sábado, 30 de agosto de 2014

A crônica esportiva de Nelson Rodrigues

Bem se sabe que Nelson Rodrigues tem uma rica produção, considerando seu trabalho, em diferentes campos de atuação, como escritor, dramaturgo e jornalista. Atendo-se às suas crônicas, por exemplo, ele constrói, por meio do envolvimento entre os fatos jornalísticos e a recriação do real – aspecto marcadamente literário –, personagens que se tornam próprios de sua criação textual. A partir disso, podem ser feitas muitas análises interessantes sobre os escritos do anjo pornográfico, sendo uma delas a relação que ele possui com o esporte e, em especial, com o futebol.

No que se refere a essa temática, temos diversas denominações, que são codinomes ou epítetos, criadas por Nelson para aludir a seus protagonistas. É o caso, por exemplo, de Didi, jogador do Botafogo, que é tratado como “príncipe etíope do rancho” ou “imperador Jones”, e de Zagalo, chamado “Coração de Leão”. Além disso, há também os personagens inventados pelo cronista, a exemplo do Gravatinha, da grã-fina das narinas de cadáver e do Ceguinho.

A crônica esportiva começou a ser por ele escrita a partir da década 50 no jornal Última Hora e, posteriormente, na revista Manchete Esportiva, já apresentando um modo de narrar próprio de um relato subjetivo e de resgate de memória, tendo em vista suas impressões acerca de determinado fato ou a lembrança do passado como ponto de partida da construção do texto. Cabe dizer, porém, que os acontecimentos acabam não sendo o fator central explorado por Nelson, como se o texto fosse meramente informativo, porque ele imprime à crônica um teor crítico na medida em que divaga ou comenta sobre algum aspecto referente ao comportamento humano. Dessa forma, a crônica assume um caráter transtemporal, já que não se limita a ser simples relato de um episódio.

A maneira como o cronista narra remete a um conceito autobiográfico, como ocorre na crônica intitulada “Bocage no futebol”, publicada em 14 de janeiro de 1956 na Manchete Esportiva. Nela, ele aborda o “impacto criador e libertário” do palavrão, sobretudo no futebol. O viés autobiográfico é percebido logo no início da crônica, quando o escritor recorre à memória da infância para escrever sobre o jogador Jaguaré, que não se adapta ao futebol europeu por este não fazer uso de “nome feio” e volta a jogar no Brasil, ganhando pouco, “mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos”.

Nesse sentido, o exemplo do jogador Jaguaré é usado como ilustração de um pensamento sobre o uso do palavrão, defendendo um comportamento que muitas vezes é moralmente condenado. Diga-se de passagem, essa concepção rodrigueana faz grande falta a quem tem de conviver com o moralismo chato que, naturalmente, está presente não só no futebol.

O método de utilizar um fato para concretizar o pensamento exposto no texto pode ser visto também em outra crônica publicada na Manchete Esportiva, referente à morte de Maneco, jogador do América, que cometeu suicídio – tomando formicida – por causa de problemas profissionais e financeiros.

Tendo tal episódio como ponto de partida de sua reflexão, Nelson diz o seguinte: “Cada um de nós é um suicida frustrado. E se ainda não estouramos os miolos, ou não pendemos de uma forca, ou não tomamos formicida, é que nos salva, sempre em cima da hora, a nossa incoercível pusilanimidade vital. Mas se cancelamos o nosso suicídio, admiramos e, mais do que isso, invejamos o alheio”. Sendo assim, o que se tem nessa passagem é uma divagação sobre certa temática humana, que demonstra, claramente, uma visão inversa àquela que a sociedade geralmente adota sobre o suicídio.

Por meio de exemplos como esse, portanto, pode-se confirmar o caráter de a crônica de Nelson Rodrigues não se limitar a um mero julgamento simplista de determinado acontecimento. Além disso, é uma grande contribuição histórica, sem dúvida, ter o futebol de sua época tão bem registrado para o leitor que é apaixonado pelo esporte.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.

sábado, 16 de agosto de 2014

João Cabral, uma poesia a palo seco

João Cabral de Melo Neto, poeta nascido no Recife, é associado cronologicamente à geração de 45 do Modernismo brasileiro, mas, em verdade, suas características destoam das que normalmente definem tal momento literário. Contrário ao sentimentalismo poético e defensor de uma poesia escrita ‘a palo seco’, ele produz com exatidão e objetividade e, por isso, ocupa um espaço singular na Literatura.

