quarta-feira, 10 de abril de 2019

Heroínas negras brasileiras


Depois do Carnaval e da histórica vitória da Mangueira, com um enredo necessário sobre a história brasileira não contada pela versão oficial, aproveitei para mais uma vez ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês, agora por meio dos cordéis de Jarid Arraes, no seu Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. Na orelha do livro, a escritora comenta que em toda a vida escolar não ouviu falar em mulheres negras que combateram a escravidão, e foi assim que, já adulta, decidiu pesquisar nomes avulsos na tentativa de resgatar suas origens afro-brasileiras. Devido a isso, surgiu a coleção de cordéis intitulada “Heroínas Negras na História do Brasil”, material explorado nas salas de aula e que originou o livro com 15 desses cordéis reunidos.

Recentemente, o já citado desfile da Mangueira se tornou memorável por subverter a lógica social lembrada no prefácio da obra: “os nossos heróis e heroínas, quando negros, têm sido odiosamente relegados ao esquecimento”. Com base nessa perspectiva e no fato de que as mulheres, sobretudo negras, sempre enfrentaram o silenciamento provocado pelo machismo que segue desrespeitando suas vozes, os 15 cordéis também subvertem o padrão imposto por homens brancos. Além disso e por esse motivo, são uma forma bonita e necessária de mostrar a face democrática e encantadora do país. Mencionando o samba da Estação Primeira, “Brasil, o teu nome é Dandara” — mas é também Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata, Zacimba Gaba e tantas outras mulheres de luta.

Como sou professora, é ainda mais gratificante ver que o livro começa com a história de Antonieta de Barros: “Por inteira a sua vida/ Viveu como educadora/ Jornalista ou deputada/ Se manteve ensinadora/ Com lições educativas/ E também libertadoras”. Por ter lutado contra o racismo e o machismo, ela nomeia a Medalha que é anualmente concedida pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina a mulheres que combatem a desigualdade de gênero. Em seguida, a nordestina Jarid Arraes homenageia Aqualtune — princesa, guerreira, líder africana que lutou contra a invasão de seu reino no Congo e avó de Zumbi –, aproveitando para lembrar suas próprias raízes: “A história do meu povo/ Nordestino negro forte/ É tão rica e importante/ É vitória sobre a morte/ Pois ainda do passado/ Modificam nossa sorte”.

A escritora Carolina Maria de Jesus tem no cordel sua vida de catadora de papel relatada, função que cumpria para sustentar a família. Marginalizada, sofreu com a ignorância do racismo e com as dificuldades na favela do Canindé. Anotava tudo o que acontecia, no entanto, e as anotações originaram Quarto de despejos, livro traduzido para várias línguas e vendido para mais de 40 países. Portanto, é “Carolina eternamente/ Uma imensa inspiração/ Uma força grandiosa/ E também validação/ A mulher negra escritora/ Que despeja o coração”. Outra força grandiosa é Dandara dos Palmares, guerreira do Quilombo e mulher de Zumbi. Revolucionária, Dandara representa o Brasil feito da incansável luta impulsionada por mulheres que driblam as limitações que lhe são impostas. Ao se suicidar para não retornar à condição de escrava, revela toda coragem e liberdade que seu nome carrega: “Até mesmo a sua morte/ De heroísmo foi repleta/ E a mensagem que anuncia/ Entendemos bem completa:/ Rejeitar a rendição/ É a nossa condição/ Como um grito de alerta”.

Tendo no nome uma definição própria, Esperança Garcia dá seu grito de alerta ao escrever uma carta de denúncia de maus tratos aos escravos endereçada ao presidente da Província de São José do Piauí. Sendo escrava, foi alfabetizada por padres jesuítas e, assim, fortaleceu sua voz a partir da escrita. Mesmo que não se saiba se teve êxito no que solicitou na carta, é certo que combateu a exclusão: “Porque no Brasil passado/ O escravo era excluído/ Sem saber ler e escrever/ Sem poder ser instruído/ Caso alguém fosse enfrentar/ Acabava perseguido”. Outra história de coragem é contada em seguida, e diz respeito à quitandeira — escrava alforriada — que enfrentou um homem branco, dono de uma cabra que levou alguns dos seus alimentos estendidos em uma calçada de Bonsucesso para venda. Eva Maria do Bonsucesso foi atrás do animal e José Inácio de Souza, dono da cabra, bateu na quitandeira, que revidou, foi parar na polícia e venceu o caso devido às testemunhas que a defenderam. O desfecho, justo num país injusto, torna o episódio emblemático: “Como fosse muito pouco/ Eva não ter sido presa/ O desfecho foi maior/ Do que só sair ilesa/ Foi o branco enclausurado/ Por bater foi condenado/ Na mais dura da certeza”.

Essas e outras histórias de heroínas negras brasileiras abordadas no livro mostram poeticamente para nós, leitores, que a luta das mulheres não é recente. E ao dedicar a obra “às heroínas do presente, por acreditarem num futuro possível”, Jarid Arraes confirma ser essa luta, além de antiga, constante. Por esse motivo, os cordéis precisam mesmo ser espalhados pelas escolas de todo o país, discutidos em sala de aula e em qualquer espaço de reflexão. Somente dessa forma é possível que a gente construa um país que não tá no retrato, parafraseando novamente o samba da Mangueira — que menciona mais duas mulheres negras presentes no livro: a líder da batalha pela independência da Bahia, Maria Felipa; e a importante guerreira africana da Revolta dos Malês, Luísa Mahin.

Publicado originalmente no Além de Machado.