domingo, 30 de dezembro de 2018

A história de Ogum, o Prometeu africano


“Trago em mim o inconciliável e este é o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raro são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta”.

Foi esse o primeiro trecho que destaquei lendo Mayombe, do escritor angolano Pepetela. Aparece na segunda página do romance, momento em que a narração é feita pelo personagem Teoria. A reflexão vale não só para o contexto e o espaço da época de produção do livro, porque, como se pode perceber, traz questionamentos que perpassam o tempo, sendo por isso mesmo universais. Num mundo geralmente maniqueísta, é fundamental buscarmos ser os raros outros.

Escrito no início da década de 1970 e publicado em 1980, o romance faz com que o leitor adentre a floresta do Mayombe para acompanhar a luta pela libertação de Angola, da qual Pepetela participou. Nesse sentido, a ficção é construída com base na realidade, de modo que se integra à história, já que o livro não deixa de fazer um registro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em Cabinda. Sobre essa fusão, Luiz Costa Lima comenta em A aguarrás do tempo (1989): “na ficção, o material histórico entra para que permita a revisão de seu significado, que adquire a possibilidade de se desdobrar em questionamento”. O que nos é apresentado, portanto, é o ponto de vista do guerrilheiro, de sua experiência em uma revolução, de suas questões e críticas políticas, e assim ficamos diante de ideias que conduzem nossos próprios pensamentos e emoções ao lidar com a consciência e as sensações de quem narra ou é narrado.

À perspectiva da luta se relaciona a história de Ogum, mencionada já na dedicatória, permitindo um elo da literatura com a cultura e a religiosidade africanas: “Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a história de Ogun, o Prometeu africano”. Ao longo da narrativa, e mais especificamente no final, entendemos que Ogum é representado pelo personagem de nome Sem Medo, o qual conhecemos por meio da terceira pessoa e da primeira pessoa de outras vozes que não a sua. É ele o comandante dos guerrilheiros, responsável pela operação e por proporcionar reflexões decorrentes de sua experiência de vida. Seu comportamento e seus ideais revolucionários simbolizam o orixá da guerra, mostrando que esta sempre é a sua finalidade, como revela em uma conversa com Mundo Novo:

“– Faço a guerra. Permito, pela minha ação militar, que o aparelho se vá instalando.
– Não sei. Nunca soube responder a essa pergunta.”

Apesar de ser personagem central na obra, Sem Medo não assume o papel de narrador, como acontece com outros personagens que, nos seis capítulos, conduzem a narrativa, que conta também com o narrador onisciente. As diferentes perspectivas, desse modo, indicam uma pluralidade de subjetividade sobre uma mesma experiência, a da guerra. Por ser uma obra bastante ligada ao contexto histórico, já que foi produzida no momento da luta pela independência do país, Mayombe é a literatura explicando a formação da identidade angolana. Não à toa o romance trata das questões tribais, que precisariam ser superadas para haver o reconhecimento de um só povo, enquanto os homens se transformam por meio da experiência no espaço da floresta, sendo desafiados a constantemente se reinventar.

Ao final na narrativa, o Comissário Político explica sua transformação, que se deu sobretudo com a morte de Sem Medo na selva: “A morte de Sem Medo constituiu para mim a mudança de pele dos vinte e cinco anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda metamorfose. […] Do coração do Bié, a mil quilômetros do Mayombe, depois de uma marcha de um mês, rodeado de amigos novos, onde vim ocupar o lugar que ele não ocupou, contemplo o passado e o futuro. E vejo quão irrisória é a existência do indivíduo. É, no entanto, ela que marca o avanço no tempo”.

Mayombe, nesse sentido, vai muito além de um registro documental da atuação do MPLA pela libertação de Angola. Uma vez que não se limita ao relato histórico, explora o discurso ficcional para produzir uma obra literária que abarca a condição humana e o propósito da nossa existência no mundo, a reflexão acerca do amadurecimento que só o tempo permite e a respeito das nossas próprias transformações e também das alheias: “As metamorfoses são bruscas e nós continuamos a ver os outros na sua antiga pele”. As mudanças ocorridas com os guerrilheiros correspondem à mudança do país, que se tornou independente dos portugueses. Assim, a escrita literária de Pepetela conciliou consciência histórica e vivência emocional, provocando sobretudo em nós, leitores, a comovente disposição para interpretarmos muitas de nossas próprias experiências.