A preferência pelo encontro de consoantes na composição poética, aspecto que negligencia a suavidade atingida pela melodia das vogais, faz com que o elemento “pedra” represente semanticamente essa valorização ao selecionar as palavras que serão por ele utilizadas. Seu primeiro livro intitula-se Pedra do sono (1942) e o último, A educação pela pedra (1966), mostrando esse elemento não como um estorvo no meio do caminho, mas como possibilidade de educar-se por meio do despertar provocado por um eventual tropeço.

Isso fica mais claro, por exemplo, a partir do entendimento do poema “Catar feijão”, no qual ele compara o processo de escrever com o ato de catar feijão: neste, retira-se “um grão qualquer, pedra ou indigesto,/ um grão imastigável, de quebrar dente” que ocasionalmente esteja entre os grãos de feijão; na composição poética, porém, acontece o contrário – deve ser selecionada a melhor palavra, representada, pois, pela pedra, já que “a pedra dá à frase seu grão mais vivo:/ obstrui a leitura fluviante, flutual,/ açula a atenção, isca-a como o risco.”

A exatidão e a objetividade da produção literária de João Cabral podem ser vistas sobretudo no modo como foi criada sua obra Serial: totalmente articulada em torno do número quatro, é composta por dezesseis poemas – quatro ao quadrado –, todos eles são divididos em quatro partes e há o trabalho com quatro variantes métricas, além de outros aspectos que remetem ao mesmo número. É nesse livro que encontramos, a meu ver, um de seus melhores poemas, “Graciliano Ramos:”, que será brevemente analisado:

GRACILIANO RAMOS:

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

***

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

***

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga,
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

***

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.

A temática do sertão aproxima João Cabral de Melo Neto de Graciliano Ramos, a quem o título se refere estabelecendo um diálogo com Vidas Secas. Nesse romance, os personagens têm uma fala limitada, com construções simples, fato que permite a relação da pobreza vocabular com a experiência da miséria. João Cabral acredita que a vida no sertão não pode ser retratada por uma linguagem associada ao ritmo e à melodia dos versos, porque esses artifícios estariam dissociados da falta de humanidade a que são submetidos os que possuem uma vida severina. É por isso que ele utiliza somente “as mesmas vinte palavras”, palavras estas que giram “ao redor do sol”, ou seja, em um ambiente seco e escasso.

Ainda na primeira estrofe, temos a “faca” como um instrumento responsável tanto pela dor física do sertanejo quanto pela sua dor existencial. Pensando nesse mesmo signo a partir da análise da criação textual, percebemos que as palavras consideradas poéticas são evitadas por João Cabral justamente porque representariam o alimento que não deixa nítido o perigo de uma faca: a palavra literária, desse modo, funcionaria como enfeite ou floreio a uma realidade cruel e sem vida, da mesma maneira que a “crosta viscosa,/ resto de janta abaianada” cegaria uma possível cicatriz feita pela lâmina que corta.

Ademais, ao falar “somente do que fala”, o poeta esclarece o sertão como tema: um ambiente reduzido ao espinhaço, sem espaço para a folha prolixa ou vistosa de um cenário que não faz parte daquele lugar seco. Mais adiante, ao falar “somente por quem fala”, ele dá voz às pessoas que vivem no sertão, submetidas à falta de dignidade e a uma experiência vital “em que só cabe cultivar/ o que é sinônimo da míngua”.

Por fim, as duas últimas estrofes expressam a quem o poeta direciona seu lamento, como se fosse um aviso ao leitor para que este desperte do “sono de morto” e enxergue a problemática social tratada no poema. O sol “estridente”, quando “bate nas pálpebras como/ se bate numa porta a socos”, evidencia a urgência de alertar e mostrar essa realidade àqueles que a desconhecem ou mantêm distância dela.

