sábado, 27 de setembro de 2014

Paulo Honório, descrito pela ausência de descrição

A literatura pode muito dizer mesmo quando não explicita graficamente a mensagem, utilizando a coerência e a interpretação como suporte para o entendimento completo de algo que se mostra implícito. É a partir dessa perspectiva que conhecemos o narrador-personagem de São Bernardo, romance de Graciliano Ramos, nos primeiros “dois capítulos perdidos” do livro.

Em verdade, ao contrário do que o narrador postula, nada têm de perda os dois primeiros capítulos, porque, enquanto nos deparamos com a maneira de Paulo Honório contar os fatos, descobrimos como é seu caráter e, consequentemente, como é feita a construção desse personagem.

Assim, sem uma apresentação de seu perfil, algo que habitualmente encontramos nos romances de costumes, o leitor apreende dos acontecimentos narrados características que permitem identificar a figura de Paulo Honório como uma pessoa que se mostra enérgica, persistente, diligente e, nas palavras de João Luiz Lafetá, como um homem “que não se desanima com os fracassos”.

No primeiro capítulo, vemos sua proposta de criar o livro a partir da “divisão do trabalho”, o que decerto implica a colaboração de diferentes pessoas. Depois de expor quem ficaria com cada parte e mostrar-se entusiasmado com todo o processo, o protagonista logo percebe certo empecilho: “Estive uma semana bastante animado, em conferência com os principais colaboradores, e já via os volumes expostos, um milheiro vendido graças aos elogios que (…) eu meteria na esfomeada Gazeta, mediante lambujem”.
 
Mas o otimismo levou água na fervura, compreendi que não nos entendíamos.” Essa atitude de encarar a realidade sem lamentações, aceitando o provável insucesso da obra mas não desistindo de seu projeto, confirma a ideia de que estamos diante de um sujeito contrário ao desânimo. Tal caracterização, como se vê, é percebida apenas pela maneira como ele demonstra seu ponto de vista.

Além disso, até mesmo seu nome ele não nos diz, de modo que só o descobrimos em um diálogo em que outro personagem, Azevedo Gondim, faz a ele referência, desejando explicar-lhe que “um artista não pode escrever como fala”: “Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo.” Portanto, da mesma maneira que tomamos conhecimento do caráter de Paulo Honório através de suas atitudes, em vez de mera descrição já pronta, seu nome acaba chegando ao leitor por meio de outra voz.

No mais, ao longo do romance – narrativa sobre a vida desse personagem –, o estilo literário de Graciliano Ramos molda-se magistralmente para contar a conquista da terra de São Bernardo, a ambição do grande fazendeiro que se torna Paulo Honório, seu desejo de ter um herdeiro – ainda que impossibilitado de amar – e como ele, regido pelo egoísmo e pelo poder, traça seu próprio destino solitário.

Toda a construção do livro, nesse sentido, faz-se por uma linguagem sem rodeios e por um ritmo avesso à morosidade, desvendando um personagem que, sem descrição prévia de personalidade, é descrito pelos atos e pelas atitudes reveladas ao correr das páginas.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A parte ida

Ao lado de meu avô,
meu tempo era de barco
(navegação que dita aonde vou,
esparso rio à disposição 
de criança que vê tudo a cor).

Com meu avô a tempo,
poucas ondas observam o curso
do rio escasso; perigo do vento
no percurso se elimina, e fica
só a miúda embarcação construída,
pequena neta instruída, a ida.

Mas chega também partida
no todo tempo de meu avô;
a margem comporta o barco 
(e a vida) que com ele sou:
dividido deslocamento amargo
seca rio, disseca água, apaga cor.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Incômodo

aqui, no escuro do frio,
a porta trancada e às avessas
paisagens, miragem de baldio
espaço arterial, e boca ilesa
que só rio,

ressecado cômodo incomoda
(como caco desaconchegado, 
prego entranhado, amor em
longe lado) e torna acre a hora
que em abismo se afoga,

aqui, na roda do tempo,
na rota que invento, recorto
pedaços de riso, recordo 
traço em divisa, e lembro,

no incômodo acomodado  
(a agonia se sente acolhida)
da casa: faz uma falta fodida
calar teu sussurro inebriado.