Publicado originalmente no Além de Machado.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Voo

Paisagem de subúrbio, Di Cavalcanti

Me esquivei do primeiro carro com o sinal ainda aberto, na porta do sacolão um moço anunciava o preço das frutas, duas mulheres com sacolas na mão me olharam e eu vi a testa delas franzida; sinal vermelho, continuei correndo mas agora sentindo um pouco mais de segurança, lá em casa ninguém sabia onde eu tava, se meu pai me vê descalço aqui começa a encher o saco, minha mãe com certeza ia dizer que o que falta pra mim é reza; é claro que eu senti medo, mas a adrenalina era muita e não tinha como eu ficar parado com os moleques mais novos na rua lá de cima, duvido que meu pai na minha idade não correu assim também, e minha mãe falava muito mas eu sei que no fundo ela sabia que não tinha mais jeito; era a primeira vez que eu fazia isso, me metendo no meio dos outros desesperado, mas vai dizer que daria pra ser diferente, não dá, o único jeito é deixar o chinelo na calçada e correr, torcendo pra não trombar com gente mal intencionada, com a polícia que me pararia, nem com senhorinhas que se desesperam quando eu passo perto; era a minha primeira corrida no sinal e na calçada e nos becos, sem olhar pra trás, sem achar que eu tava errado, driblando os pés de quem andava na calçada, me esquivando de fios pendurados no poste, movendo o corpo com cuidado pra não esbarrar em ninguém, rezando pra não dar de cara com meu pai também, se bem que a essa hora ele com certeza cortava madeira no fundo da casa; eu não sei como conseguia correr tão rápido, olhando sempre tudo passar voado do meu lado, árvore, carrinho de bebê, moto, mesa de bar, cadeira de bicheiro, banca de jornal, garrafa de cerveja, lixo encostado no muro, orelhão, tudo passava batido, eu vendo só as cores, nem reparava as pessoas me olhando, me julgando, com medo, apontando pra mim, querendo saber o que acontecia; acho que isso tudo durou uns quatro minutos, mas parecia uma hora de pés descalços no asfalto quente, o sol todo em mim, nem sei como eu chegaria depois em casa, suado, fedendo, o pé com a sujeira encruada, mas na verdade eu nem pensava nisso na hora, só corria como quem fugia de alguém muito perigoso ou de algo que amedrontava; dobrei a esquina na esperança de não ter corrido em vão, olhei pra trás, uns dois caras vinham correndo na mesma direção, fiquei cismado e sei lá como consegui mais disposição, vi que tava perto, muito longe dali não dava pra ser; quando virei na praça, dei de cara com ela quase caindo no chão: era a primeira pipa voada que eu pegava na rua.

*Conto publicado na coletânea Prêmio Off Flip 2022: conto, lançada na FLIP, em Paraty, no dia 25 de novembro de 2022.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

A culpa deve ser do sol


Comecei a ler O sol na cabeça numa manhã a caminho do trabalho e, diferentemente do que pensei, não deixei para terminar a leitura no dia seguinte, porque só consegui apagar a luz do quarto pra dormir quando o último conto acabou. E já de início, enquanto a gente acompanha o “rolézim” na praia, inevitavelmente lembra as caravanas do Chico, um sol de torrar os miolos quando pinta em Copacabana a caravana de um neto e um sobrinho que, pra driblar a polícia, mentaliza o Seu Tranca Rua da avó e o Jesus das tias.

Em “a história do Periquito e do Macaco”, a ligação que o final da narrativa estabelece com o primeiro parágrafo traduz exatamente a tensão resultante da atuação policial no morro, fazendo com que o leitor reflita sobre questões como a indignação seletiva, o racismo por parte das autoridades representativas do estado, a humanidade de pessoas muitas vezes vistas e tratadas como desumanas e o binarismo que reproduz os conflitos de uma cidade partida.