“Graciliano Ramos:”, portanto, serve como um bom exemplo para uma breve compreensão de sua obra. A partir da leitura desse poema, percebe-se a presença constante do atrito de consoantes, a temática do sertão, a preocupação com a divisão exata da forma, a crítica às palavras consideradas poéticas e a denúncia social, características que marcam fortemente a composição literária de João Cabral de Melo Neto.

Publicado originalmente no Ouro de Tolo.


sábado, 2 de agosto de 2014

Ariano Suassuna e a possibilidade de um país real

Diante de uma realidade que permite a compreensão de dois Brasis, um referente à valorização de sua própria essência e outro relacionado ao desconhecimento da mesma, pode-se entender aquilo que Machado de Assis apontou, em crônica de 18 de dezembro 1861, como País Real e País Oficial. Para ele, o primeiro é “bom e reserva os melhores instintos”, ao passo que o segundo mostra-se “caricato e burlesco”.

É essa perspectiva que Ariano Suassuna explora na tônica da dramaturgia e da literatura que produz, estendendo o tema, naturalmente, às palestras que apresenta. Em uma de suas aulas-espetáculo, ele analisa essa oposição que Machado de Assis aponta para comentar sobre a cultura popular e a cultura de massa, explicitando as diferenças expostas na visão de um país esmagado pela indústria cultural e de outro concebido a partir das raízes da arte popular. Defensor incansável das manifestações de um povo que segue esquecido e negligenciado pelo discurso histórico comumente adotado, o fundador do Movimento Armorial buscou sempre a mediação entre a cultura oral e a letrada.

Cabe dizer que o Movimento Armorial foi lançado em outubro de 1970, no Recife, com o objetivo de promover uma arte brasileira erudita a partir da cultura popular, de modo que esta fosse respeitada e valorizada por muitos que ainda desconhecem sua origem. Nesse sentido, Suassuna faz com que tal pensamento esteja sempre atrelado ao seu trabalho com a palavra, fato que pode ser percebido até mesmo na expressão usada para designar suas palestras: “aula-espetáculo” congrega dois substantivos com significados referentes, respectivamente, ao erudito e ao popular. Além disso, a representação literária do Movimento lançado é feita magistralmente no Romance da Pedra do Reino, cujo título do primeiro capítulo – “Pequeno cantar acadêmico a modo de introdução” – já expressa a junção do canto popular com a erudição acadêmica.

O narrador-personagem do romance, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, é a personificação das dualidades tão ressaltadas pelo seu criador, porque reúne, por exemplo, o religioso e o satírico, a fidalguia e a plebe, o drama e o riso. A maneira como ele enxerga o Sertão é a mesma maneira de Suassuna enxergar o Brasil. Quando Quaderna – dessa vez em O Rei Degolado, romance do qual ele é também narrador-personagem – diz achar “o Sertão bonito exatamente por causa daquilo que os delicados acham feio nele”, o que se tem é a subversão do olhar que geralmente é adotado para analisar nosso próprio território.

Com a intenção de produzir uma arte genuinamente brasileira, o escritor mostra-se contrário ao desvirtuamento que a indústria cultural causa no produto artístico. A padronização que torna a arte submissa ao mercado retira a peculiaridade das origens da cultura popular para transformá-la e passar a concebê-la como mercadoria. Desse modo, a falta de compreensão ou conhecimento daquilo que é popular pelos próprios brasileiros é um fator decorrente dos preconceitos burgueses pertencentes à sociedade moderna, que promove cada vez mais o desencantamento dos nossos valores.

É por isso que as apresentações e produções de Ariano Suassuna são imprescindíveis para compreendermos a relevância das miudezas tão irrelevantes na concepção de quem desconhece o que há de melhor na cultura nacional.

Ele é uma grande possibilidade para nós, brasileiros, adentrarmos no País Real e nos aproximarmos dos encantamentos que o País Oficial afasta por ser “caricato e burlesco”.

Publicado oficialmente no Ouro de Tolo.