quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Leves enganos e parecenças


“Melhor que Rapunzel!”. Foi o que ouvi de uma das minhas alunas do Ensino Fundamental quando terminei de ler em sala o conto “Fios de ouro”. Antes da leitura, o título, segundo as alunas, lembrou a história de Rapunzel. Mas a menina de quem fala a narradora de “Fios de ouro” tem uma vivência muito diferente: foi trazida da África para o Brasil, para ser escravizada aos 12 anos. “Da aldeia dela parece que só Halima sobreviveu em um tempo de viagem que durou quase dois meses. Das lembranças da travessia, Halima conseguia falar pouco”.

Em Histórias de leves enganos e parecenças, Conceição Evaristo faz o leitor experimentar sensações como o encanto, a empatia, a comoção e, entre outras, o fascínio pela beleza, ao produzir narrativas que reúnem afeto, mistério, fé, diáspora e cultura africanas. Como águas que escorrem por nossas margens sem desaguar em sumiço, suas palavras reluzem em nós feito o amarelo do vestido da moça que “cantou para nossa outra Mãe, para a nossa outra Senhora”.

Dessa forma, somos apresentados a uma escrita que emociona e nos põe diante da enchente, do vento, do baobá, roda da vida. O movimento das páginas se confunde com o balanço sereno das folhas verdes no alto de uma árvore com raízes que apontam para um futuro jamais dissociado do que passou. É assim que lemos o Tempo: nos pés do dançarino que, ignorando o afeto e a sabedoria das mulheres mais velhas que um dia o acolheram e curaram, perdeu o que tinha de mais valioso em seu corpo. “Os pés dele tinham ficado esquecidos no tempo, mas que ficasse tranquilo. Era só ele fazer o caminho de volta, para chegar novamente ao princípio de tudo”.

Denunciando sem ser panfletária, a literatura de Conceição Evaristo se mostra indiscutivelmente necessária, uma vez que o cânone, tal qual a sociedade, sempre manteve os mesmos privilégios e as mesmas condenações. Nas palavras de Eduardo de Assis Duarte, em seu livro O negro na literatura brasileira, isso é destacado: “Examinados os manuais — componente significativo dos mecanismos estabelecidos de canonização literária —, verifica-se a quase completa ausência de autores negros, fato que não apenas configura nossa literatura como branca, mas aponta igualmente para critérios críticos pautados por um formalismo de base eurocêntrica que deixa de fora experiências e vozes dissonantes, sob o argumento de não se enquadrarem em determinados padrões de qualidade ou estilos de época”.

Como a literatura não se faz das amarras desses chamados estilos de época, a originalidade da autora é o que nos move. No conto “Mansões e puxadinhos”, por exemplo, de forma singularmente lírica e aparentemente sutil, fica nítido como a atitude preconceituosa atinge a vítima de tal maneira que ela passa mesmo a se enxergar do modo como é julgada: “Esses, temerosos com a ameaça constante de que seriam mandados embora da área, pois havia algo de podre no ar, mesmo com a convicção de que não eram eles os culpados, foram tomados pela síndrome da assepsia compulsória (SAC). Vítimas então de um estado de espírito, um misto de medo e de culpabilidade, apesar de serem inocentes, passaram a lavar exageradamente, noite e dia, seus puxadinhos, seus corpos e seus pertences”.

Dotada de energia, a escrita afro-brasileira da autora lembra Zâmbi, fonte de luz maior, nas miudezas que dão vida aos dias e às noites. Em cada palavra selecionada, em cada narrativa, algo mais amplo nos é revelado, como se o outro lado da História — feito de questionamentos, encantos, dança dos corpos, tambor, riso subversivo e água corrente de rio — enfim estivesse sendo contado e ensinado. Do mesmo modo que a força da presença de Zâmbi transforma o mínimo contido nos farelos de pão na fartura do alimento para os filhos de Magnólia em “O sagrado pão dos filhos”, as intensas e precisas palavras de Conceição Evaristo, evocadas pela mesma força, se convertem na abundância de sentimentos capazes de humanizar ainda mais aqueles que as leem.

