domingo, 9 de janeiro de 2022

A boneca


"A filha perdida" faz uma filha admirar ainda mais sua mãe - foi o que senti assistindo ao filme. Sendo uma mulher de 29 anos, sem filhos, me coloquei no lugar das personagens mulheres e entendi todos os seus conflitos, o que me fez pensar no tanto que minha mãe já encarou, já suportou, já abriu mão por minha causa. 

A narrativa, baseada no livro homônimo de Elena Ferrante, conta a história de Leda, que tem duas filhas, e de Nina, que tem uma. Em uma viagem, ambas se encontram - a segunda com a filha, o marido (que chega depois), a família; a primeira, por sua vez, sozinha, sem as filhas, sem marido, sem família.

Ao longo da trama, conhecemos o passado de Leda, professora universitária que na juventude queria cuidar de sua carreira, de seus desejos e de seu sossego, enquanto as filhas, pequenas, queriam brincar com ela, faziam bagunça, gritavam, riam, brigavam, respondiam. O pai não ficava sobrecarregado como a mãe; diferentemente desta, tinha a possibilidade de colocar sua vida profissional em primeiro lugar. Até que Leda sai de casa por três anos, um período, como confessa para Nina, maravilhoso em sua vida. Nesse instante do diálogo entre as duas, o olhar de Nina para ela é de compreensão, de uma ponta de inveja por querer fazer o mesmo.

As mães desejam também fugir. As mulheres desejam também se dedicar à carreira. As mulheres desejam, sentem tesão, querem um tempo pra se masturbar com tranquilidade, virar para o lado e dormir. Muitas são impedidas, no entanto: é preciso brincar, chamar a atenção da filha, fazer comida para ela, aturar uma puxada forte de cabelo, uma mãozinha pequena cutucando suas costas, sua barriga, seu rosto, seu olho, sua perna. Enquanto isso, o pai toma cerveja na beira da praia conversando com os amigos. Quando a mãe sai de perto, exausta por discutir com o pai, por estar o tempo todo tomando conta da criança, por suportar um peso enorme nos ombros, a filha some. O pai não vê, distraído com a conversa, de costas para a menina. Lá está na areia, sozinha, a boneca com a qual ela brincava. 

E vale recordar uma cena que precisa ser destacada: a boneca caída no chão da casa, com uma lesma saindo de dentro de sua boca, uma imagem que causa asco. É a cena que, para mim, resume o filme. Há nela a boneca, esse brinquedo tão representativo não só na vida real, mas sobretudo no filme; e há um bicho que sai de dentro da boneca, fazendo com que o sentimento de ternura vinculado ao brinquedo seja substituído, ao menos nesse momento, pelo de repulsa, algo aparentemente incomum. 

E me parece ser assim, por mais duro que seja, a maternidade. Enquanto a boneca representa tudo o que há de positivo em ser mãe - o amor, o carinho, o aprendizado, a doçura, o encanto -, a lesma se relaciona ao que há de negativo nisso - o cansaço, a exaustão, a falta de tempo para si mesma, a impossibilidade de chegar a outros sonhos. Antes de o bicho sair da boca da boneca, sai dali uma lama, uma gosma, o que causa estranhamento e traduz o significado de ser mãe: muitas vezes, a mulher fica de saco cheio, sem disposição. A meu ver, a gosma suja que sai da boca da boneca, mais de uma vez, tem a ver com esses momentos de impaciência, que vão se somando ao longo do tempo, e a lesma diz respeito à coragem (que também é condenação) de ir embora, de fugir, de se libertar.

Em suma, "A filha perdida" nos mostra que os sentimentos de ternura e delicadeza da maternidade por vezes podem dar lugar ao de impaciência e repulsa. Afinal, assim como ocorre com o pai, a mãe quer atender a um telefonema importante e poder não interromper a ligação.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Páginas viradas


Não venho de uma família leitora, que possuía estante de livros em casa e me indicava livros para ler na infância. Meus pais, que têm outra formação, outro entendimento de mundo, trabalhavam muito para me manter na escola - fato que, além de tantos outros, me faz ser eternamente grata aos dois. E meu universo de leitura foi se construindo no ambiente escolar, ainda que nem fossem muitos os livros lidos também no colégio. Quando pequena, causava estranhamento em casa por pedir livros no Natal, ainda mais porque eu dizia não gostar daqueles com imagens, queria livros grandes, só com letras. Fui uma criança que não ligava para as histórias em quadrinhos, embora adorasse o Almanacão de Férias da Turma da Mônica, que me deixava horas colorindo desenhos. 

Lembro bem os dois livros que marcaram minha infância: "As cores de Laurinha", que vi um dia com a minha prima, era uma leitura exigida pela escola dela, e diante do meu interesse ela me deu o livro de presente, disse que já tinha lido e que não precisaria mais dele; e "O menino maluquinho", que ganhei de um primo no dia em que a família estava toda reunida na casa do pai dele - em pouco tempo eu interrompia a conversa dos adultos para dizer que o livro era muito legal. "Você já leu o livro todo? Mas você acabou de ganhar!", me disseram os adultos, espantados.

Só fui ler mais, mesmo, quando pude passar a comprar meus livros, a montar minhas estantes, a trilhar minhas metas de leitura. Desde sempre entendi que meu mundo é feito de letras, livros, palavras, papéis. São elas/eles que me ensinam, me acalmam, me intrigam, me orientam. Não à toa me formei em Letras, me tornei professora, fiz mestrado em Literatura e comecei o doutorado também em Literatura. Minha vida é virar a página.