O conto inicia com a perspectiva de quem acompanhou de perto a implementação da UPP: “Quando a UPP invadiu o morro, era foda pra comprar bagulho. Maior escaldação; ninguém queria botar a cara pra vender, só tinha criança trabalhando de vapor. Uns moleque de oito, nove anos. Tinha vez que sentia até pena de ver as criança naquela situação, mas o papo é que a gente se acostuma com cada bagulho sinistro, que pena é coisa que dá e passa rápido; geral continuou comprando droga”.

Lá na sétima página, quando sabemos que o uso abusivo do poder por parte do policial tinha sido o gatilho pra uma armadilha contra ele, o último parágrafo comenta novamente o sofrimento das crianças, mas, desta vez, o narrador se refere a outras crianças: “Depois que não acharam de jeito nenhum o corpo do Cara de Macaco, saiu uma foto no jornal falando assim: ‘Filhos choram no enterro simbólico do tenente Roberto de Souza’. Papo reto, até eu que odeio polícia, na hora senti um pouco de pena, vendo as criança naquela situação”. A respeito da relação deste com o primeiro parágrafo (destacado acima), é o leitor que, sem esforço, pode identificar.

Tanto esse como outros dos trezes contos do livro exploram aspectos linguísticos próprios da oralidade e do grupo social específico selecionado pelo autor para protagonizar O sol na cabeça, a exemplo das gírias e da ausência de concordância, tudo em prol de valorizar uma identidade não só social, mas também cultural. É nesse sentido que a literatura de Geovani Martins surge como novidade no cenário contemporâneo, dialogando com uma realidade que muitas vezes é negligenciada pelo discurso literário.

As experiências de vida do autor nas favelas do Rio são notavelmente refletidas em sua produção escrita, que alia aspectos reais e imaginários para gerar uma ficção dotada de senso crítico e sensibilidade. Conceição Evaristo falou sobre essa relação em entrevista ao jornal Nexo, em maio de 2017, ao explicar seu conceito de escrevivência: “Eu acho muito difícil a subjetividade de qualquer escritor ou escritora não contaminar a sua escrita. De certa forma, todos fazem uma escrevivência, a partir da escolha temática, do vocabulário que se usa, do enredo a partir de suas vivências e opções”. Contaminado, portanto, pela subjetividade do escritor, O sol na cabeça se destaca pela originalidade no universo da literatura brasileira contemporânea.

Publicado originalmente no Além de Machado.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Leves enganos e parecenças


“Melhor que Rapunzel!”. Foi o que ouvi de uma das minhas alunas do Ensino Fundamental quando terminei de ler em sala o conto “Fios de ouro”. Antes da leitura, o título, segundo as alunas, lembrou a história de Rapunzel. Mas a menina de quem fala a narradora de “Fios de ouro” tem uma vivência muito diferente: foi trazida da África para o Brasil, para ser escravizada aos 12 anos. “Da aldeia dela parece que só Halima sobreviveu em um tempo de viagem que durou quase dois meses. Das lembranças da travessia, Halima conseguia falar pouco”.

Em Histórias de leves enganos e parecenças, Conceição Evaristo faz o leitor experimentar sensações como o encanto, a empatia, a comoção e, entre outras, o fascínio pela beleza, ao produzir narrativas que reúnem afeto, mistério, fé, diáspora e cultura africanas. Como águas que escorrem por nossas margens sem desaguar em sumiço, suas palavras reluzem em nós feito o amarelo do vestido da moça que “cantou para nossa outra Mãe, para a nossa outra Senhora”.

Dessa forma, somos apresentados a uma escrita que emociona e nos põe diante da enchente, do vento, do baobá, roda da vida. O movimento das páginas se confunde com o balanço sereno das folhas verdes no alto de uma árvore com raízes que apontam para um futuro jamais dissociado do que passou. É assim que lemos o Tempo: nos pés do dançarino que, ignorando o afeto e a sabedoria das mulheres mais velhas que um dia o acolheram e curaram, perdeu o que tinha de mais valioso em seu corpo. “Os pés dele tinham ficado esquecidos no tempo, mas que ficasse tranquilo. Era só ele fazer o caminho de volta, para chegar novamente ao princípio de tudo”.

