sábado, 13 de janeiro de 2018

Esperança verde e rosa


O corte de verbas para o desfile das escolas de samba, que provocou um debate majoritariamente interno sobre o assunto, deixou claro que as medidas tomadas pelo prefeito —  e aqui podemos citar algumas: a ação da Guarda Municipal na Pedra do Sal, impedindo que houvesse a tradicional roda de samba no local; o corte do apoio financeiro à procissão de Iemanjá, que acontece há treze anos em Copacabana; a ausência de investimento na Casa do Jongo, que fechou as portas recentemente por falta de recursos  —  constituem um projeto de anulamento cultural caracterizado pela intolerância religiosa e pelo preconceito com a cultura negra.

Não me sai da memória o dia em que Tia Nilda, baiana da Mocidade, falou emocionada sobre sua relação com a escola no RJTV, em matéria que foi ao ar em fevereiro do ano passado. Afeto ignorado pelos que desconhecem ou discriminam, o sentimento de torcedores e componentes pela escola de samba, e tudo o que dele emana, é fator que potencializa a confiança e a coragem de enfrentar a dureza da vida e de se reinventar no mundo a partir de um toque de agogô. É encantada por esse afeto que a Mangueira insiste, no esplêndido da poesia, em resgatar nosso respeito, derrubando o cordão de um blocódromo que afinidade nenhuma tem com a festa.

O argumento que insustentavelmente sustenta o discurso sobre o dinheiro negado às agremiações, e cabe lembrar que as do Acesso ainda não receberam nenhum investimento do que foi acordado pela prefeitura, cai ainda mais em contradição devido ao evento organizado em Copacabana no sábado passado, para o qual houve o apoio financeiro que viabilizaria os ensaios técnicos. Evidentemente, a preocupação do prefeito é manter a ordem por meio dos seus próprios imperativos, baseados na não aceitação de outras crenças e manifestações culturais alheias à sua visão de mundo mas vivenciadas por enorme parte da população carioca.

Foi também a pretexto de manter a ordem que, no fim do século XIX e início do XX, membros da elite social criticaram e desqualificaram a Festa da Penha e criminalizaram o samba, por exemplo, tornando manifestações culturais de origem negra, como o batuque e a capoeira, elementos de repressão. O viés preconceituoso que causava essa repressão naquela época é o mesmo que molda, atualmente, um governo que propositalmente afeta a festa popular e caminha na contramão de uma sociedade plural que desenrola a vida no giro da roda da saia da baiana e que se reconhece na lágrima de um integrante da Velha Guarda.

Diante desse cenário, a esperança é verde e rosa: erguendo a bandeira do samba, a Mangueira mostra que pecado é não brincar o carnaval. E assim teremos uma Sapucaí que louva o botequim, o samba, o jongo, a diversidade sexual e de gênero, o bloco sem cordão, os santos e as santas  —  em especial Nossa Senhora Aparecida, cuja imagem já foi chutada por um pastor da Universal em um programa de televisão. Uma louvação, portanto, à pluralidade e à subversão, com o objetivo de “desobedecer pra pacificar”, de mãos dadas com a letra da Mocidade. Neste Carnaval todos nós somos Mangueira, meu senhor.

Publicado originalmente no Carnavalize.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Confuso casarão


Show em homenagem a Wilson das Neves: enquanto o palco se reveste do verde imperial, Chico põe o chapéu para reverenciar o amigo, cantando “Grande Hotel” em seguida. E o público, que já sentia prazer em falar de sentimentos de outrora, se emociona sabendo que a hora do imperiano que nos deixou no ano passado não passa.

 

Em caravana de Madureira à Mangueira, Chico quis ouvir a batucada da derradeira estação. Neste Rio de ladeira e encruzilhada, o verde e rosa do palco me levou a 1998, quando a Sapucaí viu a vitória da escola com o enredo “Chico Buarque da Mangueira”. A comissão de frente que invadiu a memória com a ópera dos malandros fez Chico cantar um samba em homenagem à nata da malandragem, pisando nos corações de quem estava na plateia. Naturalmente pisou no meu, recordando que “As Vitrines” era a minha preferida, quando descobri os versos “Catando a poesia/ Que entornas no chão” na mesma época em que eu descobria o que era aquela coisa estranha de se encantar por alguém.

 

E encantamento foi o que não faltou na estreia da turnê no Vivo Rio, espaço que se transformou por algumas horas no confuso casarão onde os sonhos são reais e a vida não. Saudamos então o futebol, a filosofia de botequim, o jogar bonito e o não ganhar no grito, vendo o próprio tempo num relance, como se fosse a vida um jogo de bola no qual dedicamos o gol, traduzido aqui por qualquer realização que nos move, para quem será o nosso amor, para quem será a nossa paz.

 

Ainda que provem o contrário, Chico Buarque acalma: “Não se afobe, não/ Que nada é pra já”. Olho para ele cantando ali no palco, tão perto de mim, ainda sem saber que nossas mãos se tocariam no final do show, e penso que a gente acredita em Chico, nisso que ele nos diz em “Futuros Amantes”, como quem acredita mesmo no amor: já conhecendo os passos da estrada, colecionando retratos, procurando o desconsolo e voltando sempre a se enfeitiçar. Nesse retrato em branco em preto, o maestro soberano também foi lembrado numa apresentação comovente, tamanho o talento de quem já vai na estrada há muitos anos, um artista brasileiro.

 

Mas Chico não só acalma, também desconcerta e faz críticas num dia de real grandeza, tudo azul. Reiterando que há lugares cariocas para onde Jesus está de costas, as notícias de uma cidade imersa no preconceito são resumidas no trecho mais espetacular – e doloroso – do disco recentemente lançado: “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. Em busca de uma sociedade em que esse grito não seja engrossado para que a covardia não nasça, o público aplaudiu o cantor, endossou o “Fora, Temer” e emendou um “olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”. Ou doida era eu que escutava vozes.