sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Histórias de mulheres


Colocar a própria vida em jogo quando se lê um texto literário é o diferencial que permite o impacto artístico impulsionado pelo teor subjetivo da escrita. Foi com base nesse critério emocional que escolhi meu conto preferido de A teta racional, de Giovana Madalosso. Não que os outros nove contos que compõem a obra não sejam também muito bons, mas foi relativamente fácil selecionar o de que mais gostei, um dos mais curtos do livro.

“Fim” aborda a passagem do tempo em uma de suas formas mais comoventes: o momento em que alguém importante deixa de fazer parte de nossa vida. Nessa história, o uso dos pronomes “ele” e “ela” retira a especificidade que teriam os nomes próprios dos personagens, justamente para que o significado fique explícito nas singulares características que um tem para o outro: “Ele — que sabia quantas pintas ela tinha e onde ficava cada uma delas, que a acompanhou numa cirurgia de desvio de septo e segurou sua mão enquanto ela vomitava os medicamentos — disse: oi, tudo bem? Ela — que quando ele estava desanimado dizia palavras de sonoridade estranha, carambola australopitecos sorumbático, só para fazê-lo rir, que ficou endividada onze meses para dar para ele um violão clássico de jacarandá brasileiro feito pelo melhor luthier — disse: tudo, e você?”.

O conto termina como se ainda existissem (e de fato existem, como na vida real) lembranças a serem resgatadas; como se o ponto final representasse, na verdade, reticências. De modo preciso e curiosamente profundo, em menos de duas páginas acabam a narrativa, a recordação e possivelmente o amor, ficando a cargo do leitor saber que ainda havia muito para ser desvendado e imaginar, portanto, o que poderia vir após os dois últimos pontos finais: “E não se falaram mais. Ele que. Ela que.”. Essa ausência de preenchimento sintático mostra, semanticamente, que o não dito não está dito menos pela falta de coragem de dizer do que pela inutilidade de tentar ressignificar o passado.

Para além da temática do relacionamento, o livro de estreia de Giovana Madalosso explora a maternidade por meio de diversos pontos de vista. Em “XX + XY”, nos deparamos com a gravidez depois de uma transa ruim numa festa, e fica nítido como isso cruelmente tem um peso enorme para a mulher, sendo reservada uma posição confortável para o homem: “Então peguei o telefone e liguei para o Fábio. Não que eu precisasse. Eu podia muito bem entrar no carro e ir eu mesma comprar a fralda. Ou então podia pedir para a farmácia entregar. Mas liguei para ele e pedi que me trouxesse um pacote […]. Acho que queria me vingar por ele não ser mulher e não estar passando por tudo que eu estava passando”. Em “Suíte das sobras”, a relação entre mãe e filha ganha contorno diferente do que era habitual para as duas: “Rodamos assim por vários quilômetros, num silêncio que não chegava a ser tão confortável quanto o dos verdadeiros cúmplices, mas que também não chegava a incomodar como antes”.

O conto que dá nome ao livro, também imerso no universo materno, trata da inconveniência da figura masculina no local de trabalho, personificada no chefe: “Estou trancada no banheiro da agência ordenhando. […] O meu chefe bate na porta e pergunta se vou demorar. Mais uns dez minutos, eu digo. […] E então o babaca do meu chefe bate na porta de novo. […] Meu mamilo brocha. Eu juro por Deus, ele brocha”.

Com o objetivo de criar reflexões a respeito dos padrões relativos à mulher, o protagonismo feminino presente em cada texto dá luz a uma representatividade literária que mostra a pluralidade de vozes muitas vezes caladas socialmente. No conto “Roleta-Russa”, por exemplo, uma transexual, enfrentando um resultado positivo no exame, fala da necessidade humana de sermos amados: “Quando peguei o resultado do exame, me joguei na cama de roupa e tudo, com o envelope na mão, e fiquei olhando pro teto até escurecer. Pela primeira vez imaginei como ia ser quando eu morresse. Eu já tinha pensado nisso como as outras pessoas: de um jeito rápido, numa noite de insônia, calculando quem ia estar lá, quem ia segurar as alças do caixão, quem ia chorar por mim. Essas coisas que a gente pensa quando sente necessidade de ser amado. Mas naquela tarde foi diferente. Era tudo real.”

Aliando ficção e realidade com uma capacidade admirável, Giovana Madalosso — finalista do prêmio da Biblioteca Nacional — explora nas narrativas um tom de oralidade que faz com que os contos sejam histórias muito bem contadas. E é um alento saber que há indispensáveis histórias de mulheres na literatura brasileira contemporânea.

Publicado originalmente no Além de Machado.

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