Denunciando sem ser panfletária, a literatura de Conceição Evaristo se mostra indiscutivelmente necessária, uma vez que o cânone, tal qual a sociedade, sempre manteve os mesmos privilégios e as mesmas condenações. Nas palavras de Eduardo de Assis Duarte, em seu livro O negro na literatura brasileira, isso é destacado: “Examinados os manuais — componente significativo dos mecanismos estabelecidos de canonização literária —, verifica-se a quase completa ausência de autores negros, fato que não apenas configura nossa literatura como branca, mas aponta igualmente para critérios críticos pautados por um formalismo de base eurocêntrica que deixa de fora experiências e vozes dissonantes, sob o argumento de não se enquadrarem em determinados padrões de qualidade ou estilos de época”.

Como a literatura não se faz das amarras desses chamados estilos de época, a originalidade da autora é o que nos move. No conto “Mansões e puxadinhos”, por exemplo, de forma singularmente lírica e aparentemente sutil, fica nítido como a atitude preconceituosa atinge a vítima de tal maneira que ela passa mesmo a se enxergar do modo como é julgada: “Esses, temerosos com a ameaça constante de que seriam mandados embora da área, pois havia algo de podre no ar, mesmo com a convicção de que não eram eles os culpados, foram tomados pela síndrome da assepsia compulsória (SAC). Vítimas então de um estado de espírito, um misto de medo e de culpabilidade, apesar de serem inocentes, passaram a lavar exageradamente, noite e dia, seus puxadinhos, seus corpos e seus pertences”.

Dotada de energia, a escrita afro-brasileira da autora lembra Zâmbi, fonte de luz maior, nas miudezas que dão vida aos dias e às noites. Em cada palavra selecionada, em cada narrativa, algo mais amplo nos é revelado, como se o outro lado da História — feito de questionamentos, encantos, dança dos corpos, tambor, riso subversivo e água corrente de rio — enfim estivesse sendo contado e ensinado. Do mesmo modo que a força da presença de Zâmbi transforma o mínimo contido nos farelos de pão na fartura do alimento para os filhos de Magnólia em “O sagrado pão dos filhos”, as intensas e precisas palavras de Conceição Evaristo, evocadas pela mesma força, se convertem na abundância de sentimentos capazes de humanizar ainda mais aqueles que as leem.

Publicado originalmente no Além de Machado.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Histórias de mulheres


Colocar a própria vida em jogo quando se lê um texto literário é o diferencial que permite o impacto artístico impulsionado pelo teor subjetivo da escrita. Foi com base nesse critério emocional que escolhi meu conto preferido de A teta racional, de Giovana Madalosso. Não que os outros nove contos que compõem a obra não sejam também muito bons, mas foi relativamente fácil selecionar o de que mais gostei, um dos mais curtos do livro.

“Fim” aborda a passagem do tempo em uma de suas formas mais comoventes: o momento em que alguém importante deixa de fazer parte de nossa vida. Nessa história, o uso dos pronomes “ele” e “ela” retira a especificidade que teriam os nomes próprios dos personagens, justamente para que o significado fique explícito nas singulares características que um tem para o outro: “Ele — que sabia quantas pintas ela tinha e onde ficava cada uma delas, que a acompanhou numa cirurgia de desvio de septo e segurou sua mão enquanto ela vomitava os medicamentos — disse: oi, tudo bem? Ela — que quando ele estava desanimado dizia palavras de sonoridade estranha, carambola australopitecos sorumbático, só para fazê-lo rir, que ficou endividada onze meses para dar para ele um violão clássico de jacarandá brasileiro feito pelo melhor luthier — disse: tudo, e você?”.

O conto termina como se ainda existissem (e de fato existem, como na vida real) lembranças a serem resgatadas; como se o ponto final representasse, na verdade, reticências. De modo preciso e curiosamente profundo, em menos de duas páginas acabam a narrativa, a recordação e possivelmente o amor, ficando a cargo do leitor saber que ainda havia muito para ser desvendado e imaginar, portanto, o que poderia vir após os dois últimos pontos finais: “E não se falaram mais. Ele que. Ela que.”. Essa ausência de preenchimento sintático mostra, semanticamente, que o não dito não está dito menos pela falta de coragem de dizer do que pela inutilidade de tentar ressignificar o passado.