Publicado originalmente no Além de Machado.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Histórias de mulheres


Colocar a própria vida em jogo quando se lê um texto literário é o diferencial que permite o impacto artístico impulsionado pelo teor subjetivo da escrita. Foi com base nesse critério emocional que escolhi meu conto preferido de A teta racional, de Giovana Madalosso. Não que os outros nove contos que compõem a obra não sejam também muito bons, mas foi relativamente fácil selecionar o de que mais gostei, um dos mais curtos do livro.

“Fim” aborda a passagem do tempo em uma de suas formas mais comoventes: o momento em que alguém importante deixa de fazer parte de nossa vida. Nessa história, o uso dos pronomes “ele” e “ela” retira a especificidade que teriam os nomes próprios dos personagens, justamente para que o significado fique explícito nas singulares características que um tem para o outro: “Ele — que sabia quantas pintas ela tinha e onde ficava cada uma delas, que a acompanhou numa cirurgia de desvio de septo e segurou sua mão enquanto ela vomitava os medicamentos — disse: oi, tudo bem? Ela — que quando ele estava desanimado dizia palavras de sonoridade estranha, carambola australopitecos sorumbático, só para fazê-lo rir, que ficou endividada onze meses para dar para ele um violão clássico de jacarandá brasileiro feito pelo melhor luthier — disse: tudo, e você?”.

O conto termina como se ainda existissem (e de fato existem, como na vida real) lembranças a serem resgatadas; como se o ponto final representasse, na verdade, reticências. De modo preciso e curiosamente profundo, em menos de duas páginas acabam a narrativa, a recordação e possivelmente o amor, ficando a cargo do leitor saber que ainda havia muito para ser desvendado e imaginar, portanto, o que poderia vir após os dois últimos pontos finais: “E não se falaram mais. Ele que. Ela que.”. Essa ausência de preenchimento sintático mostra, semanticamente, que o não dito não está dito menos pela falta de coragem de dizer do que pela inutilidade de tentar ressignificar o passado.

Para além da temática do relacionamento, o livro de estreia de Giovana Madalosso explora a maternidade por meio de diversos pontos de vista. Em “XX + XY”, nos deparamos com a gravidez depois de uma transa ruim numa festa, e fica nítido como isso cruelmente tem um peso enorme para a mulher, sendo reservada uma posição confortável para o homem: “Então peguei o telefone e liguei para o Fábio. Não que eu precisasse. Eu podia muito bem entrar no carro e ir eu mesma comprar a fralda. Ou então podia pedir para a farmácia entregar. Mas liguei para ele e pedi que me trouxesse um pacote […]. Acho que queria me vingar por ele não ser mulher e não estar passando por tudo que eu estava passando”. Em “Suíte das sobras”, a relação entre mãe e filha ganha contorno diferente do que era habitual para as duas: “Rodamos assim por vários quilômetros, num silêncio que não chegava a ser tão confortável quanto o dos verdadeiros cúmplices, mas que também não chegava a incomodar como antes”.

O conto que dá nome ao livro, também imerso no universo materno, trata da inconveniência da figura masculina no local de trabalho, personificada no chefe: “Estou trancada no banheiro da agência ordenhando. […] O meu chefe bate na porta e pergunta se vou demorar. Mais uns dez minutos, eu digo. […] E então o babaca do meu chefe bate na porta de novo. […] Meu mamilo brocha. Eu juro por Deus, ele brocha”.

Com o objetivo de criar reflexões a respeito dos padrões relativos à mulher, o protagonismo feminino presente em cada texto dá luz a uma representatividade literária que mostra a pluralidade de vozes muitas vezes caladas socialmente. No conto “Roleta-Russa”, por exemplo, uma transexual, enfrentando um resultado positivo no exame, fala da necessidade humana de sermos amados: “Quando peguei o resultado do exame, me joguei na cama de roupa e tudo, com o envelope na mão, e fiquei olhando pro teto até escurecer. Pela primeira vez imaginei como ia ser quando eu morresse. Eu já tinha pensado nisso como as outras pessoas: de um jeito rápido, numa noite de insônia, calculando quem ia estar lá, quem ia segurar as alças do caixão, quem ia chorar por mim. Essas coisas que a gente pensa quando sente necessidade de ser amado. Mas naquela tarde foi diferente. Era tudo real.”

