segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Uma campanha na voz de Jovelina


“O suburbano quando chega atrasado/ O patrão mal-humorado/ Diz que mora logo ali/ Mas é porque não anda nesse trem lotado/ Com o peito amargurado/ Baldeando por aí/ Imagine quem vem lá de Japeri/ Imagine quem vem lá de Japeri”. Ouvindo Jovelina Pérola Negra cantando esse samba de 1984 da Em Cima da Hora, lembrei que o historiador Luiz Antonio Simas o citou em seu discurso no lançamento da pré-candidatura de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio, no início de julho.

O recado, ao final de sua fala, foi o seguinte: “Que a gente se lembre de todos esses personagens (retratados no samba de 1984) na hora de ir pra rua fazer campanha”. É pra gente não esquecer, portanto, de quem acorda de manhã cedo pra chegar no trabalho a tempo de bater cartão; da menina de laço de fita que batuca na marmita pra não ver o tempo passar; do trombadinha que, embora quase sempre se dê bem no trem lotado, se deu e se dá muito mal na vida o tempo todo. E eu não faço campanha pra candidato que se preocupa mais com as regalias do patrão mal-humorado.

Quatro anos atrás meu voto pra prefeito foi o mesmo. Na época ressaltei o envolvimento do candidato com a cultura popular e a importância disso para que pensemos uma gestão que não se aproprie indevidamente dessa cultura, mas que a valorize e valorize sobretudo quem a produz. A cidade que ainda pode se salvar é a das praças e das ruas, da roda de samba e do jongo, da fé que não mata a do outro e do convívio entre o sagrado e o profano. É a cidade que denuncia milícia e respeita os direitos humanos; que sabe, fundamentalmente, que tal respeito nada tem a ver com a defesa de bandidos, como geralmente apontam os que não se cansam de dizer a lamentável frase “bandido bom é bandido morto”.

Em entrevista ao jornal O Dia, ontem, Freixo declarou: “Não defendo bandido. Nunca fui filiado ao PMDB. Defendo o cumprimento da lei”. E explicou: “Sempre convivi com a violência. As pessoas costumam falar ‘no dia que alguém da sua família for vítima de violência, você muda de opinião’. Meu irmão foi brutalmente assassinado na porta de casa, com 34 anos, e nunca mudei uma vírgula do que penso. Não posso transformar vingança em justiça. Parece até que eu defendo que se estupre, assalte ou mate. Claro que não. Mas o fato de existir criminoso não dá ao Poder Público o direito de agir fora da lei. Se eu tiver que parar de falar em direitos humanos pra ser eleito, não serei eleito. Não pararei de falar. Não quero matar essa juventude. Quero escola de qualidade pra ela. Também não quero uma polícia que mata e morre”.

Como vivemos em um meio em que os direitos humanos são desrespeitados diariamente, o tema nos é caro e por isso mesmo essencial pra um espaço democrático que tenha o altruísmo como regra. O Rio de Janeiro que eu tanto admiro é feito letra do Paulo César Pinheiro, onde a gente prefere ouvir verso de samba a escutar som de tiro. A minha campanha é mesmo aquela que considera os personagens do samba de enredo da Em Cima da Hora e que acredita numa cidade feita por eles e para eles.

domingo, 21 de agosto de 2016

O que fica depois da Olimpíada

Foram três dias n’Os Imortais durante a Olimpíada. Dois almoços olímpicos — o risoto de rabada e a feijoada, coisas que não consigo ignorar num cardápio — e bolinhos de arroz, camarão e mais rabada. E chope, tanto chope que vieram até alguns de graça, pra comemorar gol do Brasil. Por mim essa Olimpíada não acabaria tão cedo, pra gente continuar com esses almoços e com os gritos de “chope, chope, chope!” ali na Ronald de Carvalho.

Saí da Arena de vôlei de praia e andei por Copacabana, depois de pegar muita chuva de manhã, com a camisa do Flamengo. Só tem flamenguista por aqui, diziam alguns desacostumados com o Rio, ingresso pro jogo da tarde na mão de um, boneco de pelúcia na mão de outro. Agora, que eu tô nostálgica com o fim do evento esportivo, quero um Vinícius de pelúcia no meu quarto. Mas que venham as Paralimpíadas com o Tom, que ainda tem muita coisa por aí.

No Parque Olímpico de dez a oito da noite, com alguns copos cheios de skol, a cerveja que não desce redondo, teve “bye, bye, tristeza” na voz de Sandra de Sá, bem no dia em que Robson Conceição ganhou o ouro pra depois criticar a redução da maioridade penal e defender as políticas públicas, mostrando que é mesmo um cidadão de ouro, independentemente da medalha: “Não acho justo punir crianças. Deveríamos é investir mais em projetos sociais e fazer crianças e adolescentes praticarem esportes”.

Foi o que também aconteceu com Rafaela Silva, da Cidade de Deus, que conquistou a primeira medalha de ouro do Brasil e me fez chorar em frente à televisão. Não tem nada mais bonito do que ficar comovido com a comoção do outro. E é exatamente isso que me faz torcer pelos atletas. A vida é esse paradoxo de ser contra a forma como tudo foi construído — e destruído — no Rio pra possibilitar o evento e ser a favor de quem se entrega e supera sobretudo a si mesmo no pódio, na água, no campo, na quadra.

