Por conta dos sentimentos que despertam, há livros que te obrigam a interromper a leitura brevemente para recuperar o fôlego e continuar. Assim foi para mim com Sul da fronteira, oeste do sol, de Haruki Murakami. Inédito no Brasil, o romance chegou pela TAG Curadoria, cuja assinatura eu fiz exclusivamente em julho, para recebê-lo. Quando comecei a ler, deixei de lado outras tarefas para me dedicar às 217 páginas no mesmo dia e só fechei o livro quando concluí a leitura, pouco antes das 2h da madrugada.
Nessa obra, o lugar-comum que poderia ser a história de um amor iniciado na juventude, interrompido pelas circunstâncias da vida e reencontrado anos e anos depois não resvala no clichê romântico. A narrativa analisa uma dessas histórias em particular para, assim, lidar com a universalidade do tema. E faz isso a partir do modo mais bonito: resgatando o ineditismo do toque, ainda na fase da pré-adolescência, e explorando a descoberta do que é se sentir bem ao lado de alguém que estabelece com a gente uma conexão única.
É assim que basicamente começa Sul da fronteira, oeste do sol, com Hajime narrando sua convivência com Shimamoto, uma amiga de escola. A delicadeza dessa narração, que me prendeu já no primeiro capítulo, é naturalmente instigante, como no momento em que as mãos dos dois se tocam: “Era só a mão pequena e morna de uma menina de doze anos. Mas aqueles cinco dedos e aquela palma continham, como uma amostra, tudo o que eu queria saber e tudo o que precisava saber aos doze anos. Ao me dar a mão, ela me ensinou: um lugar assim existe de verdade, no mundo real. Durante aqueles dez segundos eu me senti um pequeno pássaro, perfeito. Voando pelos ares, em meio ao vento. Enxerguei, do alto, uma paisagem distante. Era longe demais para ver exatamente o que havia lá, mas vi que ela existia. E que um dia eu chegaria lá. Essa descoberta me deixou sem fôlego e me agitou o peito.”
Ao longo das páginas, o narrador vai revelando o que lhe aconteceu com a passagem do tempo – a primeira relação sexual, a traição a uma namorada, as fases que experimentou e que agora relata conscientemente: “Dormi com algumas delas, mas isso não me causava nenhuma emoção. Essa foi a terceira etapa da minha vida. Esses doze anos, desde quando entrei na faculdade até chegar aos trinta anos, os quais passei em meio a decepção, solidão e silêncio. Durante todo esse tempo, não me aproximei realmente de ninguém. Para mim, foram como anos congelados.” Enquanto Hajime fala de suas experiências e de seus sentimentos, como se estivesse em um monólogo interior, nós, leitores, inevitavelmente estabelecemos uma comparação, analisando em que medida nossa vida se aproxima ou se afasta da do protagonista. Ao permitir que o leitor encare a si mesmo, seja lembrando, refletindo ou notando determinado sentido em um antigo episódio que vivenciou, a literatura – essa arte que humaniza, esse conhecimento que afaga –, sem ter qualquer dimensão da exata profundidade disso, cumpre um papel fundamental.
Em verdade, o que mais me comoveu na leitura de Murakami foi, além de passagens lindas como a do motivo que leva Shimamoto a um rio, a capacidade de uma escrita nos levar a uma grande identificação com os sentimentos dos personagens. Isso é o que também nos faz refletir sobre um ponto crucial, que no livro pode até mesmo passar despercebido: a esposa de Hajime, que é comumente silenciada – fator que desperta atenção para o machismo e para o tratamento geralmente dado à mulher na sociedade. Sobre isso, vale repetir o que ressalta Rita Kohl no posfácio da obra: “O desejo do narrador de abandonar a família em busca de um amor irresistível deixa de ser uma questão pessoal deste personagem para refletir um padrão incansavelmente repetido, em uma sociedade em que pais têm muito mais liberdade, tempo e espaço para encontrar amores irresistíveis e considerar largar tudo.”
Nesse sentido, Sul da fronteira, oeste do sol é uma obra que nos faz criar expectativas, que encanta pelo que tem de delicado, que angustia pelo envolvimento empático com o narrador e com as mulheres que aparecem na narrativa e que, sobretudo, nos faz pensar. E nos faz pensar não só na vida daqueles personagens, mas em nossas próprias experiências, de modo que a gente entra em contato repentinamente com o que já sentimos em algum momento. Ainda que minha interpretação possa ser bem particular, acredito que a leitura desse romance de Murakami dificilmente seja indiferente para alguém. De uma ou outra maneira, quem se dispõe a ler a obra será emocionalmente impactado.
Publicado originalmente no Além de Machado.

