quinta-feira, 25 de junho de 2020

A trajetória e os efeitos da crítica literária brasileira


Zezé cometeu suicídio ao final da penúltima apresentação de sua peça "Os desesperados", supostamente por causa da crítica negativa publicada no jornal O Diário. João Fortes, autor da crítica, também se matou em virtude dos desdobramentos do texto, já que acabou se tornando indesejado no seu ofício, julgado pela opinião pública como responsável pela morte do diretor e ator. É esse o assunto do conto "O homem-mulher II", de Sérgio Sant’Anna, uma narrativa que aborda os possíveis efeitos da crítica.

A leitura de "O homem-mulher II" me fez recordar uma história contada por José Castello, que vasta experiência tem com o jornalismo literário, em uma crônica intitulada "Um abraço em Moacyr Scliar", disponível no Jornal Rascunho. Nela, relata o que aconteceu depois de ter publicado uma crítica negativa sobre o livro Sonhos Tropicais. Após viver a tensão de não saber o que esperar do autor ao tornar públicas suas impressões, José Castello comenta que Scliar revelou ter ficado furioso e decepcionado, a ponto de pensar em reagir com uma ligação por telefone.

No entanto, eis o comovente desfecho da história: "Aos poucos, contudo, a dor abrandou e, me disse Scliar já com um esboço de sorriso, ele conseguiu enfim pensar. Não adoçou as palavras: 'Quero lhe dizer que você tem toda razão no que escreveu’. Abriu, então, um sorriso vasto e longo, de alívio, mas também de gratidão. Enfim, continuou: 'Depois que a raiva passou e que controlei a vaidade, consegui enfim aceitar o que você me dizia'. Nos dias seguintes, refletiu sobre seu caminho literário, lutou para se observar desde fora. Quanto a mim, estava imobilizado. Cedesse à vaidade, e passaria a acreditar, enfim, que era um 'grande crítico'. Quanta tolice! Minha resenha era não só pequena, mas despretensiosa. Limitei-me a esboçar uma impressão muito breve. Forte era Scliar que, machucado por minhas palavras, soube, ainda assim, lhes emprestar uma grandeza que não tinham."

Diante desses dois episódios – um proveniente da ficção e outro da realidade –, lembrei também que em 1865, no texto "O ideal do crítico", Machado de Assis indicou como deveria ser a atuação de um crítico verdadeiramente comprometido com os caminhos para a formação de uma grande literatura brasileira. Entretanto, pensando mais especificamente na trajetória da crítica literária, recorri a um livro fundamental na estante: Papéis colados, da Flora Süssekind. No artigo "Rodapés, tratados e ensaios", que abre o livro abordando a formação da crítica brasileira moderna, a autora comenta a tensão percebida na década de 1940 entre dois modelos de crítico: o "homem de letras", que publica em jornal, e o "crítico universitário", de formação acadêmica e com publicações em livro. Exemplo disso, como lembra Flora Süssekind, é o embate entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins, este representando o primeiro modelo de crítico e aquele, o segundo.

Ainda de acordo com o artigo, esse conflito entre o crítico de rodapé, leitor não especializado em literatura, e o crítico formado pelas faculdades de Filosofia do Rio de Janeiro (a Letras da UFRJ era um departamento, e só em 1968 se tornou independente, tendo Afrânio Coutinho como diretor), por sua vez interessado na especialização proporcionada pela pesquisa acadêmica, fez com que o crítico universitário ganhasse espaço. Desse modo, o crítico-cronista perdeu um pouco do prestígio que tinha – passado confirmado pelo fato de a obra Sagarana ser muito procurada nas livrarias após a publicação de rodapé feita por Álvaro Lins –, na medida em que surgia a figura do crítico-professor, moldado pela universidade.

Por outro lado, fatores como o interesse do mercado editorial, a demanda da indústria cultural e o tipo de linguagem do texto veiculado em jornal ocasionavam o distanciamento desse crítico. A crítica universitária, caracterizada por uma linguagem profundamente acadêmica e pela produção de um texto mais argumentativo, se torna incompreensível e/ou chata para a lógica jornalística e desinteressante para um mercado editorial que se baseia no consumo do livro, e não propriamente na análise literária, aspectos que posteriormente causam a redução da atuação desse modelo de crítico no jornal. Com o acesso à imprensa reduzido, a circulação da pesquisa universitária praticamente se limita ao próprio meio, e é assim que aparece na década de 1970 o terceiro modelo de crítico, que é o teórico – a exemplo de Luiz Costa Lima e Haroldo de Campos.

