terça-feira, 25 de outubro de 2016

Um bom samba, forma de oração


A semana correu tanto que, quando chegou segunda-feira, me dei conta da crônica de domingo. E me veio à cabeça o que José de Alencar escreveu lá em outubro de 1854, quando publicou em sua seção “Ao Correr da Pena”, no Correio Mercantil, uma carta ao redator para se desculpar da preguiça que o impediu de produzir o folhetim da semana: “Sei que há de ficar maçadíssimo comigo, que me acusará de remisso e negligente (…). É já prevenindo esta eventualidade que tomo o prudente alvitre de escrever-lhe, e não ir verbalmente desfiar o longo rosário de desculpas que a minha imaginação, sem que lho encomendasse eu, teve o cuidado de ir preparando apenas pressentiu os primeiros pródromos da preguiça”.

Se houve preguiça para escrever, no entanto, garanto ao leitor que não tive preguiça de sair à rua, o que me faz levar apenas meia culpa, já que o pecado foi cometido pela metade. É possível até que eu esteja livre dele, uma vez que a falta de preguiça de sair pode na verdade compensar a preguiça de escrever, zerando, portanto, minha lista referente a um dos pecados capitais. Certo é que fiz bem em ir pra rua, pegar o metrô até a Praça Onze e parar no Baródromo, no sábado, pra ouvir samba de enredo. Melhor do que o churrasquinho com pão e cebola que comi lá só mesmo a sensação de cantar junto de muita gente o samba da Mocidade pro Carnaval do próximo ano, que é o segundo melhor do grupo especial. Na minha pequena opinião, só perde pro da Beija-Flor, que é uma coisa incrível. Minha Vila, que também vem com um samba muito bom, fica em terceiro lugar no quesito. Mas é sem dúvida o azul que dá o tom à minha vida.

Eu sou Vila Isabel porque, como cantam Moacyr Luz e Martinho da Vila, ela é de chorar de emoção. No meio da quadra, tão familiar, bebi, fiz amigos e só não sambei porque não sei. Sou Vila Isabel porque é quando ela entra na avenida que meu coração se transforma em surdo e quase para quando a bateria silencia. Sou Vila Isabel porque, acima de tudo, essa Kizomba é nossa constituição. A comemoração do título de 2013, que me levou à festa no arraiá na quadra e que me fez subir no palco e cantar chorando nosso chão de poesia, transformou aquela quarta-feira em um dos melhores dias da minha vida.

Apesar de ser o povo de Noel que me emociona, pra mim escola de samba tem a ver com democracia porque constrói laços de pertencimento. Por isso eu também piso na Serrinha quando Dona Ivone fala dos cinco bailes da história do meu Rio; voo com as asas da águia quando Senhor do Bonfim alumia os caminhos da Portela; canto Juremê, Juremá quando Neguinho relembra a saga de Agotime; me encanto com o cenário que a natureza criou pra menina dos olhos de Oyá; sonho com a Mocidade no céu de Sherazade; viro malandro batuqueiro quando passa a Academia; reverencio mamãe Oxum do ouro com a Viradouro; vou com a Estácio na Paulicéia desvairada; pergunto sobre o amanhã na Ilha; peço liberdade, liberdade em verde e branco; e defendo Canudos com a Em Cima da Hora no Nordeste do meu Brasil.

Diante do axé que encontro num samba de enredo, não posso compactuar com a intolerância de quem vai à África e, em vez de valorizar essa cultura que se mistura à nossa, ataca as religiões africanas afirmando que são “diabólicas”. A campanha do bispo Marcelo Crivella tem se mostrado cada vez mais oportunista e mentirosa, sendo baseada em inverdades sobre seu adversário e em calúnias a respeito de quem está ao lado de Marcelo Freixo, como a vice Luciana Boiteux e o sociólogo Luiz Eduardo Soares. Além disso, o senador do PRB defende a submissão da mulher ao homem, afirma veementemente que é ficha limpa — escondendo que já foi preso —, cancela participação em debates e classifica os gays como um “terrível mal”.

