domingo, 30 de dezembro de 2018

A história de Ogum, o Prometeu africano


“Trago em mim o inconciliável e este é o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raro são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta”.

Foi esse o primeiro trecho que destaquei lendo Mayombe, do escritor angolano Pepetela. Aparece na segunda página do romance, momento em que a narração é feita pelo personagem Teoria. A reflexão vale não só para o contexto e o espaço da época de produção do livro, porque, como se pode perceber, traz questionamentos que perpassam o tempo, sendo por isso mesmo universais. Num mundo geralmente maniqueísta, é fundamental buscarmos ser os raros outros.

Escrito no início da década de 1970 e publicado em 1980, o romance faz com que o leitor adentre a floresta do Mayombe para acompanhar a luta pela libertação de Angola, da qual Pepetela participou. Nesse sentido, a ficção é construída com base na realidade, de modo que se integra à história, já que o livro não deixa de fazer um registro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em Cabinda. Sobre essa fusão, Luiz Costa Lima comenta em A aguarrás do tempo (1989): “na ficção, o material histórico entra para que permita a revisão de seu significado, que adquire a possibilidade de se desdobrar em questionamento”. O que nos é apresentado, portanto, é o ponto de vista do guerrilheiro, de sua experiência em uma revolução, de suas questões e críticas políticas, e assim ficamos diante de ideias que conduzem nossos próprios pensamentos e emoções ao lidar com a consciência e as sensações de quem narra ou é narrado.

À perspectiva da luta se relaciona a história de Ogum, mencionada já na dedicatória, permitindo um elo da literatura com a cultura e a religiosidade africanas: “Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a história de Ogun, o Prometeu africano”. Ao longo da narrativa, e mais especificamente no final, entendemos que Ogum é representado pelo personagem de nome Sem Medo, o qual conhecemos por meio da terceira pessoa e da primeira pessoa de outras vozes que não a sua. É ele o comandante dos guerrilheiros, responsável pela operação e por proporcionar reflexões decorrentes de sua experiência de vida. Seu comportamento e seus ideais revolucionários simbolizam o orixá da guerra, mostrando que esta sempre é a sua finalidade, como revela em uma conversa com Mundo Novo:

“– Faço a guerra. Permito, pela minha ação militar, que o aparelho se vá instalando.
– Não sei. Nunca soube responder a essa pergunta.”

Apesar de ser personagem central na obra, Sem Medo não assume o papel de narrador, como acontece com outros personagens que, nos seis capítulos, conduzem a narrativa, que conta também com o narrador onisciente. As diferentes perspectivas, desse modo, indicam uma pluralidade de subjetividade sobre uma mesma experiência, a da guerra. Por ser uma obra bastante ligada ao contexto histórico, já que foi produzida no momento da luta pela independência do país, Mayombe é a literatura explicando a formação da identidade angolana. Não à toa o romance trata das questões tribais, que precisariam ser superadas para haver o reconhecimento de um só povo, enquanto os homens se transformam por meio da experiência no espaço da floresta, sendo desafiados a constantemente se reinventar.

Ao final na narrativa, o Comissário Político explica sua transformação, que se deu sobretudo com a morte de Sem Medo na selva: “A morte de Sem Medo constituiu para mim a mudança de pele dos vinte e cinco anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda metamorfose. […] Do coração do Bié, a mil quilômetros do Mayombe, depois de uma marcha de um mês, rodeado de amigos novos, onde vim ocupar o lugar que ele não ocupou, contemplo o passado e o futuro. E vejo quão irrisória é a existência do indivíduo. É, no entanto, ela que marca o avanço no tempo”.

Mayombe, nesse sentido, vai muito além de um registro documental da atuação do MPLA pela libertação de Angola. Uma vez que não se limita ao relato histórico, explora o discurso ficcional para produzir uma obra literária que abarca a condição humana e o propósito da nossa existência no mundo, a reflexão acerca do amadurecimento que só o tempo permite e a respeito das nossas próprias transformações e também das alheias: “As metamorfoses são bruscas e nós continuamos a ver os outros na sua antiga pele”. As mudanças ocorridas com os guerrilheiros correspondem à mudança do país, que se tornou independente dos portugueses. Assim, a escrita literária de Pepetela conciliou consciência histórica e vivência emocional, provocando sobretudo em nós, leitores, a comovente disposição para interpretarmos muitas de nossas próprias experiências.

Publicado originalmente no Além de Machado.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Voo

