terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O Regresso


Depois do sucesso obtido em Birdman – o longa foi premiado no Oscar como melhor filme, fotografia, roteiro original e direção –, o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu leva às telas uma adaptação do romance de Michael Punke, The revenant: a novel of revenge. O Regresso mostra as inóspitas e surpreendentes condições de sobrevivência de Hugh Glass (Leonardo DiCaprio), um guia de uma expedição de caça que, após ser gravemente atacado por um urso, é abandonado por iniciativa de Fitzgerald (Tom Hardy), principal encarregado de acompanhá-lo até o momento de sua morte. Além disso, o filme também gira em torno da vingança de Glass em relação a Fitzgerald por este ter matado seu filho. No roteiro de Iñarritu e Mark Smith, o assassinato funciona, dessa forma, como impulso que motiva toda a jornada do protagonista.

Impressiona no filme o realismo das cenas, sobretudo no momento do ataque do urso, em que a agonia, o nojo e a compaixão com o personagem são automaticamente acionados no espectador que se encontra ansioso para que o embate logo termine. Ao mesmo tempo que essa proximidade com o real seja valiosa para o filme, existem pontos, porém, que se distanciam de uma realidade plausível, como a relativamente rápida recuperação do protagonista ou até mesmo o fato de ele não ter perdido sua garrafa enquanto era arrastado nas águas por uma brutal correnteza. Os detalhes duvidosos, contudo, ainda comprometem menos a narrativa do que os flashbacks relacionados à vida pessoal de Glass, que surgem inoportunamente e que poderiam ser descartados sem que a compreensão ou a dramaticidade fossem prejudicadas por isso.

No entanto, o trabalho técnico de O Regresso se revela incrível pelas perspectivas proporcionadas pela câmera, seja na batalha inicial contra os índios – o público acompanha todo o conflito diante de uma lente que capta os homens, um a um, à medida que são atingidos, fator que o aproxima ainda mais desse momento caótico –, seja no foco em relação aos personagens, de modo que a aproximação permitida pelos closes manifesta também uma aproximação a suas experiências emocionais, como acontece, por exemplo, quando percebemos toda a dor de Glass no instante em que a câmera registra de muito perto apenas o seu rosto após o ataque do urso. Outro aspecto que desperta a atenção é a opção do diretor de destacar e, mais do que isso, lembrar que há alguém por trás da câmera: é o que ocorre quando a lente embaça com a respiração do personagem ou, ainda, quando é manchada por respingos de sangue provenientes da luta final entre Hugh Glass e Fitzgerald.

Diante dessa câmera que o flagra tão de perto, Leonardo DiCaprio tem uma atuação brilhante no filme, sobretudo porque grande parte de sua comunicação não ocorre por uma linguagem verbal, o que consiste na alta capacidade do ator de expressar-se fisicamente, por meio de respirações pesadas e sussurros e em sua total entrega para isso. Tom Hardy, que interpreta o antagonista Fitzgerald, também se destaca ao ser capaz de apresentar um vilão cujas expressões faciais já bastariam para revelar sua insanidade e sua falta de altruísmo. O simples modo de falar, com uma dicção não tão nítida, por exemplo, é outra característica que particulariza esse personagem que demonstra a todo tempo impaciência e fúria.

Ainda que DiCaprio tenha feito um trabalho admirável – considerando também os sacrifícios como ter de comer fígado cru, enfrentar temperaturas muito baixas e carregar uma pele de urso de quase cinquenta quilos –, a construção de seu personagem não parece tão profunda quanto poderia ser. Foi brilhante, mas não impecável. Fica para o espectador a sensação de ter se comovido mais com o ator Leonardo DiCaprio, devido às condições a que se submeteu para que o trabalho desse certo, do que com o personagem Hugh Glass, que sobreviveu ao ataque de um urso, viu o filho morrer e percorreu uma jornada dificílima para se vingar.

Com suas doze indicações ao Oscar, o inegável acerto de O Regresso, a meu ver, é a fotografia. O trabalho de Emmanuel Lubezki é o que dá mais vida ao filme, o que mais comove a plateia e o que mais a insere de algum modo na trama. As paisagens que aparecem na tela e, principalmente, a maneira como elas são registradas expressam incrivelmente o plano emocional da história, como se cada imagem proporcionasse uma reflexão acerca do sofrimento de Glass. Nesse sentido, o conjunto da obra é favorecido e O Regresso se afirma como um bom filme.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Vivendo Vinyl


Não vivi os anos 70, mas estou vivendo Vinyl. Parei pra ver o episódio de duas horas que estreou no domingo apenas na quinta-feira. Mesmo desconfiando de que viria coisa boa por se tratar de um trabalho de Scorsese e Mick Jagger juntos, assisti sem muita expectativa e sem esperar nada mais do que a temática abordaria: sexo, drogas, rock’n’roll. Só que foram duas horas de cenas que me prenderam até o fim em um piloto nem um pouco cansativo.