A poucos dias do segundo turno, recorro ao samba da Viradouro deste ano: “ó, meu Brasil, cuidado com a intolerância”. Tomara que o carioca tenha esse mesmo cuidado na hora de decidir seu voto.

domingo, 16 de outubro de 2016

Eu bebo pra esquecer


Foram 366 a 111 votos que garantiram a primeira aprovação da PEC 241 na Câmara dos deputados. Sabemos que um governo que já nasceu sem legitimidade não seria capaz de garantir a dignidade democrática, mas seu descaramento vem alcançando proporções surpreendentes. Congelar o salário mínimo e os gastos em saúde e educação — porque o governo, importa ressaltar, trata esses setores fundamentais como despesa e não como investimento — é uma alternativa pensada por quem nem de longe se preocupa com a população, sobretudo a mais pobre.

A ideia, portanto, vai totalmente contra à concepção de Estado social. Roberto Leher, reitor da UFRJ, explica que a aprovação dessa proposta implica “fundamentalmente o fim da gratuidade das universidades públicas; a desvinculação de receitas tributárias para a educação e saúde, uma redução da universalidade do SUS, o que significa obviamente que o SUS deixaria de ser um sistema universal, e a desvinculação dos benefícios sociais da seguridade em relação ao salário mínimo”. O que temos, então, é “um conjunto de medidas que expressa de forma contundente uma quebra nos principais direitos sociais assegurados na Constituição Federal de 1988”.

Em tempos de segundo turno municipal, é curioso observar que o partido do candidato que afirma priorizar a saúde e a educação em seu governo votou completamente a favor da PEC 241. Os deputados do PRB, partido de Marcelo Crivella, se juntaram à Casa Grande para prejudicar justamente as pessoas das quais sua campanha eleitoral promete cuidar.

Cuidar das pessoas se torna um desafio ainda maior, porque se aproxima do impossível, quando há defesa de corte de gastos em áreas essenciais para o cuidado com o outro. O desânimo proporcionado por esse cenário político de desolação e desesperança me leva à música de Argemiro Patrocínio: “eu bebo pra esquecer, mas nem assim”.

Mesmo não adiantando muito, é o que farei neste primeiro domingo em horário de verão, dia reservado ao Pier Mauá. Acaba hoje o Mondial de La Bière, esse paraíso onde a gente bebe e come bem. E com a sede de anteontem que eu estou, é pra lá mesmo que eu vou.

domingo, 9 de outubro de 2016

O grande mal


O grande mal a que Machado de Assis se referiu em 1892, e que citei na crônica passada, parece não estar muito perto do fim. No dia 7 de agosto daquele ano, o escritor publicou que, em eleição da época, “o eleitorado ficou em casa” e “uma pequena minoria é que se deu ao trabalho de enfiar as calças, pegar do título e da cédula e caminhar para as urnas”. No domingo passado, vimos que mais de 40% dos eleitores se recusaram a votar, deixando os votos divididos em 24% abstenções, 12% nulos e 5% brancos. Independentemente de ser isto indiferença, descrença ou abstenção, todos concordam que é um grande mal, como ressaltou Machado.

Diante de uma atual crise de representatividade política, evidenciada pelo cenário das eleições, essa semana despertou também a atenção para a crise de representatividade de um partido, na carta aberta aos membros da REDE, redigida por Luiz Eduardo Soares. Nela o sociólogo argumenta, em nome de outros que também se desfiliaram, que “a sociedade brasileira não sabe o que pensa a REDE, nem consegue situá-la no espectro político-ideológico”, alegando falta de posicionamento do partido em temas centrais, como a ausência de crítica fundamentada ao governo Temer, e relembrando posições assumidas de maneira equivocada e dissociada de seus ideais de formação, como a aliança com o PMDB e a postura favorável ao impeachment da presidente Dilma.

A atitude de Luiz Eduardo Soares me levou ao tempo em que tive contato com seus materiais a respeito de segurança pública — textos, entrevistas, vídeos — e reconheci a importância do tema. Foi lendo um de seus livros, aliás, que passei a me interessar pela trajetória do Brizola. Meu casaco de general é leitura necessária numa sociedade que confunde direitos humanos com defesa de bandido. E o livro registra que, “em 1982, a vitória de Leonel Brizola significou a suspensão da famigerada política do ‘pé-na-porta’, que durante a ditadura caracterizava o comportamento policial nos bairros pobres e nas favelas”. Quando Moreira Franco foi eleito em 1986, contrário aos direitos humanos e ao humanismo de Brizola, resgatou a prática do “pé-na-porta” e entregou o governo em 1990 com o maior índice de criminalidade da história do Rio. Ele havia prometido acabar com a violência em seis meses, mas só conseguiu provar que o descompromisso com os direitos humanos apenas piora a situação da segurança pública.

