fim de compreendermos o que somos, em que pé anda a vida, o que queremos dela e por que ela nos arremessa onde parece não sabermos pisar.

Por coincidência – palavra que uso por hábito, e não por crença –, tais pensamentos me chegam no primeiro dia de agosto, mês de Obaluaê. Sol que ilumina e nos cega os olhos apenas quando encarado; morte que é prenúncio de vida; grão duro que alimenta. Renascimento, dança, restauração. Faz bem sentir, de vez em quando mais intensamente, que da rejeição se faz a adoção, a aceitação, o acolhimento e, como consequência, a cura.  

domingo, 9 de janeiro de 2022

A boneca


"A filha perdida" faz uma filha admirar ainda mais sua mãe - foi o que senti assistindo ao filme. Sendo uma mulher de 29 anos, sem filhos, me coloquei no lugar das personagens mulheres e entendi todos os seus conflitos, o que me fez pensar no tanto que minha mãe já encarou, já suportou, já abriu mão por minha causa. 

A narrativa, baseada no livro homônimo de Elena Ferrante, conta a história de Leda, que tem duas filhas, e de Nina, que tem uma. Em uma viagem, ambas se encontram - a segunda com a filha, o marido (que chega depois), a família; a primeira, por sua vez, sozinha, sem as filhas, sem marido, sem família.

Ao longo da trama, conhecemos o passado de Leda, professora universitária que na juventude queria cuidar de sua carreira, de seus desejos e de seu sossego, enquanto as filhas, pequenas, queriam brincar com ela, faziam bagunça, gritavam, riam, brigavam, respondiam. O pai não ficava sobrecarregado como a mãe; diferentemente desta, tinha a possibilidade de colocar sua vida profissional em primeiro lugar. Até que Leda sai de casa por três anos, um período, como confessa para Nina, maravilhoso em sua vida. Nesse instante do diálogo entre as duas, o olhar de Nina para ela é de compreensão, de uma ponta de inveja por querer fazer o mesmo.

As mães desejam também fugir. As mulheres desejam também se dedicar à carreira. As mulheres desejam, sentem tesão, querem um tempo pra se masturbar com tranquilidade, virar para o lado e dormir. Muitas são impedidas, no entanto: é preciso brincar, chamar a atenção da filha, fazer comida para ela, aturar uma puxada forte de cabelo, uma mãozinha pequena cutucando suas costas, sua barriga, seu rosto, seu olho, sua perna. Enquanto isso, o pai toma cerveja na beira da praia conversando com os amigos. Quando a mãe sai de perto, exausta por discutir com o pai, por estar o tempo todo tomando conta da criança, por suportar um peso enorme nos ombros, a filha some. O pai não vê, distraído com a conversa, de costas para a menina. Lá está na areia, sozinha, a boneca com a qual ela brincava. 

E vale recordar uma cena que precisa ser destacada: a boneca caída no chão da casa, com uma lesma saindo de dentro de sua boca, uma imagem que causa asco. É a cena que, para mim, resume o filme. Há nela a boneca, esse brinquedo tão representativo não só na vida real, mas sobretudo no filme; e há um bicho que sai de dentro da boneca, fazendo com que o sentimento de ternura vinculado ao brinquedo seja substituído, ao menos nesse momento, pelo de repulsa, algo aparentemente incomum. 

E me parece ser assim, por mais duro que seja, a maternidade. Enquanto a boneca representa tudo o que há de positivo em ser mãe - o amor, o carinho, o aprendizado, a doçura, o encanto -, a lesma se relaciona ao que há de negativo nisso - o cansaço, a exaustão, a falta de tempo para si mesma, a impossibilidade de chegar a outros sonhos. Antes de o bicho sair da boca da boneca, sai dali uma lama, uma gosma, o que causa estranhamento e traduz o significado de ser mãe: muitas vezes, a mulher fica de saco cheio, sem disposição. A meu ver, a gosma suja que sai da boca da boneca, mais de uma vez, tem a ver com esses momentos de impaciência, que vão se somando ao longo do tempo, e a lesma diz respeito à coragem (que também é condenação) de ir embora, de fugir, de se libertar.

Em suma, "A filha perdida" nos mostra que os sentimentos de ternura e delicadeza da maternidade por vezes podem dar lugar ao de impaciência e repulsa. Afinal, assim como ocorre com o pai, a mãe quer atender a um telefonema importante e poder não interromper a ligação.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Páginas viradas


Não venho de uma família leitora, que possuía estante de livros em casa e me indicava livros para ler na infância. Meus pais, que têm outra formação, outro entendimento de mundo, trabalhavam muito para me manter na escola - fato que, além de tantos outros, me faz ser eternamente grata aos dois. E meu universo de leitura foi se construindo no ambiente escolar, ainda que nem fossem muitos os livros lidos também no colégio. Quando pequena, causava estranhamento em casa por pedir livros no Natal, ainda mais porque eu dizia não gostar daqueles com imagens, queria livros grandes, só com letras. Fui uma criança que não ligava para as histórias em quadrinhos, embora adorasse o Almanacão de Férias da Turma da Mônica, que me deixava horas colorindo desenhos. 

Lembro bem os dois livros que marcaram minha infância: "As cores de Laurinha", que vi um dia com a minha prima, era uma leitura exigida pela escola dela, e diante do meu interesse ela me deu o livro de presente, disse que já tinha lido e que não precisaria mais dele; e "O menino maluquinho", que ganhei de um primo no dia em que a família estava toda reunida na casa do pai dele - em pouco tempo eu interrompia a conversa dos adultos para dizer que o livro era muito legal. "Você já leu o livro todo? Mas você acabou de ganhar!", me disseram os adultos, espantados.

Só fui ler mais, mesmo, quando pude passar a comprar meus livros, a montar minhas estantes, a trilhar minhas metas de leitura. Desde sempre entendi que meu mundo é feito de letras, livros, palavras, papéis. São elas/eles que me ensinam, me acalmam, me intrigam, me orientam. Não à toa me formei em Letras, me tornei professora, fiz mestrado em Literatura e comecei o doutorado também em Literatura. Minha vida é virar a página.