Para além da temática do relacionamento, o livro de estreia de Giovana Madalosso explora a maternidade por meio de diversos pontos de vista. Em “XX + XY”, nos deparamos com a gravidez depois de uma transa ruim numa festa, e fica nítido como isso cruelmente tem um peso enorme para a mulher, sendo reservada uma posição confortável para o homem: “Então peguei o telefone e liguei para o Fábio. Não que eu precisasse. Eu podia muito bem entrar no carro e ir eu mesma comprar a fralda. Ou então podia pedir para a farmácia entregar. Mas liguei para ele e pedi que me trouxesse um pacote […]. Acho que queria me vingar por ele não ser mulher e não estar passando por tudo que eu estava passando”. Em “Suíte das sobras”, a relação entre mãe e filha ganha contorno diferente do que era habitual para as duas: “Rodamos assim por vários quilômetros, num silêncio que não chegava a ser tão confortável quanto o dos verdadeiros cúmplices, mas que também não chegava a incomodar como antes”.

O conto que dá nome ao livro, também imerso no universo materno, trata da inconveniência da figura masculina no local de trabalho, personificada no chefe: “Estou trancada no banheiro da agência ordenhando. […] O meu chefe bate na porta e pergunta se vou demorar. Mais uns dez minutos, eu digo. […] E então o babaca do meu chefe bate na porta de novo. […] Meu mamilo brocha. Eu juro por Deus, ele brocha”.

Com o objetivo de criar reflexões a respeito dos padrões relativos à mulher, o protagonismo feminino presente em cada texto dá luz a uma representatividade literária que mostra a pluralidade de vozes muitas vezes caladas socialmente. No conto “Roleta-Russa”, por exemplo, uma transexual, enfrentando um resultado positivo no exame, fala da necessidade humana de sermos amados: “Quando peguei o resultado do exame, me joguei na cama de roupa e tudo, com o envelope na mão, e fiquei olhando pro teto até escurecer. Pela primeira vez imaginei como ia ser quando eu morresse. Eu já tinha pensado nisso como as outras pessoas: de um jeito rápido, numa noite de insônia, calculando quem ia estar lá, quem ia segurar as alças do caixão, quem ia chorar por mim. Essas coisas que a gente pensa quando sente necessidade de ser amado. Mas naquela tarde foi diferente. Era tudo real.”

Aliando ficção e realidade com uma capacidade admirável, Giovana Madalosso — finalista do prêmio da Biblioteca Nacional — explora nas narrativas um tom de oralidade que faz com que os contos sejam histórias muito bem contadas. E é um alento saber que há indispensáveis histórias de mulheres na literatura brasileira contemporânea.

Publicado originalmente no Além de Machado.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Sejamos todos feministas


Entrei uma vez num bar e fiz o pedido do petisco que eu queria. Eu estava acompanhada de mais duas mulheres, uma menina de dois anos e um homem. Pedimos também três chopes. O garçom demorou a trazer e, depois de muitos minutos, veio até nossa mesa confirmar o que queríamos. Ele estava bem próximo a mim, de modo que bastaria se virar e falar comigo sobre o pedido. Preferiu, no entanto, dar a volta na mesa toda — três mesas colocadas juntas, porque era um aniversário e chegaria mais gente — , passar por mim, pelas outras duas mulheres e, enfim, se aproximar do único homem para confirmar o pedido. Ninguém além de mim percebeu isso na hora, e eu senti um profundo incômodo com a atitude do garçom, que denunciava a naturalização de atribuir autoridade apenas à figura masculina.

