terça-feira, 20 de novembro de 2018

Sejamos todos feministas


Entrei uma vez num bar e fiz o pedido do petisco que eu queria. Eu estava acompanhada de mais duas mulheres, uma menina de dois anos e um homem. Pedimos também três chopes. O garçom demorou a trazer e, depois de muitos minutos, veio até nossa mesa confirmar o que queríamos. Ele estava bem próximo a mim, de modo que bastaria se virar e falar comigo sobre o pedido. Preferiu, no entanto, dar a volta na mesa toda — três mesas colocadas juntas, porque era um aniversário e chegaria mais gente — , passar por mim, pelas outras duas mulheres e, enfim, se aproximar do único homem para confirmar o pedido. Ninguém além de mim percebeu isso na hora, e eu senti um profundo incômodo com a atitude do garçom, que denunciava a naturalização de atribuir autoridade apenas à figura masculina.

Foi exatamente desse episódio que eu me lembrei quando li e reli Sejamos todos feministas, da Chimamanda Ngozi Adichie, sobretudo neste trecho: “Sempre que vou acompanhada a um restaurante nigeriano, o garçom cumprimenta o homem e me ignora. Os garçons são produto de uma sociedade onde se aprende que os homens são mais importantes do que as mulheres, e sei que eles não fazem por mal — mas há um abismo entre entender uma coisa racionalmente e entender a mesma coisa emocionalmente. Toda vez que eles me ignoram, eu me sinto invisível. Fico chateada. Quero dizer a eles que sou tão humana quanto um homem, e digna de ser cumprimentada. Sei que são detalhes, mas às vezes são os detalhes que mais incomodam”.

No livro, que é a versão modificada de uma palestra da Chimamanda em uma conferência de 2012, a autora nigeriana aborda o feminismo, seus estereótipos e o peso equivocadamente negativo da palavra “feminista”. Para isso, recorda suas experiências em relação ao tema, como a primeira vez em que foi chamada de feminista (por Okolomo, um de seus melhores amigos de infância): “Eu tinha catorze anos. […] Não lembro exatamente o teor da conversa. Mas eu estava no meio de uma argumentação quando Okolomo olhou para mim e disse: ‘Sabe de uma coisa? Você é feminista!’ Não era um elogio. Percebi pelo tom da voz dele — era como se dissesse: ‘Você apoia o terrorismo!’”.

De maneira objetiva e didática, Chimamanda cria uma narrativa instigante que evidencia a problemática da naturalização do machismo, colocando no texto a raiva que nós, mulheres, sentimos pelo desrespeito diário que não pode ser social e culturalmente ignorado: “Estou com raiva. Devemos ter raiva. Ao longo da história, muitas mudanças positivas só aconteceram por causa da raiva. Além da raiva, também tenho esperança, porque acredito profundamente na capacidade de os seres humanos evoluírem”. É essa esperança, essa crença no processo de evolução no sentido de todos nós melhorarmos, que explica o título do livro. “Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar”, e a possibilidade de isso ocorrer passa necessariamente pelo reconhecimento de que a desigualdade de gênero é um problema e que como tal precisa de solução.

O modo como meninas e meninos são criados, por exemplo, geralmente reforça a cultura patriarcal, baseada no domínio masculino e na submissão feminina. “Se, por um lado, perdemos muito tempo dizendo às meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas ou duras, por outro, elogiamos ou perdoamos os meninos pelas mesmas razões”. Nesse sentido, os questionamentos presentes em Sejamos todos feministas constituem reflexões fundamentais para modificar a lógica de uma sociedade em que a mulher fica invisível na mesa do bar, no estádio, na carreira, mas é enxergada enquanto caminha pela rua tendo de ouvir os comentários mais vis feitos por homens que nos desrespeitam constantemente.

A voz de Chimamanda Adichie vem nos lembrar, portanto, da necessidade de desconstrução como instrumento de construção de um mundo justo e igualitário, sem a anulação da mulher em qualquer âmbito. Afinal, “a cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura”. Sejamos todos feministas.

Publicado originalmente no Além de Machado.

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