domingo, 29 de maio de 2016

A culpa não é nossa

Vi uma menina andando de bicicleta em frente ao Engenhão, o estádio Nilton Santos, e, durante os minutos que a mãe contava para registrar a corrida que a filha fazia em sua bicicleta de rodinhas, desejei que ela crescesse, como todas as outras pequenas meninas que brincavam ali, envolvida numa força que pudesse livrar todas nós, mulheres que andamos nas ruas, do mal que se revela em cada esquina, em cada calçada, em cada ponto de ônibus.

Caminhando em torno do estádio, vi homens conversando e senti nojo de seus olhares, mesmo que não fossem para mim. Constantemente sinto nojo dos olhares dos homens nas ruas. A agressão diária incomoda e causa asco. Parei pra comprar água e uma senhora me atendeu, simpática, com um pouco de conversa. Pensei em tudo que ela pode ter sofrido ao longo da vida, em todos os olhares que lhe deram nojo, em todas as mãos que lhe causaram repulsa, em todos os homens que lhe despertaram ódio. A menina na bicicleta havia ido para casa sem saber dos enfrentamentos que infelizmente terá de suportar.

Eu segui, no ônibus, com o aperto no peito que dá toda vez que me lembro da notícia de que trinta e três homens se aproveitaram de uma menina, de uma menor, de uma mulher. Um aperto no peito que incomoda, causa nojo, repulsa e ódio. Não quis ver o vídeo criminosamente divulgado, muito menos ler os comentários muito mal intencionados. Porque, pra ser estuprada, não importa a roupa, não importa o comportamento, não importa nada, somente o fato de ser mulher. Não é a roupa ou o comportamento que provoca, é o homem que pratica a desumanidade ali, junto de muitos outros que veem na mulher a fragilidade, a submissão, o objeto a ser usado quando decidirem usar.

Mas não. Não há fragilidade na gente, nem submissão, tampouco a disponibilidade de servir a qualquer momento a um bando de machistas porque cruéis, ou de cruéis porque machistas. A ordem, aqui, não altera o significado. Eu desci do ônibus e me reconheci em cada mulher que passava por mim, em cada mulher que fica indignada todo dia com a completa ausência de respeito pelo seu corpo, pelo seu pensamento, pelas suas ideias, pela sua existência. Porque basta existir como mulher pra ser julgada.

Que o mundo daquela menininha de uns oito anos que andava de bicicleta lhe explique que ela pode, sim, usar o tipo de roupa que quiser; que ela pode, sim, frequentar o lugar que ela gostar; que ela pode, sim, ter o comportamento que bem entender; e que ela pode, com toda certeza, dizer “não” a quem ela decidir dizer “não” quando simplesmente não estiver a fim. E que ela saiba, nesta sociedade que insiste em tentar tirar de nós tal sabedoria, que nos inúmeros casos de estupro a mulher não tem culpa.

Eu entrei em casa com nojo das sessenta e seis mãos que esfregaram, sem direito algum, o corpo de uma mulher em Santa Cruz. E fechei a porta com medo, mesmo sabendo que jamais ficarei em silêncio.

domingo, 22 de maio de 2016

Mesóclise

Lembro nitidamente que, no terceiro ano do ensino médio, achei incríveis as regras de uso dos pronomes oblíquos átonos. Eu me dediquei a entender como a coisa funcionava e passei a gostar de identificar alguns equívocos que geralmente ocorrem nos textos jornalísticos. Quando me foram apresentadas as possíveis colocações pronominais, no entanto, percebi que muitas delas eram estranhas, um troço que na verdade não era usual.

No primeiro teste aplicado pelo professor, havia uma questão que pedia a transformação de expressões por pronome. Confesso que pensei na resposta que dias depois descobri ser a adequada, mas na hora achei tão esquisita que resolvi arriscar outra possibilidade. Naturalmente, errei a questão. Mas compreendi que a gramática tem disso, mesmo entendendo a gente tenta buscar outra alternativa. O que muita gente não aceita é que todas as alternativas têm seu porquê. E são legítimas porque se encaixam em seus contextos próprios.

Memorizei muitos dos condicionamentos que levavam à próclise, à ênclise e até à mesóclise. Depois isso fica meio automático e, ao estabelecer certo domínio em relação ao tema, aquele deslumbramento inicial passa e a gente vê que ninguém fala mesmo daquele jeito. A coisa serve basicamente pra acertar uma múltipla escolha em prova de português. Ou então pra ser pedante, já que o brasileiro, em relação ao uso da tal mesóclise — e também da ênclise — na fala, prefere acender um cigarro e resmungar um “deixa disso, camarada”.

Com exceção da palavra “camarada”, foi exatamente o que pensei que poderiam dizer ao presidente ilegítimo quando fiquei sabendo do seu discurso com mesóclise. “Deixa disso, golpista”, substituindo o vocativo pra adaptá-lo ao sujeito em questão.

As línguas sabidas e sabichonas se enchem de pompa por verem um presidente falando “sê-lo-ia” e utilizando ênclises inusuais, mesmo em casos em que o pronome esteja empregado em desacordo com a gramática. O que tanto criticam em seus inimigos políticos passa despercebido aos olhos de quem tem sua norma culta particular. Falam em nome do povo mas se distanciando dele linguisticamente. É preciso mostrar barreiras e excluir, de modo sutil mas não menos perverso, aqueles que iniciam frase com um pronome oblíquo átono e não estão nem aí pra pronome no meio de verbo. Me poupe.

Eu, que lido com texto a todo tempo por ser da área de Letras, quero mais é distância da mesóclise do Temer. Temei a mesóclise, caro leitor. Não pela dificuldade de usá-la, porque isso é bobagem, mas simplesmente por uma questão política. Não é dos homens de bem — ou de bens — que o país mais precisa, e sim do bom negro e do bom branco da nação brasileira que dizem todos os dias “me devolva a democracia”.