sexta-feira, 31 de maio de 2019

África: o baobá da vida Ilê Ifé


Dentre os muitos sambas bons que tem a Beija-Flor, um dos meus preferidos é o que conduziu a escola no desfile campeão de 2007 - composição de Claudio Russo, J. Veloso, Gilson Dr. e Carlinhos do Detran -, do qual destaco um belíssimo trecho: "Agoyê, o mundo deve o perdão/ A quem sangrou pela história/ Áfricas de lutas e de glórias". 

Por ser de lutas e glórias, em 25 de maio a África é celebrada. O dia foi escolhido devido à criação da Organização da Unidade Africana (OUA) na Etiópia, na data de 25 de maio de 1963, a fim de defender e emancipar o continente. Nove anos depois, foi decidido pela ONU que esse passaria a ser o dia da África. E o trecho do samba da escola nilopolitana assim se confirma, já que a celebração é uma forma de resgatar a memória dessa luta pela independência a partir do combate à colonização europeia e ao Apartheid. 

Sábado passado, portanto 25 de maio de 2019, um evento comemorando o aniversário de Madureira acabou se tornando, para mim e para todos os que se reuniram na Arena Carioca Fernando Torres, no Parque Madureira, também a comemoração do Dia da África. Uma roda de samba que tem Nei Lopes e Zé Luiz do Império como convidados, além de ser coisa fina, sinhá, une a resistência do samba - desde sempre atacado pelos mesmos que naturalizam a absurda depredação de terreiros - e a identidade negra que os dois representam. Cantando "Morrendo de saudade", "E eu não fui convidado", "Malandros maneiros" e "Senhora liberdade", pareciam ter transformado a roda numa aula em que a didática se revelou no batuque, na criança que bateu palma, nas vozes que cantaram como se expulsassem as agonias que muitas vezes pesam a vida.

E os termos "aula" e "didática" me levam a um educador profundamente comprometido com uma Educação emancipatória, inclusiva e libertária, sendo por isso mesmo odiado por aqueles que se interessam apenas pela manutenção da desigualdade, que não emancipa, não inclui e não liberta. Paulo Freire, no livro Cartas a Guiné-Bissau: registro de uma experiência em processo, fala da sua relação com a África: "Meu primeiro contato com a África não se deu, porém, com a Guiné-Bissau, mas com a Tanzânia, com a qual me sinto, por vários motivos, estreitamente ligado. Faço esta referência para sublinhar quão importante foi, para mim, pisar pela primeira vez o chão africano e sentir-me nele como quem voltava e não como quem chegava".

Ainda comentando essa relação, ele detalha a admiração por uma "cultura que os colonizadores não conseguiram matar, por mais que se esforçassem para fazê-lo". A resistência, a luta movida pela indignação e pela ancestralidade, o drible na morte fazem com que a África seja o baobá de um Brasil avesso ao de hoje. No Dia da África, e em tantos outros, é preciso lembrar as negras e os negros que nos ensinaram e nos ensinam a lutar por liberdade.

domingo, 19 de maio de 2019

Vai chamar quem mora longe


Na semana passada, falei rapidamente com um professor de música sobre o jongo, enquanto corria o intervalo na sala dos professores. Mencionamos a Serrinha e isso me lembrou de imediato o dia em que cheguei cedo à Feira das Yabás e parei em frente à roda de jongo que acontecia naquele instante.

Um menino, embalado pelo que via e ouvia, mexia o corpo miúdo, mostrando toda a desenvoltura dos pequenos que mal aprenderam a andar. Senhores e senhoras se cumprimentavam e dançavam revelando uma energia própria dos que jongam - como se a Feira das Yabás não tivesse ameaçada por uma prefeitura disposta a eliminar qualquer manifestação cultural de matriz africana; como se essa cultura, fortalecida por seus ancestrais, jamais pudesse ser eliminada por qualquer projeto fundamentado no preconceito. E quem via a roda de jongo sabia: ninguém apagaria mesmo o riso encantador, e por isso subversivo, daqueles que encaram a vida batendo palma, cantando e mexendo os corpos ao toque dos tambores.

Foi assim que Tia Maria viveu. Foi assim, pertinho do tambor, que ela se foi, numa despedida de pisar devagarinho no chão da Serrinha antes de seguir para o Orum. Ao longo dos 98 anos, atravessou a Sapucaí com o verde e branco imperiano e viu a escola que fundou voltar ao grupo especial com o campeonato de 2017, sabendo que seu quintal é maior que o mundo e que a poesia mora lá, em Madureira. Na Feira das Yabás, onde fui algumas vezes depois do dia em que vi o jongo, Tia Maria subiu no palco para mostrar o que confirmou recentemente ao jornal O Globo, em sua última entrevista: "Nasci com o jongo e vou com ele até o final, só paro de dançar quando Deus quiser". 

E foi ontem que Tia Maria parou de dançar, talvez porque soubesse, na calmaria daquele sorriso que convidava tudo quanto é gente para conhecer o jongo, que no Ayê continuarão dançando e entoando um canto fundamental: "Vai chamar quem mora longe, tambor". Machado!