Paisagem de subúrbio, Di Cavalcanti

Me esquivei do primeiro carro com o sinal ainda aberto, na porta do sacolão um moço anunciava o preço das frutas, duas mulheres com sacolas na mão me olharam e eu vi a testa delas franzida; sinal vermelho, continuei correndo mas agora sentindo um pouco mais de segurança, lá em casa ninguém sabia onde eu tava, se meu pai me vê descalço aqui começa a encher o saco, minha mãe com certeza ia dizer que o que falta pra mim é reza; é claro que eu senti medo, mas a adrenalina era muita e não tinha como eu ficar parado com os moleques mais novos na rua lá de cima, duvido que meu pai na minha idade não correu assim também, e minha mãe falava muito mas eu sei que no fundo ela sabia que não tinha mais jeito; era a primeira vez que eu fazia isso, me metendo no meio dos outros desesperado, mas vai dizer que daria pra ser diferente, não dá, o único jeito é deixar o chinelo na calçada e correr, torcendo pra não trombar com gente mal intencionada, com a polícia que me pararia, nem com senhorinhas que se desesperam quando eu passo perto; era a minha primeira corrida no sinal e na calçada e nos becos, sem olhar pra trás, sem achar que eu tava errado, driblando os pés de quem andava na calçada, me esquivando de fios pendurados no poste, movendo o corpo com cuidado pra não esbarrar em ninguém, rezando pra não dar de cara com meu pai também, se bem que a essa hora ele com certeza cortava madeira no fundo da casa; eu não sei como conseguia correr tão rápido, olhando sempre tudo passar voado do meu lado, árvore, carrinho de bebê, moto, mesa de bar, cadeira de bicheiro, banca de jornal, garrafa de cerveja, lixo encostado no muro, orelhão, tudo passava batido, eu vendo só as cores, nem reparava as pessoas me olhando, me julgando, com medo, apontando pra mim, querendo saber o que acontecia; acho que isso tudo durou uns quatro minutos, mas parecia uma hora de pés descalços no asfalto quente, o sol todo em mim, nem sei como eu chegaria depois em casa, suado, fedendo, o pé com a sujeira encruada, mas na verdade eu nem pensava nisso na hora, só corria como quem fugia de alguém muito perigoso ou de algo que amedrontava; dobrei a esquina na esperança de não ter corrido em vão, olhei pra trás, uns dois caras vinham correndo na mesma direção, fiquei cismado e sei lá como consegui mais disposição, vi que tava perto, muito longe dali não dava pra ser; quando virei na praça, dei de cara com ela quase caindo no chão: era a primeira pipa voada que eu pegava na rua.

*Conto publicado na coletânea Prêmio Off Flip 2022: conto, lançada na FLIP, em Paraty, no dia 25 de novembro de 2022.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

A culpa deve ser do sol


Comecei a ler O sol na cabeça numa manhã a caminho do trabalho e, diferentemente do que pensei, não deixei para terminar a leitura no dia seguinte, porque só consegui apagar a luz do quarto pra dormir quando o último conto acabou. E já de início, enquanto a gente acompanha o “rolézim” na praia, inevitavelmente lembra as caravanas do Chico, um sol de torrar os miolos quando pinta em Copacabana a caravana de um neto e um sobrinho que, pra driblar a polícia, mentaliza o Seu Tranca Rua da avó e o Jesus das tias.

Em “a história do Periquito e do Macaco”, a ligação que o final da narrativa estabelece com o primeiro parágrafo traduz exatamente a tensão resultante da atuação policial no morro, fazendo com que o leitor reflita sobre questões como a indignação seletiva, o racismo por parte das autoridades representativas do estado, a humanidade de pessoas muitas vezes vistas e tratadas como desumanas e o binarismo que reproduz os conflitos de uma cidade partida.

O conto inicia com a perspectiva de quem acompanhou de perto a implementação da UPP: “Quando a UPP invadiu o morro, era foda pra comprar bagulho. Maior escaldação; ninguém queria botar a cara pra vender, só tinha criança trabalhando de vapor. Uns moleque de oito, nove anos. Tinha vez que sentia até pena de ver as criança naquela situação, mas o papo é que a gente se acostuma com cada bagulho sinistro, que pena é coisa que dá e passa rápido; geral continuou comprando droga”.

Lá na sétima página, quando sabemos que o uso abusivo do poder por parte do policial tinha sido o gatilho pra uma armadilha contra ele, o último parágrafo comenta novamente o sofrimento das crianças, mas, desta vez, o narrador se refere a outras crianças: “Depois que não acharam de jeito nenhum o corpo do Cara de Macaco, saiu uma foto no jornal falando assim: ‘Filhos choram no enterro simbólico do tenente Roberto de Souza’. Papo reto, até eu que odeio polícia, na hora senti um pouco de pena, vendo as criança naquela situação”. A respeito da relação deste com o primeiro parágrafo (destacado acima), é o leitor que, sem esforço, pode identificar.

Tanto esse como outros dos trezes contos do livro exploram aspectos linguísticos próprios da oralidade e do grupo social específico selecionado pelo autor para protagonizar O sol na cabeça, a exemplo das gírias e da ausência de concordância, tudo em prol de valorizar uma identidade não só social, mas também cultural. É nesse sentido que a literatura de Geovani Martins surge como novidade no cenário contemporâneo, dialogando com uma realidade que muitas vezes é negligenciada pelo discurso literário.

As experiências de vida do autor nas favelas do Rio são notavelmente refletidas em sua produção escrita, que alia aspectos reais e imaginários para gerar uma ficção dotada de senso crítico e sensibilidade. Conceição Evaristo falou sobre essa relação em entrevista ao jornal Nexo, em maio de 2017, ao explicar seu conceito de escrevivência: “Eu acho muito difícil a subjetividade de qualquer escritor ou escritora não contaminar a sua escrita. De certa forma, todos fazem uma escrevivência, a partir da escolha temática, do vocabulário que se usa, do enredo a partir de suas vivências e opções”. Contaminado, portanto, pela subjetividade do escritor, O sol na cabeça se destaca pela originalidade no universo da literatura brasileira contemporânea.

Publicado originalmente no Além de Machado.