domingo, 26 de junho de 2016

Pois era noite de São João

Só fiquei triste quando o dia amanheceu pois era noite de São João. No Beco das Sardinhas, bandeirinhas coloridas enfeitavam o nosso olhar em direção ao céu. Luiz Gonzaga e Dominguinhos cantavam pra gente enquanto sorteavam o bingo. E as crianças, que nos mostram a todo momento a importância de sermos pequenos, corriam e pulavam e tentavam acertar a boca do palhaço.

 

Teve maçã do amor, hambúrguer de costela, quentão, cerveja artesanal e latão; teve coxinha de pernil, canjica, milho e quindim; teve também brigadeiro, porquinho de quimono, pastel e brownie. Teve comida popular e gourmet. Porque o Brasil que conheço e do qual faço parte é feito mesmo dessa mistura que o torna singular.

 

E meu Rio de Janeiro é feito de recordações das ruas onde passei. Com roda de coco e casamento com oração rastafari, diante da diversidade a gente sorri e sente vontade de também entrar na roda pra girar a saia. No meio da rua, a quadrilha mostra essa nossa ébria capacidade de fazer a festa ficar bonita.

 

Depois da dança das cadeiras, não podia faltar a corrida do saco, um, dois, três, valendo, e a gente quase cai, e continua levando a vida a sorrir, que é o que importa. Barraca do beijo, chapéu de palha e pescaria. Ouvi dizer que comeram o melhor hambúrguer da vida ali, no Arraiá da Rua da Valinha.

 

Olha pra rua, meu amor, vê como ela está linda. Entre uma e outra dança, entre uma e outra brincadeira, a alegria deixava o mês de junho multicor como o balão que some no céu. E depois de ver e viver tudo isso, voltei pra casa sabendo que as noites de São João no Beco das Sardinhas marcaram a alma encantadora do Rio.


domingo, 12 de junho de 2016

Nada em troca


Depois de ter visto O segredo dos seus olhos, um dos meus filmes favoritos, Ricardo Darín também se tornou um de meus atores preferidos.

Há poucos dias assisti a um filme em que sua brilhante atuação é percebida em gestos mínimos, em hesitações, em sorrisos forçados. Ele interpreta Julián, um homem diagnosticado com câncer terminal.

Quando a porta de sua casa abre pra receber o amigo que veio do Canadá, a expressão de Julián já demonstra a profundidade do filme. Truman revela inquietudes por meio do silêncio.

Apesar desse silêncio, Julián não é um homem que evita falar o que sente, diferentemente de Tomás. Sem hesitar em afirmar que o que importa mesmo são as relações que temos ao longo da vida, como a amizade entre os dois, ele ainda faz questão de dizer ao amigo o que este lhe ensinou. Tomás tenta mudar o assunto, por ser contido e meio sisudo, mas Julián insiste em dizer que aprendeu com ele que não devemos pedir nada em troca àqueles de quem verdadeiramente gostamos.

Julián, desejando alguma manifestação do amigo, pergunta o que Tomás havia aprendido com ele depois de tantos anos de convivência. E a resposta diz respeito à coragem: "Você sempre encarou tudo". De fato, surpreende a maneira racional como ele encara a morte, a ponto de ir a uma funenária consultar os planos oferecidos. É nesse momento, aliás, que se dá conta de sua insignificância: em caso de cremação, as cinzas cabem em uma caixa bem pequena.

Por ser um filme realista, as reações das pessoas podem não ser como esperamos. Quem tem dificuldade de expressar sentimentos não muda de uma hora pra outra, nem em uma situação extrema referente à morte de um amigo. Tomás, por exemplo, retorna de viagem sem conseguir dizer a Julián o quanto o acha incrível. A frieza incomoda, mas é real.

Com a agonia de saber que alguém está em seus últimos dias de vida, em Truman percebemos o tempo passar nos mínimos detalhes do dia a dia, como no taxímetro rodando ou na colher mexendo o café. Cada minuto ganha uma importância inimaginável.

Preocupado sobretudo em achar alguém minimamente confiável para adotar o cachorro nesses seus últimos dias ao lado dele, Julián faz o que pode  —  até mesmo o que a rigor não poderia  — para que não fique sozinho após sua partida. E emociona ao deixá-lo passar um dia na casa de uma possível família adotiva.

Embora Truman não apareça tanto nas cenas, longe de abordarem uma história como a de Marley & eu, faz todo sentido seu nome ser o título do filme. Além do mais, tempos depois das gravações, o cachorro que interpretou Truman faleceu e Darín chorou por uma semana. O que importa, afinal, são as relações que estabelecemos ao longo da vida.

Após quase duas horas de convívio com Tomás, dá pra gente também aprender que não vale a pena silenciar tanto o amor.

Assim que o filme terminou, desliguei a televisão e me lembrei de quando decidi tirar a máscara que usamos diariamente e dizer “eu te amo” àqueles que são importantes pra mim. A vida passa a ter leveza. E pra isso nem precisamos de uma data especial.

domingo, 5 de junho de 2016

Quase da família

As telas do cinema mostraram que a empregada doméstica e babá do filho dos patrões, apesar de ser quase da família, não pode deixar de saber qual é seu devido lugar na casa onde trabalha e, por extensão, sua representação simbólica na sociedade. "Que horas ela volta?" nos colocou frente à realidade classista que menospreza o estudo da filha da empregada em um colégio público e provoca indignação com o fato de ela passar no vestibular enquanto o filho dos patrões, instruído nos colégios mais caros, é eliminado do processo.

Além disso, o filme apresenta uma situação em que a empregada, embora compre um conjunto de xícaras com todo carinho para a patroa e embora seja bem tratada ao presenteá-la, é ordenada a não tirar as xícaras do armário porque não servem para receber os convidados da aniversariante. Em uma das cenas mais comoventes, a empregada volta com as xícaras para a cozinha e a gente percebe que não importa mesmo, nessas horas, que ela seja quase da família.

Vimos também em outro filme que patroas brancas desejavam que fossem construídos banheiros separados para uso de suas empregadas negras, alegando "questão de higiene". Segundo uma das patroas retratadas em "Histórias Cruzadas", a justificativa absurda é que "elas carregam doenças diferentes das nossas".

Sabemos, no entanto, que não é preciso recorrer a uma obra ficcional para ter dimensão da ideia veiculada por um uniforme branco. Há poucos dias, no Brasil, a proibição de uso do mesmo banheiro feminino foi defendida por uma "questão de educação". Foi o que disse uma das sócias do Country Clube do Rio sobre a placa que proíbe a entrada de babás no banheiro das sócias: "A proibição de entrar no banheiro não é para humilhar, é pela ordem para que não vire uma bagunça. Algumas babás não têm educação". Ou, ainda, por "questão de ordem e disciplina", como tenta argumentar outra sócia: "Não tenho preconceito, mas as babás não necessariamente são pessoas extremamente educadas. Infelizmente, nem todas as classes têm acesso à mesma educação. Elas não necessariamente vão puxar a descarga ou deixar o banheiro limpo. Não é nada contra as babás. É questão de ordem e disciplina".

Curioso é que as pessoas que vergonhosamente reclamam da falta de educação das babás são as mesmas que sequer dirigem um "bom dia" a elas. A questão da educação, nesse caso, é mais uma desculpa para tentar legitimar o preconceito. O que incomoda, afinal, não é a falta de educação — que independe de classe social —, é dividir o mesmo espaço com quem se deu conta de que seu lugar na sociedade não deve ser ordenado por ninguém que se julgue superior aos demais.