“Trago em mim o inconciliável e este é o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raro são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta”.
Foi esse o primeiro trecho que destaquei lendo Mayombe, do escritor angolano Pepetela. Aparece na segunda página do romance, momento em que a narração é feita pelo personagem Teoria. A reflexão vale não só para o contexto e o espaço da época de produção do livro, porque, como se pode perceber, traz questionamentos que perpassam o tempo, sendo por isso mesmo universais. Num mundo geralmente maniqueísta, é fundamental buscarmos ser os raros outros.
Escrito no início da década de 1970 e publicado em 1980, o romance faz com que o leitor adentre a floresta do Mayombe para acompanhar a luta pela libertação de Angola, da qual Pepetela participou. Nesse sentido, a ficção é construída com base na realidade, de modo que se integra à história, já que o livro não deixa de fazer um registro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em Cabinda. Sobre essa fusão, Luiz Costa Lima comenta em A aguarrás do tempo (1989): “na ficção, o material histórico entra para que permita a revisão de seu significado, que adquire a possibilidade de se desdobrar em questionamento”. O que nos é apresentado, portanto, é o ponto de vista do guerrilheiro, de sua experiência em uma revolução, de suas questões e críticas políticas, e assim ficamos diante de ideias que conduzem nossos próprios pensamentos e emoções ao lidar com a consciência e as sensações de quem narra ou é narrado.
À perspectiva da luta se relaciona a história de Ogum, mencionada já na dedicatória, permitindo um elo da literatura com a cultura e a religiosidade africanas: “Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a história de Ogun, o Prometeu africano”. Ao longo da narrativa, e mais especificamente no final, entendemos que Ogum é representado pelo personagem de nome Sem Medo, o qual conhecemos por meio da terceira pessoa e da primeira pessoa de outras vozes que não a sua. É ele o comandante dos guerrilheiros, responsável pela operação e por proporcionar reflexões decorrentes de sua experiência de vida. Seu comportamento e seus ideais revolucionários simbolizam o orixá da guerra, mostrando que esta sempre é a sua finalidade, como revela em uma conversa com Mundo Novo:
“– Faço a guerra. Permito, pela minha ação militar, que o aparelho se vá instalando.
– Não sei. Nunca soube responder a essa pergunta.”
Apesar de ser personagem central na obra, Sem Medo não assume o papel de narrador, como acontece com outros personagens que, nos seis capítulos, conduzem a narrativa, que conta também com o narrador onisciente. As diferentes perspectivas, desse modo, indicam uma pluralidade de subjetividade sobre uma mesma experiência, a da guerra. Por ser uma obra bastante ligada ao contexto histórico, já que foi produzida no momento da luta pela independência do país, Mayombe é a literatura explicando a formação da identidade angolana. Não à toa o romance trata das questões tribais, que precisariam ser superadas para haver o reconhecimento de um só povo, enquanto os homens se transformam por meio da experiência no espaço da floresta, sendo desafiados a constantemente se reinventar.
Ao final na narrativa, o Comissário Político explica sua transformação, que se deu sobretudo com a morte de Sem Medo na selva: “A morte de Sem Medo constituiu para mim a mudança de pele dos vinte e cinco anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda metamorfose. […] Do coração do Bié, a mil quilômetros do Mayombe, depois de uma marcha de um mês, rodeado de amigos novos, onde vim ocupar o lugar que ele não ocupou, contemplo o passado e o futuro. E vejo quão irrisória é a existência do indivíduo. É, no entanto, ela que marca o avanço no tempo”.
Mayombe, nesse sentido, vai muito além de um registro documental da atuação do MPLA pela libertação de Angola. Uma vez que não se limita ao relato histórico, explora o discurso ficcional para produzir uma obra literária que abarca a condição humana e o propósito da nossa existência no mundo, a reflexão acerca do amadurecimento que só o tempo permite e a respeito das nossas próprias transformações e também das alheias: “As metamorfoses são bruscas e nós continuamos a ver os outros na sua antiga pele”. As mudanças ocorridas com os guerrilheiros correspondem à mudança do país, que se tornou independente dos portugueses. Assim, a escrita literária de Pepetela conciliou consciência histórica e vivência emocional, provocando sobretudo em nós, leitores, a comovente disposição para interpretarmos muitas de nossas próprias experiências.
Publicado originalmente no Além de Machado.