O que fica, afinal, são os impulsos de humanidade. É o choro do Serginho ao se despedir da atuação no vôlei com uma medalha de ouro no peito; é a conquista de Thiago Braz; é o grito de alívio e de alegria dado quando Weverton defende o pênalti; é Isaquias Queiroz, incomparável, merecidamente cogitado a ser o novo nome da Lagoa Rodrigo de Freitas; é um passe entre Marta e Formiga; é o mergulho na Baía de Guanabara; é a Cidade de Deus em festa. Somos o choro que explode quando o riso não comporta a alegria.

domingo, 14 de agosto de 2016

Meu pai

Meu pai me lembra muito o meu avô. Os dois são mais de gestos do que de palavras. Era, o meu avô. Dizem a coisa mais bonita no silêncio. Dizia, o vô. Meu pai é a vida que corre em mim devagar; o acender da luz que alivia o medo do vazio que o escuro traz. Meu pai é choro de menino que termina em sorriso; é água calma de rio na madrugada. Eu sou o espelho do espelho que ele é. Coisa que não quebra, não muda e não deixa de pulsar no peito. Meu pai é coração batendo forte feito amor que não acaba. Meu pai é o menino que me dá a mão.

E de mãos dadas sigo com ele, porque só encaro esse mundo com a leveza de carregar comigo o muito do tanto amor que sinto. Ando por aí com o sol me obrigando a franzir a testa e procurando no fio de luz desenhado no azul as cores que vêm e vão e vêm e vão de um lado pro outro, criança de bermuda soltando pipa que vem e vai lá em cima. Muita vez e outra sou de novo a menina que passeava de moto com meu pai, que jogava bola com gol no portão, que andava de bicicleta dando voltas na garagem do prédio, que esperava ele chegar do trabalho pra espalhar brinquedo e mais brinquedo pela cama.

Sou aquela que chora ouvindo o espelho de João Nogueira, que abraça de repente, que morre de medo, que agradece e que sabe que amor assim brota quando a gente nem é gente ainda e não acaba mais, feito reflexo de sol em olho entreaberto: cega, é mais forte que o conseguir enxergar; cega, de tanto amar. Meu pai é impulso de vida pra minha vida, é inspiração que faz seguir em frente, é presente cheio de passado e de futuro. Nosso tempo conta os meus sorrisos abraçados aos dele.

Somos feitos de escassez, de amor que é raro hoje em dia. Precisamos só do pouco espaço que comporta abraço apertado e do muito tempo que abrange a eternidade do mesmo abraço. Somos feitos do mínimo, do que não gosta de extravagância. Pra gente o excesso só existe no sentimento do mundo, na rosa do povo. Seguimos de mãos dadas. Somos espelho um do outro, coisa que não quebra, não muda e não deixa de pulsar no peito. Meu pai é coração batendo forte feito amor que não acaba.

domingo, 7 de agosto de 2016

Brasil, pra mim

Fiquei com preguiça de fazer a minha, mas andei lendo algumas análises sobre a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos: opiniões que ora elogiavam, ora reclamavam. De um lado os que se preocupavam demais com a imprensa internacional, de outro os que sabem que festa nossa tem de ser boa é pra gente mesmo. Assim como a cidade, por exemplo, deve ser avaliada por quem vive nela diariamente, e não por quem visita, faz umas selfies e vai embora. Mas isso é outra história, que daria portanto nova crônica.

Um espetáculo, como foi o que vimos ali no Maracanã, impressiona pela beleza. Os ensaios e as coreografias, a estrutura e o projeto, tudo tem a capacidade de prender a atenção. Mas o que encanta, o que mexe com a gente cá dentro não tem a ver com a grandiosidade da pirotecnia, e sim com a miudeza da tradição que o pai me disse que é lanterna. Bem mais que o modernoso, como canta Moacyr Luz às segundas.

O que me encantou, o que mexeu comigo cá dentro foi Paulinho da Viola, com banquinho e violão, cantando o hino nacional, tão diferente dos que o entoam em manifestações juninas. Porque quando Paulinho cantou eu ouvi o Brasil que valoriza sua cultura popular; que se reinventa por meio do riso; que encontra espaço pro sagrado e pro profano; e que troca esta terra de doutor por uma terra que valoriza o sambista.

E nela eu vi Wilson das Neves lembrando a batucada na caixinha de fósforo, vi chama que não se apagou nem se apagará, vi águia sobrevoar Madureira, vi menino pegar manga na mangueira. Coisa fina, sinhá, que ficou ainda mais bonita com os passos do pequeno Thawan Lucas, que mostrou a elegância do samba aos oito anos de idade. Depois de assistir a isso, a gente concorda mais uma vez e sempre com a voz de Candeia afirmando que "vive melhor quem samba".

Vive melhor também quem cria alternativas pra adequar a cidade que temos à cidade que queremos, numa resistência que se assemelha às palmas dos batuqueiros da Festa da Penha quando foram proibidos de usar seus instrumentos musicais. A comoção de ver Wilson das Neves e Paulinho da Viola na cerimônia de abertura, sobretudo pelo que ambos representam, se parece com a que muita gente teve ao acompanhar o tour etílico da tocha.

Passando pelos bares de Copacabana e terminando no Sat’s pra reverenciar Agnaldo, garçom e churrasqueiro do bar, o povo cachaceiro reafirmou que meu Brasil é feito de gente assim. E é por esse Brasil que eu torço e choro e vivo.