segunda-feira, 13 de abril de 2020

Tantinho da Mangueira


Era um dia em que a rua estava vazia. Enquanto os meninos brincavam cá dentro, aproveitei para espiar o que se passava do lado de fora. Lá embaixo alguns carros cruzavam o viaduto. Uma birosca aberta com o baralho sobre a mesa, duas crianças caminhando juntas, sacos de lixo amontoados no poste. Quando me inclinei para deixar a janela, fitei, na do vizinho, a bandeira presa na grade. As cores eram nossas. E imediatamente me veio o sonho que eu havia sonhado: era o partido alto, o desafio do improviso, o samba de terreiro, o quintal unindo o canto e o falatório, as palmas que firmavam, a ala de compositores presente; era a memória em verde e rosa.

E foi então que, com mais nitidez, puxei dessa memória: girava a baiana na quadra, nasceu o menino. Ainda pequeno, conheceu a bateria antes do colégio — a primeira escola, como já diz o nome, foi a Estação Primeira. E no sonho tinha uma rua, acho que uma avenida, bem extensa, toda enfeitada, com um tapete no meio, um tapete verde e rosa, para alguém passar em direção ao ponto onde minha vista não chegava. E eu vi o menino ao lado das lavadeiras, ao lado de sua mãe, no tanque perto do Buraco Quente. Em horas de trabalho, elas cantavam. E o menino, ele prestava atenção, aprendia com as mulheres.

Era a baiana, o menino, a bateria, a ala dos compositores. Era uma nação que ele guardava. Da outra ponta do tapete verde e rosa, onde eu não conseguia ver bem, o som da surdo um preparava o corredor iluminado. Até que soprou o vento, revelando os baluartes à espera. Naquela passarela, o verde e o rosa do tapete cintilando, abriu-se caminho para ele passar. E vi o ponto mais alto do morro, o senhor então menino, o menino agora mais velho. Vinha rompendo o dia. Xangô veio ver. Era a memória em verde e rosa. Com o surdo um quase em silêncio, no diminutivo feito o seu nome, ele surgiu. Deixa o Tantinho passar!

sábado, 4 de abril de 2020

Quatro de abril


Ela acordou pouco antes das seis. A consulta estava marcada para antes das nove. Fez café, esquentou o pão, viu que a geleia de morango tinha acabado, regou as plantas e pensou em ir pro banho. Ouviu, mesmo de longe, uma melodia que não lhe era indiferente. Caminhou devagar em direção à janela. A cortina branca do vizinho esvoaçava, balançando serenamente. Aos poucos reconhecia a letra, o que fez com que começasse a batucar no parapeito, e recordava, de modo detalhado, o ano para o qual se deixava levar. 

O vizinho, que também acordara cedo, ouvia o samba de 1993. Naquela época ela já contava bons anos de desfile como baiana da escola. Lembrou que o compositor até foi intérprete, mas só nesse ano em que as vozes vindas do Morro dos Macacos sopravam o antídoto para pôr fim a qualquer mal: pra salvar a geração só esperança e muito amor. 

Não podia se atrasar para a consulta, mas as recordações não cessavam. Sua neta havia acabado de nascer, portanto era a primeira vez que entrava na Avenida tendo o título de avó, as lágrimas descendo toda vez que cantava a criança é a esperança de Oxalá. E até hoje se emocionava com essa possibilidade de tudo, em meio a ruínas, ser resgatado: 

Então foram abertos os caminhos
E a inocência entrou no templo da criação
Lá os guias protetores do planeta
Colocaram o futuro em suas mãos 

Cantou o samba todo, o café esfriando na xícara, o barulho dos passarinhos cada vez menor. No dia do nascimento da neta, teve a sensação exata, ao olhar nos olhinhos miúdos da pequena, de estar diante da esperança de Oxalá. Era cantando Gbala que embalava a menina no colo, admirando o quartinho todo branco e azul. Sabia que, quando ela crescesse mais um pouco, entenderia o amor ao pisar descalça no chão da quadra. 

Tomou um banho rápido e vestiu a roupa que já estava separada. O vizinho repetiu o samba. Faltava meia hora para o jogo de búzios e ela não desmarcaria porque a última consulta tinha sido em dezembro. Gostava de acalmar o coração, de saber o que estava por vir. Fechou a porta cantarolando Gbala, lembrando a neta pequenininha, feliz por hoje a menina ser também torcedora da escola, apaixonada a ponto de chorar ao serem campeãs e de ter a resposta certa pra qualquer um que chegasse falando de outra agremiação: sou da Vila, não tem jeito. 

Quando guardou a chave na bolsa e prestou atenção no símbolo do chaveiro, só aí se deu conta. Era quatro de abril. Anos e anos atrás, em 1946, estava fundada a Vila Isabel. Então, foram abertos os caminhos.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

A varanda da minha casa


Recentemente vi uns meninos soltando pipa enquanto o ônibus que me levava pra casa estava parado no sinal. Isso foi bem antes da quarentena. Sorri ao me lembrar da liberdade que a rua me trazia na infância. 

Guardo até hoje, aparentemente sem motivo, a recordação de uma noite em que fomos, eu e mais algumas pessoas da família, acompanhar os amigos da minha tia até o ponto de ônibus. Eles iam pra Bento Ribeiro. A gente formava um grupo de oito ou mais pessoas descendo a ladeira que era a rua onde eu morava para dobrar à esquerda duas vezes e caminhar mais um pouco até o ponto mais próximo. A conversa distraída e a bola no pé — um de nós dominava a bola durante todo o trajeto — nos acompanhavam. Naquele dia parecia que ninguém ali sentia medo da violência da cidade. Faz tempo, desde que cresci, que não tenho essa sensação de liberdade na rua.

Da janela, agora de dentro de casa, observo uma pipa no céu. Não sorrio como sorri no dia em que estava no ônibus. O que acontece agora é a aproximação de uma angústia, muda como o cerol que corta a pipa no alto. Liberdade, hoje, tem a ver com poder estar aprisionada dentro da própria casa. Nós, que sempre tivemos dificuldade de assumir as contradições humanas, ou mesmo de enxergá-las, lidamos atualmente com esse paradoxo. É tempo de deixar as pipas penduradas na garagem, de recolher as cadeiras da calçada, de perceber que o pôr-do-sol pode ser mais bonito visto da varanda que não tenho em casa.

Há poucas semanas almoço à mesa diariamente com o meu pai, que todos os dias estava trabalhando. Não sei dizer quando foi a última vez que isso aconteceu antes da quarentena. Faz tempo, desde que cresci, que o correr da vida passou rosianamente a embrulhar tudo. Fragilizados, preocupados e aflitos, estamos, cada um à sua maneira, desembrulhando talvez não tudo, mas certamente tudo o que é possível.