Foi exatamente desse episódio que eu me lembrei quando li e reli Sejamos todos feministas, da Chimamanda Ngozi Adichie, sobretudo neste trecho: “Sempre que vou acompanhada a um restaurante nigeriano, o garçom cumprimenta o homem e me ignora. Os garçons são produto de uma sociedade onde se aprende que os homens são mais importantes do que as mulheres, e sei que eles não fazem por mal — mas há um abismo entre entender uma coisa racionalmente e entender a mesma coisa emocionalmente. Toda vez que eles me ignoram, eu me sinto invisível. Fico chateada. Quero dizer a eles que sou tão humana quanto um homem, e digna de ser cumprimentada. Sei que são detalhes, mas às vezes são os detalhes que mais incomodam”.

No livro, que é a versão modificada de uma palestra da Chimamanda em uma conferência de 2012, a autora nigeriana aborda o feminismo, seus estereótipos e o peso equivocadamente negativo da palavra “feminista”. Para isso, recorda suas experiências em relação ao tema, como a primeira vez em que foi chamada de feminista (por Okolomo, um de seus melhores amigos de infância): “Eu tinha catorze anos. […] Não lembro exatamente o teor da conversa. Mas eu estava no meio de uma argumentação quando Okolomo olhou para mim e disse: ‘Sabe de uma coisa? Você é feminista!’ Não era um elogio. Percebi pelo tom da voz dele — era como se dissesse: ‘Você apoia o terrorismo!’”.

De maneira objetiva e didática, Chimamanda cria uma narrativa instigante que evidencia a problemática da naturalização do machismo, colocando no texto a raiva que nós, mulheres, sentimos pelo desrespeito diário que não pode ser social e culturalmente ignorado: “Estou com raiva. Devemos ter raiva. Ao longo da história, muitas mudanças positivas só aconteceram por causa da raiva. Além da raiva, também tenho esperança, porque acredito profundamente na capacidade de os seres humanos evoluírem”. É essa esperança, essa crença no processo de evolução no sentido de todos nós melhorarmos, que explica o título do livro. “Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar”, e a possibilidade de isso ocorrer passa necessariamente pelo reconhecimento de que a desigualdade de gênero é um problema e que como tal precisa de solução.

O modo como meninas e meninos são criados, por exemplo, geralmente reforça a cultura patriarcal, baseada no domínio masculino e na submissão feminina. “Se, por um lado, perdemos muito tempo dizendo às meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas ou duras, por outro, elogiamos ou perdoamos os meninos pelas mesmas razões”. Nesse sentido, os questionamentos presentes em Sejamos todos feministas constituem reflexões fundamentais para modificar a lógica de uma sociedade em que a mulher fica invisível na mesa do bar, no estádio, na carreira, mas é enxergada enquanto caminha pela rua tendo de ouvir os comentários mais vis feitos por homens que nos desrespeitam constantemente.

A voz de Chimamanda Adichie vem nos lembrar, portanto, da necessidade de desconstrução como instrumento de construção de um mundo justo e igualitário, sem a anulação da mulher em qualquer âmbito. Afinal, “a cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura”. Sejamos todos feministas.

Publicado originalmente no Além de Machado.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Como será o amanhã?


Oceano inteiro continuará sendo pranto de saudade amanhã, em referência à Calunga onde dolorosamente se percorre a travessia, para quebrar a corrente e alumiar o ritual. Quem estiver assistindo e admirando, constituindo o caudal de gente que se reiventa ali, estará sendo protegido pela união do céu e do mar. E teremos então um banquete para o rei, enfeitado do verde tijucano que nos trará a esperança desativada pelas negativas revestidas de óleo curador. Aralokô, pajuê. Em seguida aprenderemos que no princípio nem sempre era o verbo, no ritual sossegado das mães de santo na avenida. Axé! De repente o rádio será ligado por mãos femininas que revelarão um repertório de amor, poesia de outrora. E bailaremos. Já será madrugada, ao som da sinfonia de Villa-Lobos, brasileiro. Canoeiro, canoeiro... Há ainda que se botar banca na Avenida, vindo de São Carlos. Assim lutaremos pela liberdade diante das aquarelas de Debret. 