Embora eu não tenha vivido os anos 70, passei a conviver com um Richie Finestra sendo muito bem interpretado por Bobby Cannavale. Richie é um executivo de música que adora o que faz e, inquieto e inconsequente, enche os olhos de lágrimas ao entrar em uma casa de show pequena e ver e sentir o que uma banda fazia em cima de um palco também pequeno. Mas ali tudo se revelava grandioso aos olhos do personagem. Richie comove quando se vê diante do fracasso, como acontece no momento em que, alucinado, toca guitarra em pé no sofá da sala, faz o filho sorrir sem entender e decepciona a esposa.

Fundador e presidente da American Century Records, gravadora que no início da década de 70 corre o risco de ser vendida à PolyGram, ele tenta encontrar um meio de recuperar o sucesso de sua empresa e, ao mesmo tempo, precisa lidar com problemas pessoais que o levam a uma crise existencial. Um de seus conflitos internos, por exemplo, se refere ao caso de Lester Grimes (Ato Essandoh), um cantor de grande talento que colocou sua carreira nas mãos de Richie mas não obteve resultados satisfatórios com o empresário que se viu obrigado a abandoná-lo.

Por meio de tudo que ocorre na vida do protagonista, Vinyl explora a indústria musical por uma ótica interna proporcionada por quem acompanhou isso de perto e, portanto, contextualiza muito bem o período. Somando a experiência de Mick Jagger a características próprias de Scorsese, como as cenas violentas das quais não abre mão, a série mostra que uma flor pode nascer na rua e furar o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio, porque revela a beleza por trás de um ambiente torpe. De alguma forma, a gente acaba vivendo os anos 70. E diante da vida que desperta em quem está assistindo, Vinyl tem tudo pra dar certo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Saia rodada

Rodavam as saias das meninas e dos meninos. Purpurinas enfeitavam o rosto, estrelas coloridas formavam constelações até então desconhecidas. Serpentinas espalhadas pelo chão e penduradas nos fios presos aos postes eram a fantasia das ruas. Continuavam a rodar as saias, um movimento que levava ao sorriso de quem acompanhava. Alguns batiam palmas, outros nem se mexiam, extasiados. As saias de meninos e meninas rodavam a roda viva de Chico, roda mundo, roda pião. Queriam voz ativa em cada saia rodada.

Dançavam tentando esquecer que pra alguns menino de saia não pode, e saia curta em menina também não. Dançavam para espantar as negativas sem sentido que tantos sopram ou gritam como se só a ordem importasse. Desordenavam a dança numa organização dionisíaca. Olhavam-se uns aos outros com muito riso, muita alegria. Crianças pediam aos pais para tocar o tambor que fazia as saias se movimentarem e rodarem a roda viva do mundo que cresce. Palhaços de rosto branco usavam a menor máscara, o nariz vermelho que não esconde nada, e surpreendiam foliões também em ritmo de tambores e vozes roucas de todo o carnaval. Todos tinham, ali, o nariz vermelho.

Em algum canto havia gente apanhando de cassetete da polícia, rodavam as saias meninos e meninas, cerveja sem patrocínio não podia, que não dava lucro pra quem já tem bastante. Uma polícia que mata tomava conta do carnaval, trazia lema e divisa e não queria deixar a gente botar o bloco na rua. A alegria incomoda. Foi assim também na festa da Penha, há tempos, quando proibiram a diversão traduzida em manifestação cultural. Mas suportaram a ausência de instrumentos na palma da mão, na caixinha de fósforo, no batuque na panela. Madame não gosta que ninguém sambe e é preciso sim discutir com madame. O lalaiá sempre resiste.

Cantando um samba, desceu a ladeira de Santa Teresa e, aos pés da Lapa, o Pierrô encontrou a Colombina. Beijos de carnaval às vezes poucos, às vezes muitos. É o céu na terra que supera a violência alheia e desfila novamente. As saias rodam, dançam coco, meninos e meninas suam e sorriem, rodam a beirada da saia, saltam, sobem, cisco no olho de quem chora. Há muita beleza na lágrima dos que choram, imersos naquela alegria. Espumas caem do alto, a cidade apaga a neblina e pinta em si um novo quadro de cores pra todo lado, formas difusas e confusas, desenhos difíceis de serem lidos. A existência humana, assim como esses desenhos, também não é fácil de ser entendida. Rodavam as saias das meninas e dos meninos. Todos tinham, ali, um nariz vermelho.