quinta-feira, 30 de julho de 2020

Um dia inteiro com Haruki Murakami


Por conta dos sentimentos que despertam, há livros que te obrigam a interromper a leitura brevemente para recuperar o fôlego e continuar. Assim foi para mim com Sul da fronteira, oeste do sol, de Haruki Murakami. Inédito no Brasil, o romance chegou pela TAG Curadoria, cuja assinatura eu fiz exclusivamente em julho, para recebê-lo. Quando comecei a ler, deixei de lado outras tarefas para me dedicar às 217 páginas no mesmo dia e só fechei o livro quando concluí a leitura, pouco antes das 2h da madrugada.

Nessa obra, o lugar-comum que poderia ser a história de um amor iniciado na juventude, interrompido pelas circunstâncias da vida e reencontrado anos e anos depois não resvala no clichê romântico. A narrativa analisa uma dessas histórias em particular para, assim, lidar com a universalidade do tema. E faz isso a partir do modo mais bonito: resgatando o ineditismo do toque, ainda na fase da pré-adolescência, e explorando a descoberta do que é se sentir bem ao lado de alguém que estabelece com a gente uma conexão única.

É assim que basicamente começa Sul da fronteira, oeste do sol, com Hajime narrando sua convivência com Shimamoto, uma amiga de escola. A delicadeza dessa narração, que me prendeu já no primeiro capítulo, é naturalmente instigante, como no momento em que as mãos dos dois se tocam: “Era só a mão pequena e morna de uma menina de doze anos. Mas aqueles cinco dedos e aquela palma continham, como uma amostra, tudo o que eu queria saber e tudo o que precisava saber aos doze anos. Ao me dar a mão, ela me ensinou: um lugar assim existe de verdade, no mundo real. Durante aqueles dez segundos eu me senti um pequeno pássaro, perfeito. Voando pelos ares, em meio ao vento. Enxerguei, do alto, uma paisagem distante. Era longe demais para ver exatamente o que havia lá, mas vi que ela existia. E que um dia eu chegaria lá. Essa descoberta me deixou sem fôlego e me agitou o peito.”

Ao longo das páginas, o narrador vai revelando o que lhe aconteceu com a passagem do tempo – a primeira relação sexual, a traição a uma namorada, as fases que experimentou e que agora relata conscientemente: “Dormi com algumas delas, mas isso não me causava nenhuma emoção. Essa foi a terceira etapa da minha vida. Esses doze anos, desde quando entrei na faculdade até chegar aos trinta anos, os quais passei em meio a decepção, solidão e silêncio. Durante todo esse tempo, não me aproximei realmente de ninguém. Para mim, foram como anos congelados.” Enquanto Hajime fala de suas experiências e de seus sentimentos, como se estivesse em um monólogo interior, nós, leitores, inevitavelmente estabelecemos uma comparação, analisando em que medida nossa vida se aproxima ou se afasta da do protagonista. Ao permitir que o leitor encare a si mesmo, seja lembrando, refletindo ou notando determinado sentido em um antigo episódio que vivenciou, a literatura – essa arte que humaniza, esse conhecimento que afaga –, sem ter qualquer dimensão da exata profundidade disso, cumpre um papel fundamental.

Em verdade, o que mais me comoveu na leitura de Murakami foi, além de passagens lindas como a do motivo que leva Shimamoto a um rio, a capacidade de uma escrita nos levar a uma grande identificação com os sentimentos dos personagens. Isso é o que também nos faz refletir sobre um ponto crucial, que no livro pode até mesmo passar despercebido: a esposa de Hajime, que é comumente silenciada – fator que desperta atenção para o machismo e para o tratamento geralmente dado à mulher na sociedade. Sobre isso, vale repetir o que ressalta Rita Kohl no posfácio da obra: “O desejo do narrador de abandonar a família em busca de um amor irresistível deixa de ser uma questão pessoal deste personagem para refletir um padrão incansavelmente repetido, em uma sociedade em que pais têm muito mais liberdade, tempo e espaço para encontrar amores irresistíveis e considerar largar tudo.”

Nesse sentido, Sul da fronteira, oeste do sol é uma obra que nos faz criar expectativas, que encanta pelo que tem de delicado, que angustia pelo envolvimento empático com o narrador e com as mulheres que aparecem na narrativa e que, sobretudo, nos faz pensar. E nos faz pensar não só na vida daqueles personagens, mas em nossas próprias experiências, de modo que a gente entra em contato repentinamente com o que já sentimos em algum momento. Ainda que minha interpretação possa ser bem particular, acredito que a leitura desse romance de Murakami dificilmente seja indiferente para alguém. De uma ou outra maneira, quem se dispõe a ler a obra será emocionalmente impactado.

