Era um dia em que a rua estava vazia. Enquanto os meninos brincavam cá dentro, aproveitei para espiar o que se passava do lado de fora. Lá embaixo alguns carros cruzavam o viaduto. Uma birosca aberta com o baralho sobre a mesa, duas crianças caminhando juntas, sacos de lixo amontoados no poste. Quando me inclinei para deixar a janela, fitei, na do vizinho, a bandeira presa na grade. As cores eram nossas. E imediatamente me veio o sonho que eu havia sonhado: era o partido alto, o desafio do improviso, o samba de terreiro, o quintal unindo o canto e o falatório, as palmas que firmavam, a ala de compositores presente; era a memória em verde e rosa.
E foi então que, com mais nitidez, puxei dessa memória: girava a baiana na quadra, nasceu o menino. Ainda pequeno, conheceu a bateria antes do colégio — a primeira escola, como já diz o nome, foi a Estação Primeira. E no sonho tinha uma rua, acho que uma avenida, bem extensa, toda enfeitada, com um tapete no meio, um tapete verde e rosa, para alguém passar em direção ao ponto onde minha vista não chegava. E eu vi o menino ao lado das lavadeiras, ao lado de sua mãe, no tanque perto do Buraco Quente. Em horas de trabalho, elas cantavam. E o menino, ele prestava atenção, aprendia com as mulheres.
Era a baiana, o menino, a bateria, a ala dos compositores. Era uma nação que ele guardava. Da outra ponta do tapete verde e rosa, onde eu não conseguia ver bem, o som da surdo um preparava o corredor iluminado. Até que soprou o vento, revelando os baluartes à espera. Naquela passarela, o verde e o rosa do tapete cintilando, abriu-se caminho para ele passar. E vi o ponto mais alto do morro, o senhor então menino, o menino agora mais velho. Vinha rompendo o dia. Xangô veio ver. Era a memória em verde e rosa. Com o surdo um quase em silêncio, no diminutivo feito o seu nome, ele surgiu. Deixa o Tantinho passar!