Aliando ficção e realidade com uma capacidade admirável, Giovana Madalosso — finalista do prêmio da Biblioteca Nacional — explora nas narrativas um tom de oralidade que faz com que os contos sejam histórias muito bem contadas. E é um alento saber que há indispensáveis histórias de mulheres na literatura brasileira contemporânea.

Publicado originalmente no Além de Machado.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Sejamos todos feministas


Entrei uma vez num bar e fiz o pedido do petisco que eu queria. Eu estava acompanhada de mais duas mulheres, uma menina de dois anos e um homem. Pedimos também três chopes. O garçom demorou a trazer e, depois de muitos minutos, veio até nossa mesa confirmar o que queríamos. Ele estava bem próximo a mim, de modo que bastaria se virar e falar comigo sobre o pedido. Preferiu, no entanto, dar a volta na mesa toda — três mesas colocadas juntas, porque era um aniversário e chegaria mais gente — , passar por mim, pelas outras duas mulheres e, enfim, se aproximar do único homem para confirmar o pedido. Ninguém além de mim percebeu isso na hora, e eu senti um profundo incômodo com a atitude do garçom, que denunciava a naturalização de atribuir autoridade apenas à figura masculina.

Foi exatamente desse episódio que eu me lembrei quando li e reli Sejamos todos feministas, da Chimamanda Ngozi Adichie, sobretudo neste trecho: “Sempre que vou acompanhada a um restaurante nigeriano, o garçom cumprimenta o homem e me ignora. Os garçons são produto de uma sociedade onde se aprende que os homens são mais importantes do que as mulheres, e sei que eles não fazem por mal — mas há um abismo entre entender uma coisa racionalmente e entender a mesma coisa emocionalmente. Toda vez que eles me ignoram, eu me sinto invisível. Fico chateada. Quero dizer a eles que sou tão humana quanto um homem, e digna de ser cumprimentada. Sei que são detalhes, mas às vezes são os detalhes que mais incomodam”.

No livro, que é a versão modificada de uma palestra da Chimamanda em uma conferência de 2012, a autora nigeriana aborda o feminismo, seus estereótipos e o peso equivocadamente negativo da palavra “feminista”. Para isso, recorda suas experiências em relação ao tema, como a primeira vez em que foi chamada de feminista (por Okolomo, um de seus melhores amigos de infância): “Eu tinha catorze anos. […] Não lembro exatamente o teor da conversa. Mas eu estava no meio de uma argumentação quando Okolomo olhou para mim e disse: ‘Sabe de uma coisa? Você é feminista!’ Não era um elogio. Percebi pelo tom da voz dele — era como se dissesse: ‘Você apoia o terrorismo!’”.

De maneira objetiva e didática, Chimamanda cria uma narrativa instigante que evidencia a problemática da naturalização do machismo, colocando no texto a raiva que nós, mulheres, sentimos pelo desrespeito diário que não pode ser social e culturalmente ignorado: “Estou com raiva. Devemos ter raiva. Ao longo da história, muitas mudanças positivas só aconteceram por causa da raiva. Além da raiva, também tenho esperança, porque acredito profundamente na capacidade de os seres humanos evoluírem”. É essa esperança, essa crença no processo de evolução no sentido de todos nós melhorarmos, que explica o título do livro. “Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar”, e a possibilidade de isso ocorrer passa necessariamente pelo reconhecimento de que a desigualdade de gênero é um problema e que como tal precisa de solução.

O modo como meninas e meninos são criados, por exemplo, geralmente reforça a cultura patriarcal, baseada no domínio masculino e na submissão feminina. “Se, por um lado, perdemos muito tempo dizendo às meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas ou duras, por outro, elogiamos ou perdoamos os meninos pelas mesmas razões”. Nesse sentido, os questionamentos presentes em Sejamos todos feministas constituem reflexões fundamentais para modificar a lógica de uma sociedade em que a mulher fica invisível na mesa do bar, no estádio, na carreira, mas é enxergada enquanto caminha pela rua tendo de ouvir os comentários mais vis feitos por homens que nos desrespeitam constantemente.

A voz de Chimamanda Adichie vem nos lembrar, portanto, da necessidade de desconstrução como instrumento de construção de um mundo justo e igualitário, sem a anulação da mulher em qualquer âmbito. Afinal, “a cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura”. Sejamos todos feministas.

Publicado originalmente no Além de Machado.