sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A literatura brasileira no Carnaval

O desfile da Unidos de Padre Miguel neste ano, belíssima homenagem a Ariano Suassuna – escritor falecido em julho do ano passado –, foi mais um dos tantos exemplos da literatura brasileira no Carnaval. Essa relação entre a literatura e as escolas de samba passou a ser feita com a exigência de temáticas nacionais nos enredos, que ocorreu a partir da década de quarenta e proporcionou, desde a época, um diálogo importante entre a cultura letrada e a cultura popular.

Diante de um cenário histórico que, de certa maneira, opõe o âmbito das letras nacionais ao espaço popular, o Carnaval, festa em que o barão da ralé se consagra como rei profano e divino, foi capaz de mesclar a rua e a Academia e mandar às favas os títulos que para muitos trazem algum prestígio. É na folia de Momo, portanto, que os doutores abandonam suas máscaras e dão voz a Aldir Blanc e João Bosco: “custei a compreender que a fantasia é um troço que o cara tira no carnaval e usa nos outros dias por toda a vida”.

Nesse sentido, a ponte entre o samba de enredo e a obra literária, quebrando o contraste popular x erudito, une aquilo que para muitos parece não possuir vínculo. A letra da música, em todo caso, obviamente não explica o aspecto literário – e, por isso mesmo, singular – da obra, mas sintetiza o que ela aprofunda por meio de um estilo também próprio. Assim, trabalhar com esses diferentes gêneros – principalmente em sala de aula, se pensarmos pelo viés educacional – pode ser altamente enriquecedor.

Dos diversos exemplos literários que foram temas dos desfiles carnavalescos no Rio de Janeiro, destacam-se alguns: em 1952, a Mangueira homenageou “um poeta de sublime inspiração”, Gonçalves Dias; a Portela, em 1966, foi campeã com o samba de Paulinho da Viola, o único de sua carreira, sobre Memórias de um sargento de milícias, o romance de Manuel Antônio de Almeida a respeito da figura do malandro e do Rio do século XIX; em 1975, a Águia se inspirou em Mário de Andrade para levar Macunaíma à Avenida, enquanto a verde-e-rosa poetizou o Carnaval com Jorge de Lima; a Em Cima da Hora ficou sendo responsável por um dos melhores sambas da história, em 1976, com enredo sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, mostrando que o “sertanejo é forte, supera a miséria sem fim”; e, pra terminar, vale registrar que Ariano Suassuna, o Imperador da Pedra do Reino, já havia sido homenageado pelo Império Serrano em 2002.

Muitos outros enredos foram criados com base na literatura. Vitoriosos ou não – a Unidos de Padre Miguel, por exemplo, deveria ter sido campeã com Suassuna mas não foi –, formam, sem dúvida, uma contribuição histórica e cultural de grande valor para o Brasil. A análise dos enredos e seus sambas, dessa forma, faz com que o elo traçado entre o carnaval e a literatura possibilite a quebra de uma barreira existente entre as manifestações populares e as literárias.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Vitória da ilusão

Tive superpoderes na Gávea, cantei de olhos fechados no Largo de São Francisco, ganhei a viagem indo à Lapa, li destinos na Praça XV, andei pela Tijuca, conheci marchinha nova no Andaraí. Tem gente que reveste a cidade de São Sebastião com micareta e eu fujo disso porque dói quando eu Rio. Vitória da ilusão. Armei outro Rio de Janeiro pra recriar a criação.

No meu bloco não há corda; na minha escola ninguém pega fogo. O meu Carnaval é da rua e da bagunça, da cerveja e da gargalhada, do deboche e da emoção; é da comoção com a fantasia infantil, da saudade do tempo não vivido, do asfalto sujo de confete, do samba, da marchinha, da música brasileira, da senhora que dá a mão pra brincar no Carioca da Gema. E é também da melancolia, da dor que pinta e borda a máscara negra. Bandeira branca, amor.

Minha manhã de Carnaval nasce com a voz de Elizeth Cardoso. O sol desponta e a gente logo lamenta por Aurora não ser sincera. Nas noites das escolas de samba, ninguém dorme, e o lamento, dessa vez, é pelo monopólio da televisão, porque a concepção de Carnaval como cultura não existe onde deveria. Veio o esquenta da bateria e o aviso de que a hora havia chegado. A Vila Isabel desfilou bem e sorriu de novo.

Ficou fantasiada de Dolores Duran a noite de terça-feira. Fim de caso. Senti falta de tocar tamborim, de batucar o pandeiro, da companhia de um outro sábado de folia. Mas Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves já disseram que não vim pra ficar. Esperei com sossego a quarta-feira de cinzas, dia de apuração e apuros. A pulsação acelerada indica que o folião apaixonado, num misto de esperança e memória, acaba transformando a vitória da ilusão em ilusão da vitória.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Não tem jeito

Saí da Barão de Drummond pra ver um samba nascer. Chapéu branco, bermuda branca, sapato branco e a camisa da Vila Isabel ao meu lado. Alguém que também andava pelas calçadas do Boulevard conversava com dois amigos no banco do ônibus. Me lembrei do último campeonato, da minha voz quase-não-voz de tanto grito, da alegria que a lágrima manifesta. Eles falaram de Martinho e do bairro de Bento Ribeiro. 

Eu, feito criança vidrada no preferido brinquedo, vi e ouvi com admiração. "Tem que escrever!", disse um deles, tirando do bolso a caneta e procurando qualquer coisa que servisse como papel. Era mais uma letra azul-e-branca nascendo. A gente, que escuta Nelson Sargento cantar, já sabe que, mesmo agonizando, o samba não morre. Havia até instruções de escrita de quem já tinha mais intimidade com a coisa: não põe três pontos, samba não é assim, samba é direto. Anotado.

Fui parar de novo na 28, como de costume. Alas e compositores, baianas e carros de som, festa no Petisco, cerveja gelada no Costa e rua cheia. Desapeguei dos meus por um tempo e vi tudo só. Surdo, cuíca e tamborim à minha frente. Fiquei dentro da bateria com a canção e o coração, can-ção, co-ra-ção. Dá vontade de voltar sempre – é a emoção que puxa, que decide e que mostra o porquê da torcida por uma escola. Paixão é assim mesmo, a gente não quer nem saber, só sabe que é.

Não é à toa que o Moacyr Luz canta "Vila Isabel, meu Deus, como tu és de chorar de emoção" no início de um dos meus sambas preferidos. E eu já espero, com a ansiedade peculiar dos desesperados, o momento de ver a azul-e-branco entrar na Avenida, de novo sorrindo, deixando no ar a mais bela sinfonia. Martinho, em seu último show, falou sobre vitória e o povo de Noel, comovido, encheu de esperança o peito. Sou da Vila, não tem jeito.