segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Brilha o Cruzeiro do Sul


Ontem foi dia de estar presente no Sambódromo para acompanhar os ensaios técnicos. Cheguei à Praça Onze ansiosa para assistir às três escolas que passariam pela Avenida, mas confesso que não via a hora de cantar o maravilhoso samba da parceria de Altay Veloso. É pela verde e branca de Padre Miguel, portanto, que começo este registro.

O ensaio da Mocidade me impressionou sobretudo pela bateria, que fez uma apresentação arrebatadora. Assim que o samba começou, o público cantou junto, reforçando aquilo que alguns insistem em deixar de lado: o samba de enredo tem uma relevância tamanha. Os componentes das alas cantavam a plenos pulmões, acompanhados especialmente do setor 3, onde se concentrou a torcida. Mesmo com chuva, o céu de Sherazade revelou que a Mocidade tem razão pra sonhar. Sem muito sucesso em carnavais recentes, a escola aparentou ser forte candidata para estar entre as campeãs.

Antes dela, São Clemente mostrou que tem um samba capaz de animar a Sapucaí. Eu, que já o achava uma beleza mas duvidava de seu funcionamento, arrisco dizer que a escola pode surpreender no quesito. Apesar de ainda não ser tão conhecido pelo público, e até mesmo por componentes, o samba conta com um refrão que animou muita gente e demonstrou um bom desempenho. Entretanto, a São Clemente não se saiu muito bem em evolução. O destaque foi Rosa Magalhães no tripé da comissão de frente. A carnavalesca que tanto admiro, ainda mais por conta do desfile inesquecível que deu o título pra minha Vila em 2013, recebeu muitos aplausos.

Quem abriu a noite foi a Estácio, que caiu para o Acesso no ano passado e agora tenta retornar ao Especial. O enredo sobre Gonzaguinha empolgou os torcedores entrosados com o samba que lembra composições do homenageado. O ensaio foi animado, com participação de um público que soltou a voz e demonstrou carinho pela escola que se entregava.

No próximo fim de semana os ensaios técnicos continuam com Sossego, Rocinha e Santa Cruz no sábado, dia 28, e Império da Tijuca, Beija-Flor e Grande Rio no domingo, dia 29. A hora de cantar o Juremê na Sapucaí se aproxima.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Batizada no altar do samba


Quem gosta de Carnaval, e sobretudo de Escola de Samba, sabe que não é só em fevereiro que a gente vivencia a festa. As disputas de sambas de enredo nas quadras são prova disso. É a partir desse momento que o samba de cada escola passa por alterações que podem torná-lo melhor ou não, num processo que só termina mesmo no dia do desfile, quando avaliamos se o samba funcionou na Avenida. E a safra deste ano está especialmente boa.

A Mangueira ilustra bem esse processo que altera nosso olhar pra uma mesma obra: o samba deste ano era uma coisa antes da gravação oficial do CD e outra, totalmente diferente, na voz do Ciganerey, que é um intérprete incrível. Quando aconteceu a primeira votação das notas pros sambas na Rádio Arquibancada, lancei 9,8 pra Mangueira. Hoje, no entanto, para mim a Verde-e-Rosa merece 10, ainda que o samba não seja superior ao da menina dos olhos de Oyá, referente ao último título da escola.

A Vila, azul que dá o tom à minha vida, escolheu um samba arrebatador, que promete crescer muito na Avenida, com destaque para o Igor Sorriso, que tem uma voz ímpar capaz de melhorar ainda mais o que já era bom. Mesmo o trocadilho em “ouvi-la pra sempre no meu coração”, que poderia soar forçado, encaixou perfeitamente com o conjunto da obra. A homenagem a Kizomba de 1988 e à Angola de 2012 não cai na mesmice e engrandece o samba logo no início. Se depender do samba, o povo de Noel tem tudo pra fazer um desfile emocionante. A nota, é claro, só pode ser 10.