Apesar de tudo, essa desrespeitosa prática da ditadura continua hoje em dia, agora com legitimidade: o STF decidiu que a polícia tem o poder de entrar em casas sem mandado. Infelizmente não aprenderam com as decisões negativas de Moreira Franco, nem com as intenções positivas de Brizola. Por mais que muitas vezes insistam em incutir na gente o contrário, outro livro do Luiz Eduardo Soares dá o recado: Segurança tem saída. Só não dá pra tentar encontrar essa saída por meio do uso abusivo do poder.

O problema é que muita gente defende práticas ditatoriais, acredita que bandido bom é bandido morto, põe a culpa do estupro na vítima, não vê problema na tortura e quer mais é disseminar a intolerância. Tanto é assim que Flávio Bolsonaro obteve 14% dos votos na cidade que jamais seria maravilhosa com uma prefeitura em suas mãos. E há quem diga que defensor de bandido é o candidato do PSOL, mesmo que ele tenha sido ameaçado de morte pelo combate às milícias e nunca tenha se filiado ao PMDB. Mas isso é papo pra outra crônica.

domingo, 2 de outubro de 2016

Vai ser desse jeito


Machado de Assis não deixava de tratar, em suas crônicas, da importância do voto. Em 1876, disse que “70% de cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha — por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado”. Em outra crônica, de 1892, insiste no tema, estimulando o povo a votar: “não me faças ir adiante, leitor amado. Adeus, vai votar. Escolhe a tua intendência e ficarás com o direito de gritar contra ela”.

Hoje, dois séculos depois, ainda há quem vote por divertimento, sem saber por que nem o quê. São analisadas as musiquinhas, as carreatas com bandeiras e sorrisos forçados, o amigo e o familiar que se candidata a vereador e um sem número de motivos responsáveis pela permanente desmotivação política. A coisa é tão estranha que criticam a utopia sem recordar Eduardo Galeano reproduzindo o que seu amigo Fernando Birri, diretor argentino de cinema, falou em uma palestra: “a utopia está no horizonte. Sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se afasta dez passos. Quanto mais eu buscá-la, menos eu a encontrarei porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Para que serve? Pois a utopia serve para isso: para caminhar”. Negligenciam a utopia, portanto, como se ela interrompesse um caminho, quando, em verdade, é ela que nos encoraja a prosseguir.

Ontem, por exemplo, andando pela Tijuca, dei de cara com um rapaz que me sorriu e disse “Freixo prefeito”. Nos identificamos pelos adesivos. A poucos metros, ele me mostrou, estava a candidata que ganhará meu voto hoje. Fui até ela pegar material, batemos um rápido papo, uma foto registrou o encontro e ela me disse “vamos juntas!”. Se não é, já não tô nem aqui. Gonzaguinha frequentemente reforça em mim que “a gente é tanta gente onde quer que a gente vá”. Pisando firme nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos, sei que elas se cruzam se estivermos de mãos dadas. E é por querer um Rio de Janeiro feito pelo afeto e pelo cuidado que não posso conceber, dentre tantos outros fatores, a continuidade do PMDB.

Um fato curioso é ver tanta gente sem conhecer os vereadores e não saber quem deseja eleger, muitas vezes por não querer eleger ninguém, enquanto pintam tantos nomes dignos de constituir a Câmara. Eu mesma, se pudesse, votaria umas cinco vezes. A opção de não querer eleger ninguém acaba permitindo que seja eleito aquele que representa o nosso avesso, munido de toda nossa discordância e repugnância. É por isso que Machado já dizia lá no século dezenove, a respeito do eleitorado que ficou em casa em dia de eleição e apenas uma pequena minoria foi às urnas: “Variam os comentários. Uns querem ver nisto indiferença pública, outros descrença, outros abstenção. No que todos estão de acordo é que é um mal, e grande mal”.

Quebremos o grande mal. Vou votar hoje à tarde porque, como o Chico, tenho muito sono de manhã. Horas depois de digitar 50 pra prefeito e 50777 pra vereadora, o único destino é a Lapa, onde mora a alegria. Vou à Lapa porque, também como o Chico, fecho com Marcelo Freixo e Marielle Franco, que estarão nos Arcos. Mudar é possível. E que venha um segundo turno construído na rua, na rede, na raça.