domingo, 31 de julho de 2016

O justo e necessário ensino superior gratuito

Depois da abertura do impeachment no Congresso, com direito a pato amarelo, boneco inflável e bateção de panela, o que mais a gente vê é notícia de propostas inacreditáveis atualizando a timeline. Às ideias de aumentar o tempo de trabalho e de pôr fim à universalização do Sistema Único de Saúde (SUS) se soma agora a de acabar com o ensino superior público e gratuito. Isso porque o programa Ciência Sem Fronteiras, que possibilita o aprimoramento de estudantes e contribui para uma formação não só profissional mas também pessoal, já chegou ao fim na graduação.

No domingo passado, o jornal O Globo defendeu que a medida de acabar com o ensino superior público e gratuito seria essencial para a economia. Alegando ser essa a melhor forma para equilibrar as contas públicas, houve ainda a tentativa de argumentar no texto que o ensino superior gratuito é um "mecanismo de injustiça social, pois favorece apenas os ricos, que tiveram melhores condições educacionais para passarem no vestibular". Que os cursos privados de pré-vestibular oferecem grandes oportunidades de ingresso nas universidades é verdade, mas é também verdade que a aprovação no vestibular não é exclusividade de quem pode pagar os tais cursos.

Se analisarmos apenas a escrita do texto, encontramos o problema da restrição supostamente taxativa no termo "apenas". Não, não são apenas os ricos que garantem uma vaga na faculdade pública. E com isso identificamos outra problemática: a intenção do governo de retirar a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). É sobretudo nas aulas de redação que discutimos a produção do texto escrito, a capacidade de argumentar e de não generalizar nem ser equivocadamente taxativo ao desenvolver um assunto. A utilização do "apenas" da mesma maneira que foi usado no texto d’O Globo, por exemplo, não caberia em uma redação preocupada com a veracidade das informações.

Já no que diz respeito ao conteúdo da matéria, o jornal deixa clara a preferência pela exclusão de quem mais precisa desse ensino superior — que, sabemos, não são os ricos. O interesse em retirar oportunidades dos que já pouco têm é o principal objetivo por trás do discurso de buscar o equilíbrio econômico. Além disso, um governo associado ao corte de bolsas, como fez com noventa mil bolsas do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), não tem credibilidade alguma para garantir que, tornando as universidades privadas, poderá oferecer bolsas de estudo a todos aqueles que não puderem se comprometer com o pagamento de uma faculdade.

No mais, é evidente que a universidade pública vira pauta de um jornal comprometido com o interesse dos donos do poder — com exceção dos profissionais dignos que nele trabalham — quando passa a ser frequentada por pobre e por uma gente que, aos olhos da Casa Grande, continua sendo inferiorizada. O Brasil, no entanto, é feito de resistência e subversão. E a gente subverte o falacioso discurso econômico porque sabe que no fundo o que ele vergonhosamente reitera é o preconceito.

domingo, 10 de julho de 2016

Escola sem partido

Assisti anteontem ao Roda Viva que foi ao ar na segunda com Leandro Karnal. Confesso que fazia tempo que eu não via o programa, mas valeu a pena dedicar uma hora e meia do dia a ouvir o historiador. Sobretudo porque me fez lembrar meus últimos anos no Pedro II.

Foi no final do ensino médio que me dei conta da formação humana e política que havia adquirido no colégio. Campanhas, plenárias, greves, passeatas e aulas com reflexão, com diálogo, com apresentação de ideias. Nossa visão de mundo depende não só de nosso próprio ponto de vista, até porque, segundo Leonardo Boff em seu livro A águia e a galinha, “todo ponto de vista é a vista de um ponto”.

Eu recordei tudo isso quando Karnal afirmou que “o Escola Sem Partido é uma asneira sem tamanho, é uma bobagem conservadora, é coisa de gente que não é formada na área”. Os diálogos que presenciei no Pedro II e o posicionamento crítico de professores e alunos são fatores que, sem dúvida, precisam fazer parte da educação e da formação escolar dos discentes.

A subversão acontece a partir de reflexão, de conscientização. E nada tem a ver com imposição de ideologia, uma vez que ocorre justamente pra resistir à ordem silenciosa que foge de diálogo.

“Precisamos construir a luta contra o preconceito, contra a misoginia, contra a violência contra as mulheres, contra a violência do racismo”, comentou o historiador. Uma escola que não toma partido é omissa e não se compromete com essa luta.

Recentemente, estudantes do Colégio Pedro II de São Cristóvão fizeram uma intervenção em favor da diversidade. No momento em que lidamos com a tristeza de saber que o aluno Diego Vieira Machado da UFRJ vinha recebendo ameaças por ser gay e foi encontrado morto na universidade, iniciativas como a desses estudantes é um alento para permanecer resistindo e construindo a luta de que falou Leandro Karnal.

Em um mundo com tanto discurso de ódio, não se pode negligenciar uma educação que preze pela empatia.

domingo, 3 de julho de 2016

Do mal será queimada a semente

Ouvi Nelson Cavaquinho na voz de Clara Nunes cantando “a luz há de chegar aos corações, do mal será queimada a semente” quando, em menos de uma semana, Bolsonaro se tornou réu no Supremo Tribunal Federal por fazer apologia ao estupro e recebeu processo do Conselho de Ética por exaltar a tortura.

Num episódio em que afirmou que só não estupraria a ex-ministra de Direitos Humanos Maria do Rosário porque ela não merecia, o deputado mostrou — como já fez em tantos outros casos — sua ausência de valores e consequentemente sua incapacidade de usar a política como instrumento de luta por direitos. Bolsonaro também acabou sendo acusado por injúria, com queixa acolhida pelo STF.

Até que é bem coerente para os arautos da meritocracia que o congressista — aclamado por muitos como o presidente de 2018 — seja merecidamente acusado e julgado pelos crimes que comete e pelos absurdos que proclama.

Mas a voz de Clara Nunes se calou no instante em que li que uma faxineira foi demitida por ser mãe solteira. Afinal, como já vi compartilharem por aí nas redes sociais, “feio não é ser mãe solteira, feio é ser pai quando convém”. E é inacreditável que mesmo as mulheres, que precisam de disposição pra encarar todo dia o machismo, usem um discurso tão cheio de preconceito como justificativa pra demissão; como justificativa pra qualquer coisa, na verdade. Ao que tudo indica, a maldade ainda está longe de desaparecer.

Mais um exemplo disso é o espacamento de Luíza Brunet pelo ex-namorado, que a agrediu a ponto de quebrar quatro costelas da atriz. A coragem de denunciá-lo, por sua vez, faz a gente continuar querendo ter olhos pra ver a dignidade aparecer. Porque é muito fácil assumir a postura covarde e vergonhosa de agredir uma mulher e depois tratar a denúncia do crime como “versão distorcida”.

E isso fica ainda mais fácil quando se tem uma imprensa que atenua o caso; quando se tem uma delegacia que prefere não se meter muito em “briga de casal”; ou quando se tem um cidadão que pergunta o que a mulher fez para ter sido agredida.

Legitimar o estupro, o preconceito com a mãe solteira e a agressão à mulher é optar pelo lado mais perverso na história do bem e do mal. Para que a esperança da música Juízo Final não nos deixe, é preciso permanecer com a tentativa de queimar a semente do machismo que mata diariamente.