Todo esse conflito esmiuçado por Flora Süssekind acerca do crítico especializado e do não-especializado, resgatando o debate sobre quem teria (mais) autoridade para falar da literatura, me fez voltar ao dia em que José Castello foi à Faculdade de Letras da UFRJ, em evento do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, há cinco anos. Para mim, que estava no primeiro ano do mestrado, esse encontro – entre a imprensa e a universidade – foi incrível. O Prosa & Verso, do qual Castello era colunista, tinha acabado de ser extinto do jornal O Globo, e todos sentíamos por isso. Naquele momento, sabíamos que o crítico de rodapé, o crítico universitário e o crítico-teórico, cada um com suas especificidades de trabalho com o texto literário, partilhavam a mesma frustração: estarmos imersos em uma sociedade que não valoriza a literatura e, por extensão, o diálogo, a reflexão, o conhecimento.

Hoje em dia, os suplementos literários, com destaque para o crescimento no meio digital, constituem uma essencial ferramenta de resistência. Assim como Antonio Candido defendeu, o direto à literatura é um direito humano: "Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidade e em todos os níveis é um direito inalienável". Essa constante busca – entendida como luta e movida por paixão à leitura – por fazer da literatura um direito inalienável sem dúvida une o crítico de rodapé, o crítico-professor, o crítico-teórico e o leitor comum, que é fundamental para a existência de qualquer texto.

Publicado originalmente no Além de Machado.

domingo, 21 de junho de 2020

Um presente no aniversário de Machado de Assis


Pouco antes do dia dos seus 181 anos, Machado de Assis ganhou um presente: a tradução para o inglês de Memórias póstumas de Brás Cubas, feita por Flora Thomson-DeVeaux em um trabalho de quase cinco anos de duração, que esgotou no mesmo dia em que foi lançada, no início de junho. Na verdade, parece que seus leitores é que ganharam um presente. Quando começou a publicar em jornais, no ano de 1859, Machado apontou em “O ideal do crítico” o caminho para que o Brasil tivesse uma grande literatura. Agora, o sucesso da tradução de sua obra é mais uma das evidências de que o autor faz parte desse caminho e tem singular relevância não apenas na literatura brasileira, mas também na literatura universal. Sendo parte emblemática da primeira, tornou-se notável na segunda.

Quando iniciei meus estudos em Machado de Assis, na Letras da UFRJ, muito me incomodava ver que lhe foram direcionados comentários que o julgavam apolítico, revelados pela crítica de que sua atuação nos jornais e nos livros deveria fazer com que ele se comprometesse com os acontecimentos de sua época, em vez de fugir de posicionamentos. Esse foi um dos motivos que me levaram a esmiuçar o Machado cronista, já que na crônica, mais do que na ficção, é possível ter maior contato com o autor e consequentemente com suas opiniões e reflexões. Em 1910, por exemplo, o crítico Pedro Couto, a respeito de Machado, escreve que “os fatos sociais são postos à margem, nem indiretamente, mesmo, eles se fazem sentir”, e em 1926, baseado na mesma perspectiva, o poeta Emílio Moura afirma que “ninguém praticou entre nós, em grau tão elevado, a Arte pela Arte”, acrescentando que “nos seus livros ele nunca nos revelou o homem nas suas relações com o meio físico e social”.

São muitos os exemplos que invalidam a visão de quem acusou o escritor de ser um homem alheio a seu tempo e de não se posicionar, como homem negro, em defesa dos negros. As muitas crônicas que abordam temas como a falta de representação política em razão do alto percentual de analfabetos, o apelo para o leitor votar conscientemente, o questionamento da Abolição (em um momento de efusão, ele refletia sobre até que ponto essa liberdade seria efetiva) e a denúncia da farsa da mudança de regime; os contos que tratam da Escravidão, como “Pai contra mãe” e “O caso da vara”; e um romance como Esaú e Jacó, que aponta o comportamento semelhante de um monarquista e um republicano na busca pelo poder, são alguns dos exemplos que demonstram o compromisso social, político e literário de Machado de Assis, atuando sempre de modo crítico e proporcionando reflexões absolutamente importantes não só para a sociedade da época, mas também para a atual. No livro Machado de Assis afrodescendente, que aliás está com desconto no site da editora Malê, Eduardo de Assis Duarte atesta a valorização do negro na obra machadiana. Em epígrafe usada no livro, há uma declaração que mais uma vez desconcerta a crítica que endossa o discurso do alheamento: “Eu tenho a inqualificável monomania/ De não tomar a arte pela arte,/ mas a arte como a toma Hugo,/ missão social, missão nacional, missão humana”.

Nascido no Morro do Livramento em 21 de junho de 1839, Machado de Assis começou aí sua missão social, nacional e humana. Preto, pobre e sem educação formal, foi autodidata e se tornou o maior escritor brasileiro. Hoje, 181 anos depois de seu nascimento e mais de um século após sua morte, continua sendo lido no mundo e seu livro esgota rapidamente. Quando às vezes me pergunto se segui o caminho certo ao me dedicar anos e anos às suas produções, lendo e relendo incessantemente sua obra, acabo chegando facilmente à resposta: continuarei as leituras e releituras de tudo o que diz respeito a Machado de Assis. Ele sempre nos faz pensar. E a gente sempre precisa refletir.  

Publicado originalmente no Além de Machado.