segunda-feira, 13 de março de 2023

Guia

Enquanto descanso encostado no muro sob a marquise, a ver se a chuva para, acendo um cigarro. Espero pela última corrida do dia, torcendo para não desviar tanto dos arredores, porque depois vou para casa. Dois passageiros chegam apressados, fugidos da ameaça de temporal, e param na direção da porta traseira, boa noite, você pode nos levar até São Cristóvão, por favor?

Apago o cigarro, entro no carro, ligo o relógio. No meio do caminho, para-brisas de um a outro lado, vejo o sinal verde e, apesar de perceber que o casal conversa, nem presto muita atenção no diálogo, com um cansaço acumulado desde as seis da manhã, quando saí para trabalhar. Dia cheio, a filha esperando, a fome batendo, na correria acabo não comendo direito, isso depende dos horários combinados com os passageiros. Que bom que ao menos hoje os sinais decidiram colaborar, às vezes todos ficam vermelhos, parece que também combinam um com o outro.

Segundos antes de passar pelo sinal verde, me assusto. Um senhor atravessa na frente do carro, sem olhar para cima, para os lados, nada. Não tenho tempo de frear, o casal no banco de trás emudece, fica tão em silêncio que some sem aviso e me deixa ali diante do atropelamento, um senhor caído no chão ao lado de uma lata de alumínio vazia e de um meio-fio que, ainda bem, não está com sangue. Abro a porta apavorado e, antes de conseguir pedir ajuda para socorrê-lo, ligar para bombeiro, qualquer coisa, vejo algumas pessoas se aproximando: cerca de dez homens abandonam os papelões onde estavam deitados debaixo de marquises, enrolados em panos rasgados, e andam na minha direção gritando tu tá maluco, vai morrer, filho da puta, quer matar o velho, caralho, a culpa foi tua, avançou o sinal. Com tantos olhares de raiva, vozes dormentes, braços para a frente na tentativa de logo me alcançarem, dedos apontados pela certeza inventada, eu não sairia vivo dali.

Nesse instante noto que um homem, vindo do lado oposto dos outros, joga a guimba de seu cigarro no chão, fumaça confundindo os olhares, gole de cachaça esguichado para todos verem: “Ninguém faz nada com o taxista, porra! Ele não teve culpa!”. Os gritos cessam, as pessoas dispersam e eu, sentindo o suor percorrer meu rosto ao mesmo tempo que os olhos piscam fundo de alívio, seguro o fio de contas em meu pescoço. As miçangas, que não poderiam ter outra cor, estão molhadas da chuva.