Publicado originalmente no Além de Machado.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Narrativas que não contam a mesma história


Eu conheci Ailton Krenak, líder indígena e importante pensador brasileiro, quando vi o documentário Guerras do Brasil.doc na Netflix. Há pouco tempo, li Ideias para adiar o fim do mundo, um livro fundamental que reúne, de modo adaptado, duas palestras suas e uma entrevista realizadas entre os anos de 2017 e 2019 em Portugal. Ao longo das páginas, são vários os trechos que nos convidam a pensar. Sublinhei muitas partes que, ao serem relidas, reforçam a necessária inversão de uma lógica social excludente, feita para anular narrativas: "Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade". Sobre isso, o autor questiona: "Por que essa narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?"

Com esses questionamentos ecoando, fui atrás de narrativas que não me contassem a mesma história, e então cheguei a Nós: uma antologia de literatura brasileira, organizada e ilustrada por Mauricio Negro. Nela há dez contos escritos por indígenas, cada um relacionado a um determinado povo. Assim, conhecemos histórias dos mebengôkré kayapó, dos saterê-mawé, dos maraguá, dos pirá-tapuya waíkhana, dos balatiponé umutina, dos taurepang, dos umuko masá desana, dos guarani mbyá, dos krenak e, por fim, dos kurâ-bakairi. As ilustrações com cores predominantemente avermelhadas, dispostas sempre antes de cada história, são lindas e parecem dar ainda mais vida ao texto, uma vez que as imagens proporcionam maior imersão do leitor no espaço das narrativas.

Por ser publicado pela Companhia das Letrinhas, temos a princípio a ideia de que se trata de um livro voltado para o público infanto-juvenil, mas, na verdade, a obra tem grande relevância para os adultos também, sendo interessantíssima, inclusive, para aqueles que desejam iniciar ou aprofundar o contato com a literatura indígena. Além disso, o fato de ser uma edição da Companhia das Letrinhas talvez seja o que garanta um caráter didático ao livro, notado pelas palavras que estão destacadas no texto e reunidas em um vocabulário, ao final de cada história, com a tradução para o português.

Todas as dez narrativas condensam as visões de mundo não dos exploradores, mas dos explorados; não dos dominadores, mas dos dominados. Por isso não se tratam de narrativas globalizantes e por isso estão também longe de contar para a gente a mesma história, oferecendo novidades, conhecimentos, encantamentos e, sem dúvida, a beleza expressa na maneira de contar e no conteúdo do que se conta. Começando pela narrativa a respeito de um amor aparentemente impossível, a antologia passa pela origem do açaí; pela perspectiva contrária à sociedade patriarcal, apresentando um modelo social em que impera a autonomia da mulher ("a moça iria escolher um deles, ninguém sabia qual – pois antigamente era assim que os Maraguá se casavam –, para ser seu marido"; "para fazer a vontade da esposa, o marido a deixou ir sozinha"); pela relação entre os animais; pela descoberta do fogo; e, entre tantas outras temáticas, passa, sobretudo, pela valorização dos elementos naturais, a partir da compreensão do respeito à natureza: "Na natureza tudo é indissociável. Uma árvore é um ser humano."

Como não poderia ser diferente, a leitura nos mostra, na figura de um velho sábio que reúne as crianças para lhes contar algo, a importância da memória e da ancestralidade: "Gravem na memória esta história sagrada. Porque um dia serão vocês a contar para os seus filhos. E depois, seus filhos contarão para os seus netos. E a história vai vingar de geração em geração, porque é parte do nosso corpo material e espiritual." Essa ligação de gerações é o que move a cultura indígena, sendo a força que sempre permitiu que esses povos resistissem e continuem resistindo num país que historicamente impulsiona seu aniquilamento.

Curiosamente, como Ailton Krenak afirma e como as narrativas de Nós: uma antologia de literatura indígena ratificam, a possibilidade de adiar o fim do mundo, de lidar com ele de forma verdadeiramente humana e respeitosa, depende muito da nossa disposição de enxergá-lo como os indígenas enxergam. Para isso, é preciso ler e ouvir essas narrativas que nos contam outras histórias, que nos trazem novas perspectivas e que nos auxiliam a interpretar o mundo de maneira diferente. Afinal, como disse Krenak, "tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa".

Publicado originalmente no Além de Machado.