O samba da Grande Rio é razoavelmente bom. Animado, mas, em se tratando da letra, fraco na mesma proporção. Pode dar certo no Sambódromo em razão da animação, muito por conta da homenageada e do trecho “levanta a poeira, Ivete”, mas não arrisco dizer que certamente levantará a poeira nos setores. Fica, portanto, com 9,7.

Não me entusiasmei com o samba da Portela. Apresenta exaltações um pouco clichês e uma letra fraca e confusa em relação à sinopse, talvez comprometida por uma interpretação não tão bem feita. Para mim, a Águia recebe 9,8 no quesito.

O samba da Ilha, além de ser de grande relevância, faz a gente pensar numa Sapucaí inteira cantando “Ê, é no girê!”, um indício de que a escola tem condições de surpreender. O enredo inédito, voltado para o candomblé angolano, rendeu um belo samba pra Ilha. Não é um dos grandes da escola nem um dos três melhores do ano, mas é bom à beça. Nota 9,9.

O samba da São Clemente é bom. A parceria dos portelenses foi uma escolha acertada para a escola de Botafogo. Apesar de ter um enredo de difícil abordagem carnavalesca, a São Clemente conta com a incomparável Rosa Magalhães para desenvolvê-lo e, além disso, tem um samba apropriado para realizar um bom desfile, apesar de não haver trechos tão contagiantes a ponto de garantir a empolgação do público. Nesse caso, 9,9.

A Imperatriz tem um samba chato, meio cansativo, mas igualmente bonito. Não empolga, mas a escola vem com um enredo importantíssimo, que está sendo equivocadamente e propositalmente atacado pelos defensores do agronegócio, e uma letra que mostra a beleza e a relevância dos povos do Xingu. Por isso minha nota é 9,8.

A Tijuca, no quesito samba de enredo, só não perde pra Tuiuti. O “chega, my brother” não empolga e a batucada do pavão não enlouquece. Logo, a nota é 9,6.

A Tuiuti, que tem um enredo maravilhoso, não possui um samba à altura. É o pior da safra, sem se destacar em nada, com uma monotonia melódica e uma letra que não se distancia do comum. Naturalmente recebe a nota mais baixa: 9,5.

Salgueiro vai desfilar com um samba fraco e arrastado, que nem se compara ao do ano anterior, bastante superior ao atual. Pode até funcionar bem, mas aí só vai entender quem é Salgueiro. Minha nota é 9,8.

A Mocidade, para muitos, tem o melhor samba do ano. E eu só não confirmo porque sou da turma que viciou no Juremê da Beija-Flor. Mas é inegável que o samba da Mocidade é gigante, com uma levada única e trechos contagiantes, como há tempos a escola não trazia. As passagens “fui ao deserto roncar meu tambor/ pra Alah conhecer meu Xangô” e “põe Aladin no agogô, tantã na mão de Simbad/ meu ouvido é de mercador” traduzem bem demais a interação entre o Saara de lá com o Saara de cá, evidenciando a mistura de culturas. Impossível dar menos do que 10.

A Beija-Flor, que não é de brincadeira, resolveu mostrar a que veio já na escolha do samba. O refrão não sai da cabeça desde a primeira vez que a gente escuta, a letra é fácil e o “Pega no amerê, aretê, anamá” já garantiu o samba como antológico, totalmente distante de qualquer clichê. A única coisa que me incomodou, confesso, foi a supressão do “no ventre”, na gravação oficial, para facilitar o canto. Sou das que lamentam a ausência da expressão toda vez que ouve o Neguinho cantar “bate o coração de Moacir” sem o “no ventre” antes. É um detalhe que faz falta pra quem acompanhou a mudança, mas que em nada altera a qualidade do samba, que evidentemente merece nota 10.

Sendo assim, temos no geral uma safra bastante satisfatória, com poucos sambas de fato ruins, o que por si só já é gratificante para quem dá ao samba de enredo o valor que às vezes ele parece ter perdido. É assim, batizada no altar do samba, que inicio essa coluna para falar de Carnaval com certa regularidade, questionando a espetacularização da festa, narrando experiências em crônicas e registrando a imortal vitória da ilusão sob o olhar apaixonado de quem faz de tudo isso a sua cachaça.