terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O eco dos três apitos

Meu pai contou-me que, quando chegava dezembro, todos os moradores da nossa vila esperavam, ansiosos, a chegada de Noel. Eu nunca o tinha visto, mas sabia, porque era transmitido de boca em boca, que ele alegrava os caminhos a cada esquina que passava, ficava na rua por toda a noite e só ia embora quando o galo cantava.

Eu, menino, queria ser como ele, mas meu pai dizia que outro Noel não podia existir, não; que só ele conhecia a nossa vila e traduzia tão bem a nossa cidade, e que já era demasiado tarde para que me contasse as peripécias do meu anti-herói. Eu sempre dormia com a música cadenciada que vinha da antiga vitrola do meu quarto e, ao acordar com o canto do galo, lembrava que a essa hora Noel estaria deixando as ruas, andando calado pelo Boulevard.

Meus amigos falavam-me como ficavam surpresos com os presentes do Noel que os visitava sem que soubessem, mas o meu Noel só carregava consigo um violão. E eu desconfiava que era mais feliz do que meus pequenos companheiros de pião e bola de gude, porque meu presente era ouvir as canções que meu pai ouvia comigo. Eu bem sabia que muitos daqueles presentes não durariam muito tempo e eles logo quereriam outro, enquanto nada havia de fugaz no canto sereno que, ao ser reproduzido na vitrola, fazia-me sorrir junto de meu pai.

Naquela época, os homens estavam ávidos por modernidade, querendo imitar gente de fora do nosso povoado - concepção que permeia várias mentes até hoje. Com isso, muitos prezavam pelo afastamento do morro e da cidade, acreditando que modernização não tinha a ver com diversidade e humanidade. Mas Noel não era assim, não. O que ele compunha era sempre uma mistura, uma fusão da nossa vila com o morro que também era nosso. Ele prezava por samba, prontidão e outras bossas... Coisas nossas.

Introduzindo o Pierrô, a Colombina e o Arlequim no botequim, o Carnaval de Noel era diferente; não tinha falso malandro nem era ordenado por aquela gente dispensável que se acha no direito de ser chamada de doutor. Ele fazia o confronto entre o malandro pronto e o otário que nasceu pra milionário, e meu pai tinha razão ao dizer que o sambista da Vila era quem tinha razão... A razão dá-se a quem tem.

Noel deixou saudade, mas não deixou mudo um violão. Como diz o samba de 1994 da azul e branca, os três apitos cantados por ele ainda ecoam pela Vila Isabel. Suas letras, deboches e piadas soam como feitios de oração a quem, assim como ele, não vive escravo dessa gente que cultiva hipocrisia. Os versos que meu pai mostrou-me, de Zé Ramos sobre Noel Rosa, demonstra essa falta que ele passou a fazer quando se encantou: "Da cidade alta da Mangueira/ Avisto a Vila e sinto saudades de alguém..."

Mas aprendi com Drummond, o poeta de Itabira, que "não há falta na ausência", e passei, como ele, a não mais lastimar a falta. E é assim que eu entendo Noel, profundamente vivo nos corações suburbanos: ausente de São Sebastião do Rio de Janeiro e de Vila Isabel, a sua aldeia, faz-se presente nos botecos e nas esquinas que são palcos de inspiração e nos sorrisos das damas de cabarés que inspiram uma composição.

Por tudo isso acredito que deveria ser feriado no dia 11 de dezembro e que o Noel esperado e venerado desse mês deveria ser o de Medeiros Rosa. Assim, como se fosse o último desejo de meu pai, registro que, quando estiver com meu moleque no colo, ouviremos Noel, para que eu possa vê-lo sorrir e aprender a cantar a brasilidade do poeta da Vila e os encantamentos do nosso Rio de Janeiro.


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