segunda-feira, 1 de agosto de 2022

A cura

Foto: Leo Aversa

Ouvi contar a história o menino. Eu já a conhecia, embora se renovasse na voz do pequeno. Prestei atenção: o abandono à beira do mar, a maternidade vinda das águas, a espuma das ondas surgindo, as feridas cobertas, a timidez natural da solidão experimentada logo no início da vida, a rejeição posteriormente repetida, indignação que provocara a ira, o espalhar daquilo que precisaria ser curado. Foi desse modo que começou o espetáculo, com o conhecimento da trajetória do orixá da doença e da cura.

Obaluaê no palco, Obaluaê no terreiro, Obaluaê em sonho, Obaluaê de novo no teatro. Assim estive por vezes perto dele, como quando ouvia, de maneira repetida durante o isolamento, Mingo Silva cantar “Povo do Ayê”, música que me fazia suportar, não sem dor, feridas que teimavam em não sarar, ou quando Os Tincoãs me acalmavam, sobretudo quando vinha na letra a saudação “Atotô, meu pai!”.

“Cura”, de Deborah Colker, me fez lembrar disso tudo e também de um conto de Conceição Evaristo que termina com o ensinamento de que é preciso fazer o caminho de volta para chegar novamente ao princípio de tudo. Da mesma forma, é preciso se voltar para dentro, percorrer a estrada esburacada que nos projeta tropeços-quedas-abismos, a imensidão do vazio, a fim de compreendermos o que somos, em que pé anda a vida, o que queremos dela e por que ela nos arremessa onde parece não sabermos pisar.

Por coincidência – palavra que uso por hábito, e não por crença –, tais pensamentos me chegam no primeiro dia de agosto, mês de Obaluaê. Sol que ilumina e nos cega os olhos apenas quando encarado; morte que é prenúncio de vida; grão duro que alimenta. Renascimento, dança, restauração. Faz bem sentir, de vez em quando mais intensamente, que da rejeição se faz a adoção, a aceitação, o acolhimento e, como consequência, a cura.  

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