Navegaremos em águas claras até a Zona Sul, gritando por liberdade com orgulho dos ancestrais. Um menino na Santa Cruz ensinou o que é amar, nos explicando que a força pra viver está em um coração de criança, como o nosso pode também ser. Aprendendo a lição, não seremos mais um entregue a razão, e então teremos na mente o dom da criação. No pé da serra transformada em Avenida, um batuque pra Xangô. O rei bordará um mundo de delírios, sonhos, devaneios, tingindo de verde nossa história. Ouvindo o som do atabaque, entenderemos o clamor por piedade. Moju, Magé, Mojubá! Nos encontraremos no abraço da fera encantada, numa passarela tomada pelo canto da Iara, todos sendo levados pela correnteza que conduz até o Eldorado, uma Padre Miguel com cidadãos pintados de ouro.

Até que a sandália da passista no chão anunciará um novo ano. E as vozes se unirão em coro mostrando que o povo está mesmo matando a saudade. Na mais bela arte, as arquibancadas formarão a mais perfeita arquitetura numa paleta em que o preto se mistura com o amarelo. E do futuro virá o branco e o azul inundando nossos olhos de amor. "É o povo do samba!", gritaremos. Vanguarda popular composta por quem vem dos Macacos e do Boulevard. Meu Deus, se eu chorar não leve a mal. De São Cristóvão virá gente nos lembrar que não somos escravos de nenhum senhor. Libertados, estaremos também no trono, e depois do cassino, onde se ganha e se perde dinheiro, brincaremos de qualquer maneira. Pecado é não brincar o Carnaval. E Namastê pra todo povo da Avenida.

Desobedecendo pra pacificar, a luz vai acender; o céu, clarear. Coração aberto, quem quiser pode chegar. Voará a águia sobre nós, com poesia de cordel presa no bico, sob vinte e duas estrelas no céu. Provaremos o sabor do Carnaval, provocando uma vontade louca de que chegue logo o próximo. Calor que afaga, poder que assola. Mães e mulheres se aproximarão, apontando a estrela que tem que brilhar. Firmarão o tambor pra rainha do terreiro e veremos juntos a ginga que faz esse povo sambar. E é sambando que nos daremos conta da coroa girando, de pipas pelos ares, tiê, tucano e arara voando, tambores ressoando para ver brilhar meninos abandonados. Carentes, não teremos medo de amar. A nossa festa é pra quem sabe cuidar e pra quem não nega o amor. Sendo assim, voltaremos de lá alimentados de axé, já que o samba faz essa dor dentro do peito ir embora.

sábado, 13 de janeiro de 2018

Esperança verde e rosa


O corte de verbas para o desfile das escolas de samba, que provocou um debate majoritariamente interno sobre o assunto, deixou claro que as medidas tomadas pelo prefeito —  e aqui podemos citar algumas: a ação da Guarda Municipal na Pedra do Sal, impedindo que houvesse a tradicional roda de samba no local; o corte do apoio financeiro à procissão de Iemanjá, que acontece há treze anos em Copacabana; a ausência de investimento na Casa do Jongo, que fechou as portas recentemente por falta de recursos  —  constituem um projeto de anulamento cultural caracterizado pela intolerância religiosa e pelo preconceito com a cultura negra.

Não me sai da memória o dia em que Tia Nilda, baiana da Mocidade, falou emocionada sobre sua relação com a escola no RJTV, em matéria que foi ao ar em fevereiro do ano passado. Afeto ignorado pelos que desconhecem ou discriminam, o sentimento de torcedores e componentes pela escola de samba, e tudo o que dele emana, é fator que potencializa a confiança e a coragem de enfrentar a dureza da vida e de se reinventar no mundo a partir de um toque de agogô. É encantada por esse afeto que a Mangueira insiste, no esplêndido da poesia, em resgatar nosso respeito, derrubando o cordão de um blocódromo que afinidade nenhuma tem com a festa.

O argumento que insustentavelmente sustenta o discurso sobre o dinheiro negado às agremiações, e cabe lembrar que as do Acesso ainda não receberam nenhum investimento do que foi acordado pela prefeitura, cai ainda mais em contradição devido ao evento organizado em Copacabana no sábado passado, para o qual houve o apoio financeiro que viabilizaria os ensaios técnicos. Evidentemente, a preocupação do prefeito é manter a ordem por meio dos seus próprios imperativos, baseados na não aceitação de outras crenças e manifestações culturais alheias à sua visão de mundo mas vivenciadas por enorme parte da população carioca.

Foi também a pretexto de manter a ordem que, no fim do século XIX e início do XX, membros da elite social criticaram e desqualificaram a Festa da Penha e criminalizaram o samba, por exemplo, tornando manifestações culturais de origem negra, como o batuque e a capoeira, elementos de repressão. O viés preconceituoso que causava essa repressão naquela época é o mesmo que molda, atualmente, um governo que propositalmente afeta a festa popular e caminha na contramão de uma sociedade plural que desenrola a vida no giro da roda da saia da baiana e que se reconhece na lágrima de um integrante da Velha Guarda.

Diante desse cenário, a esperança é verde e rosa: erguendo a bandeira do samba, a Mangueira mostra que pecado é não brincar o carnaval. E assim teremos uma Sapucaí que louva o botequim, o samba, o jongo, a diversidade sexual e de gênero, o bloco sem cordão, os santos e as santas  —  em especial Nossa Senhora Aparecida, cuja imagem já foi chutada por um pastor da Universal em um programa de televisão. Uma louvação, portanto, à pluralidade e à subversão, com o objetivo de “desobedecer pra pacificar”, de mãos dadas com a letra da Mocidade. Neste Carnaval todos nós somos Mangueira, meu senhor.

Publicado originalmente no Carnavalize.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Confuso casarão


Show em homenagem a Wilson das Neves: enquanto o palco se reveste do verde imperial, Chico põe o chapéu para reverenciar o amigo, cantando “Grande Hotel” em seguida. E o público, que já sentia prazer em falar de sentimentos de outrora, se emociona sabendo que a hora do imperiano que nos deixou no ano passado não passa.

 

Em caravana de Madureira à Mangueira, Chico quis ouvir a batucada da derradeira estação. Neste Rio de ladeira e encruzilhada, o verde e rosa do palco me levou a 1998, quando a Sapucaí viu a vitória da escola com o enredo “Chico Buarque da Mangueira”. A comissão de frente que invadiu a memória com a ópera dos malandros fez Chico cantar um samba em homenagem à nata da malandragem, pisando nos corações de quem estava na plateia. Naturalmente pisou no meu, recordando que “As Vitrines” era a minha preferida, quando descobri os versos “Catando a poesia/ Que entornas no chão” na mesma época em que eu descobria o que era aquela coisa estranha de se encantar por alguém.

 

E encantamento foi o que não faltou na estreia da turnê no Vivo Rio, espaço que se transformou por algumas horas no confuso casarão onde os sonhos são reais e a vida não. Saudamos então o futebol, a filosofia de botequim, o jogar bonito e o não ganhar no grito, vendo o próprio tempo num relance, como se fosse a vida um jogo de bola no qual dedicamos o gol, traduzido aqui por qualquer realização que nos move, para quem será o nosso amor, para quem será a nossa paz.

 

Ainda que provem o contrário, Chico Buarque acalma: “Não se afobe, não/ Que nada é pra já”. Olho para ele cantando ali no palco, tão perto de mim, ainda sem saber que nossas mãos se tocariam no final do show, e penso que a gente acredita em Chico, nisso que ele nos diz em “Futuros Amantes”, como quem acredita mesmo no amor: já conhecendo os passos da estrada, colecionando retratos, procurando o desconsolo e voltando sempre a se enfeitiçar. Nesse retrato em branco em preto, o maestro soberano também foi lembrado numa apresentação comovente, tamanho o talento de quem já vai na estrada há muitos anos, um artista brasileiro.

 

Mas Chico não só acalma, também desconcerta e faz críticas num dia de real grandeza, tudo azul. Reiterando que há lugares cariocas para onde Jesus está de costas, as notícias de uma cidade imersa no preconceito são resumidas no trecho mais espetacular – e doloroso – do disco recentemente lançado: “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. Em busca de uma sociedade em que esse grito não seja engrossado para que a covardia não nasça, o público aplaudiu o cantor, endossou o “Fora, Temer” e emendou um “olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”. Ou doida era eu que escutava vozes.